20 agosto 2021

Crônica da sexta-feira

Mulher não é efeito colateral

Cristina França*

 

Três notícias nestes dias me fizeram pensar neste texto. E, especialmente a última - a volta dos talibãs ao poder no Afeganistão, me fez definir este título. Começo por ela. Ouvi algumas avaliações sobre o que significa o retorno deste grupo com bases fincadas na sociedade afegã. Estas análises repetiram que sim, há um perigo no ar com relação às mulheres, mas, há que se festejar a derrota do imperialismo americano numa região estratégica para a imaginação do mundo sobre o que seja liberdade e democracia. 

É bem verdade que temos uma pulga atrás da orelha, ou deveríamos ter, quando se toma uma parte pelo todo. Demonizar é uma saída e as imagens correm o mundo. Lembro de um filme sobre o nascimento do Islamismo com Irene Papas e Anthony Quinn. Numa cena um cristão perguntava se para o Islã a mulher estava abaixo do homem. O muçulmano personagem de Quinn respondeu que se assim fosse, seria a mulher a base sobre a qual se constrói o mundo. Bem, certamente da qual nasce o mundo, o que dá basicamente no mesmo.

Mulher não é efeito colateral nesta batalha geopolítica e econômica. Irão a China e a União Soviética em nome de interesses próprios ‘civilizar’ os talibãs que, aliás, parecem estar menos radicais? Mas, lembremos que durante a ocupação americana a vida das mulheres afegãs não era um mar de rosa. Então? Então, tendo derrotado os EUA, podemos permitir aos talibãs algum poder nada civilizado sobre corpos femininos. Este foi o recado das análises, especialmente as masculinas, suavizadas com uma chamada generalista à atenção para este tema ‘menor’. A mosca atrás da orelha já virou um enxame de abelhas apátridas.

As outras duas notícias são sul-americanas, onde o Islamismo não é religião dominante e mulheres são sempre mulheres. No Brasil, planos de saúde exigindo consentimento de maridos para o uso do DIU. De imediato pensei que até seria uma troca interessante exigirmos, em contrapartida, campanhas maciças sobre a vasectomia (e exigindo o consenso da esposa na reversão). Não sei até quando o homem continuará lépido e fagueiro nesta fantasia sobre dominação da reprodução da vida. 

À Argentina agradecemos a terceira, e boa, notícia: o trabalho de cuidar da vida indefesa contando para fins de direito à aposentadoria. O gratuito trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho recebe sua recompensa devida. Mães trabalham por amor. E amor não tem preço. Assino embaixo destas duas frases. Porém, o efeito colateral deste trabalho e deste amor é pura mais valia. E nesta caminhada materna salvaremos o mundo entre pragmáticas e maléficas leituras dos acontecimentos nos quatro pontos cardeais.

*Cristina França é jornalista 

 Veja: Uma tremenda demonstração de fraqueza https://bit.ly/3lRLcVT

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