06 setembro 2021

Frente ampla ontem e hoje

Frente ampla democrática no Brasil: experiências acumuladas e possibilidades atuais
Carlos Lopes*, Hora do Povo

(O texto que publicamos abaixo foi a base para a palestra, promovida pela Fundação Maurício Grabois de Pernambuco, no ciclo 15° Congresso do PCdoB em Debate, realizada no último dia 2 de setembro.)

Meus camaradas, meus amigos, agradeço outra vez o convite para estar com vocês, hoje. Antes de tudo, agradeço ao meu amigo Luciano Siqueira, pela consideração e lembrança.

Pernambuco – e especialmente Recife – foi a terra da minha militância, logo após sair do Rio de Janeiro, em abril de 1978. Eu era médico recém-formado, mas, como boa parte da minha geração, o combate a uma ditadura antinacional e antipopular, portanto, antidemocrática, era o que mais nos mobilizava.

No momento atual, em que alguns pretendem instalar outra ditadura no Brasil – segundo Bolsonaro, uma ditadura muito mais estúpida e sanguinária que a anterior -, lembrar o que foi aquela época é um exercício saudável contra quaisquer hesitações na luta contra essa tentativa.

Os mais velhos, como eu, e, talvez, o Luciano, que não é tão velho assim, temos a obrigação de contar aos mais jovens o que foi a ditadura – e como acabou.

Então, vamos ao nosso tema, que é “Frente ampla democrática no Brasil: experiências acumuladas, possibilidades atuais”.

Acho que todos vocês já leram as nossas teses para o 15º Congresso. Por isso, não quero repeti-las, mas, se possível, acrescentar mais alguns aspectos, examinar mais alguns ângulos, para fomentar o nosso debate.

Não estou me colocando na posição de quem tem o que ensinar, porque acho que tenho muito a aprender com vocês. Apenas, vou colocar alguns pontos de vista.

Porém, gostaria de partir de um trecho das nossas teses. Nelas, é dito:

“O PCdoB sublinha uma vez mais a convicção de que é a tática de frente ampla democrática, respaldada pela mobilização política do povo, a orientação e a conduta política eficazes para se enfrentar, desmascarar, derrotar Bolsonaro, bem como conter e repelir o persistente estratagema golpista para liquidar o regime democrático. As bandeiras capazes de unir e pôr em movimento grandes forças políticas, sociais, econômicas, culturais e institucionais são: enfrentamento à Covid-19; defesa da vida, com vacina para todos e todas, distanciamento social, respeito às demais normas sanitárias; fortalecimento do SUS e da pesquisa científica ligada ao combate ao SARS-CoV-2; auxílio emergencial de R$ 600 e combate à fome; luta pela proteção e geração de empregos; socorro a micro, pequenas e médias empresas; e defesa da democracia, rechaço ao golpismo de Bolsonaro.”

O que nós podemos entender dessa formulação?

Que, para o nosso partido, a frente ampla democrática não é apenas um nome, um rótulo, mas um conceito, um conteúdo. Estão claros, nesse conteúdo, que a frente ampla democrática é uma tática, ou seja, uma política, que ela tem que ser “respaldada pela mobilização política do povo” e quais são as bandeiras que, no momento, permitem a própria formação da frente.

Por que isso é importante?

Porque já houve episódios da História do Brasil em que se falou em “frente ampla” sem que isso correspondesse a um conteúdo amplo – e, talvez, nem a um conteúdo de verdadeira frente.

É conhecido o episódio, após o golpe de 64, em que Lacerda – o golpista-mor, até ser afastado da sucessão presidencial – tentou atrair os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, então fora do país, para algo que chamava de “frente ampla”.

Essa articulação foi rejeitada amplamente dentro do Brasil. O motivo, se podemos resumir rapidamente a questão, é que nenhuma articulação de Lacerda poderia ser ampla, após o seu papel em todo o período que vai de 1945 até 1966.

Também é conhecida a tentativa de “frente ampla” em torno da candidatura do general Euler Bentes Monteiro à Presidência, no colégio eleitoral que sufragou Figueiredo, em 1978. Apesar de suas credenciais nacionalistas, é evidente que a candidatura de Euler não unia amplamente as forças democráticas do país.

Entretanto, houve, na luta contra a ditadura, um exemplo de frente ampla democrática bem sucedida: aquela formada em torno da candidatura de Tancredo Neves, que derrotou a ditadura em seu próprio colégio eleitoral.

Com certeza, até se formar essa frente, houve várias tentativas, algumas que já mencionamos, e, claro, o movimento das Diretas-Já.

Tratou-se, portanto, de uma frente ampla democrática “respaldada pela mobilização política do povo” – do que decorreu a consecução, também, da Constituição, de cuja elaboração fez parte com destaque o nosso partido, tendo em sua bancada deputados como Haroldo Lima e Aldo Arantes.

Colocadas essas questões históricas, permitam-me os companheiros, antes de chegar ao momento atual, abordar uma questão teórica.

A frente ampla democrática tem caráter estratégico ou apenas sempre caráter tático?

Alguém poderia dizer que a tática faz parte da estratégia, até porque uma tática que contraria a estratégia é coisa de oportunistas.

É verdade, mas nem por isso tática e estratégia deixam de ser coisas diferentes.

No entanto, é na tática – isto é, na luta política em cada conjuntura – que se condensa a estratégia de um partido.

Partidos não são instituições acadêmicas, que, claro, têm um importante papel social.

A análise da realidade – isto é, sobretudo da sociedade – que um partido (estamos falando de um partido revolucionário, comunista) faz, tem o objetivo de elaborar uma estratégia e uma tática.

Isso é assim porque nossa obrigação, para usar as palavras de Marx, não está apenas em interpretar o mundo, mas em transformá-lo, ou ser vanguarda nessa transformação.

Então, vejamos alguns exemplos mais antigos ainda do que aqueles que já citei.

É possível dizer que, na Independência, houve, com a adesão dos republicanos à estratégia de José Bonifácio, uma frente ampla, de caráter estratégico, para efetuar a nossa separação de Portugal?

Com o cuidado de ressalvar que uma parte não pequena da população era – e continuou – escrava, é possível dizer isso.

E quanto à República, hoje tão difamada pelos sequazes de Bolsonaro, é possível dizer o mesmo?

Sim, é possível – e, nesse caso, a Abolição da escravatura já acontecera no ano anterior.

São exemplos de como uma frente tática acabou se transformando em uma frente de caráter estratégico.

Porém, e a situação atual?

Que espécie de frente nós necessitamos?

Lembro que as discussões sobre frente, na época da ditadura, surgiram a partir das formulações de Dimitrov sobre a Frente Popular Antifascista, no VII Congresso da Internacional Comunista.

Como o correr do tempo e da experiência, vimos que unir apenas os partidos e setores populares era insuficiente para derrubar a ditadura. Portanto, tivemos que atrair setores do empresariado e, mesmo, das Forças Armadas. Daí a Frente Ampla que elegeu Tancredo e acabou com a ditadura.

Porém, naquela época a ditadura já estava instalada no país desde 1964.

A situação de hoje é diferente, porque trata-se de impedir que uma ditadura se instale no país – e não de derrubar uma ditadura já existente.

A primeira questão é, portanto: esse risco, de golpe de Estado e ditadura, existe – ou trata-se de algum delírio ou pânico de nossa parte?

Não tenhamos dúvida de que as nossas teses estão certas: o risco existe. E não são apenas os comunistas – o que já seria algo decisivo – que enxergam esse risco.

Aqui, algumas perguntas, apenas para ajudar o nosso raciocínio.

Desde quando Bolsonaro se preocupou em governar?

Por que ele não se preocupa em governar?

Por que ele não se preocupa em aumentar sua popularidade?

Por que ele fala somente para a sua própria bolha de fanáticos e ensandecidos?

Por que os constantes ataques às instituições, incluindo o Judiciário, o Legislativo e a existência das eleições?

Por que essa tensão permanente, com crises em cima de crises, como agora, antes do Sete de Setembro?

A resposta nos parece óbvia: porque o objetivo de Bolsonaro não é, principalmente, disputar eleições, isto é, tentar sua própria reeleição.

Seu objetivo é o golpe de Estado – e a ditadura.

Alguns companheiros, fora do nosso Partido, opinam que um golpe de Bolsonaro seria inexequível, devido a que ele está em minoria no país.

Essa opinião é completamente errônea.

Primeiro, porque os golpes de Estado são desfechados sempre por uma minoria, isto é, por golpistas que são apoiados apenas por uma minoria da população.

Desde quando os golpistas de 1964 tinha a maioria?

E, pior, quando deram o “golpe dentro do golpe”, isto é, a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, os golpistas contavam com o repúdio da ampla maioria da população.

Mesmo assim, a ditadura durou 21 anos, com 10 anos de sangue e tortura.

O golpe de Estado, portanto, sempre conta com o apoio de uma minoria. Se contasse com o apoio da maioria, ele não seria necessário para os golpistas – nem estes seriam golpistas.

A segunda questão sobre isso é que o fascismo é sempre um regime de minoria, um regime em que a maioria é submetida a uma ditadura que somente conta com um apoio minoritário da população.

Esta é a razão porque Hitler e Mussolini eliminaram as eleições da Alemanha e da Itália, mesmo se dizendo com apoio da população. Eles sabiam que isso não era verdade.

Logo, a questão seguinte é: com que minoria Bolsonaro conta para um golpe de Estado?

Um artigo publicado por um professor no Jornal da USP tenta responder a essa questão, chegando à conclusão de que existe um “núcleo duro” bolsonarista, composto por 12% do eleitorado (v. Reginaldo Prandi, Os 12% do presidente – em que lugar da sociedade habita o bolsonarista convicto?).

Isso é suficiente para um golpe de Estado?

Depende da situação – inclusive da nossa capacidade de reduzir Bolsonaro somente a estes 12% ou até menos.

Mas não estou dizendo, com isso, que o golpe de Estado é inevitável, até porque o objetivo da frente ampla democrática é, exatamente, evitá-lo.

Se Bolsonaro ainda não conseguiu dar o golpe é, precisamente, porque as forças democráticas no Brasil, apesar de todas as dificuldades, conseguiram impedi-lo.

Mas a catástrofe a que ele levou o país está bem caracterizada nas nossas teses.

Recentemente, Jean Marc von Der Weid, ex-presidente da UNE durante o pior período da ditadura, escreveu um artigo bastante interessante sobre essa questão do golpe. Cito aqui apenas um trecho:

“Bolsonaro reza todos os dias, ao acordar e ao dormir, por uma crise social maiúscula, seja por causa da covid ou por causa da fome. Ele torce pelo desespero da população que leve a revoltas, quebra-quebras, saques. Tudo o que precisa é um estado de convulsão social para impor medidas de exceção, ‘pelo bem da paz pública’ ou ‘pela defesa da propriedade’” (v. Jean Marc von Der Weid, A ameaça de golpe no sete de setembro e além).

Exatamente por isso, porque existe uma conspiração contra a democracia em andamento – e uma conspiração aberta, que nem mesmo é disfarçada minimamente – que a frente ampla democrática é necessária.

Ressalto, aqui, que essa frente ainda não está plenamente constituída. Mesmo assim, obtivemos importantes vitórias no combate ao fascismo, isto é, na luta contra Bolsonaro.

Lembro, outra vez, que a frente que derrotou a ditadura que já estava instalada, levou muito tempo para se constituir.

A de agora, que é para impedir a instalação de uma ditadura, está se constituindo mais rapidamente.

Quais são os problemas que temos para sua plena constituição?

Primeiro, a unidade das tendências políticas – isto é, dos partidos – de esquerda com as de centro e mesmo de direita não fascistas, em torno de evitar o golpe e a ditadura.

Aqui, o problema não é que gostemos ou não de fazer essa ou aquela aliança. O problema – aliás, a solução – é outro: para isolar Bolsonaro e o fascismo, essas alianças são necessárias.

Em outra época, um amigo observou algo que, sem dúvida, é verdade: Lenin podia se queixar de muita coisa, de muitas imperfeições ou erros dentro do partido, mas se existe alguma coisa que ele nunca fez foi se queixar de uma aliança que era necessária para a luta do proletariado e do povo.

Acho que devemos seguir o exemplo de Lenin.

A segunda questão é a atração de setores sociais que ainda mantêm uma posição no mínimo vacilante em relação a Bolsonaro. Não são setores que aprovem o fascismo, mas aqueles que não veem uma alternativa clara a Bolsonaro.

Para citar outra vez Lenin, a aliança entre partidos não é a mesma coisa que a aliança entre classes. Não é suficiente, para a frente ampla democrática, a aliança entre partidos. É preciso, também, atrair setores sociais.

O recente episódio do manifesto da Febraban e Fiesp, mostrou até que ponto o círculo de Bolsonaro entra em pânico quando banqueiros e empresários expressam uma opinião que se contrapõe à sua, mesmo em termos extremamente brandos.

Por fim, uma questão decisiva para a constituição da frente ampla democrática: que setor é capaz de unir todos esses outros setores tão díspares, na luta contra o fascismo.

Trata-se de uma questão já resolvida por Dimitrov, em sua formulação da frente antifascista: somente a classe operária e sua representação política, os comunistas, são capazes de constituir o cimento da frente, a argamassa que une os vários tijolos do edifício.

O motivo é que somente os comunistas – e sua base, os trabalhadores – são capazes de colocar o interesse geral do povo acima de quaisquer interesses particulares.

Setores burgueses ou pequeno-burgueses tendem a desmontar a frente ou a não constituí-la, exatamente por apego a seus interesses particulares, muitas vezes, mesquinhos.

Creio ter dado uma panorâmica da amplitude da frente necessária no Brasil de hoje, diante da ameaça que Bolsonaro representa para a democracia.

Certamente, sua constituição não depende apenas da nossa vontade – mas o que quis ressaltar foi, exatamente, a política de frente ampla.

Podemos até não conseguir constituí-la inteiramente, tal como a concebemos, porém, o importante é que se trata de uma política, sem a qual estaremos pavimentando caminho para Bolsonaro, isto é, para o fascismo.

No entanto, há uma última questão: se constituirmos uma frente de tal amplitude, reunindo da classe operária e demais trabalhadores até os banqueiros, isso não significaria a submissão dos interesses do povo aos dos exploradores?

Há dois aspectos na resposta a essa questão:

O primeiro, é que a ausência de democracia é um prejuízo maior para o povo do que para os grandes empresários e banqueiros.

Portanto, a luta para impedir Bolsonaro de instalar uma ditadura interessa mais ao povo que aos grandes empresários e banqueiros.

O segundo aspecto é que a frente ampla democrática não implica em suspender ou anular a luta dentro da própria frente, isto é, a luta pela direção do movimento democrático. Somente, o campo da disputa será dentro da oposição ao fascismo, ao golpe de Estado, à ditadura.

*Diretor de redação da Hora do Povo

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Veja: Semear o caos pra quê? https://youtu.be/yLfPBPiRBik 

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