Mídias sociais como arma de governo e criação de um “Brasil paralelo”
Driblando as críticas da mídia,
governo Bolsonaro se comunica diretamente com seu “Brasil paralelo”
Denis Pacheco,
portal Vermelho
Em setembro deste ano, a partir de um único áudio, uma crise começou a ser contornada pelo governo federal. Utilizando o aplicativo WhatsApp, o presidente Jair Bolsonaro enviou uma mensagem em áudio para diversos grupos de caminhoneiros com o objetivo de tentar colocar fim às paralisações e bloqueios que ameaçavam as rodovias brasileiras.
Até aquela noite, a Polícia Rodoviária Federal havia registrado 14 pontos de bloqueio que atingiam 15 Estados brasileiros.
Aquela não foi a primeira e, provavelmente, não será a última peça de comunicação virtual que tem marcado o mandato de Bolsonaro à frente da presidência do País. No mês anterior, antecipando as manifestações do feriado de 7 de setembro, Bolsonaro encaminhou, na tarde de 14 de agosto, pelo mesmo aplicativo, uma mensagem que reforçava a necessidade de um chamado “contragolpe”, convocando apoiadores para se manifestarem no Dia da Independência.
A mensagem, conforme reportado
pela imprensa, foi enviada pelo número pessoal do presidente
para diferentes integrantes do governo e amigos. Na lista, estavam ministros de
Estado, apoiadores e amigos do presidente.
O gesto, que inflou temor sobre um possível golpe de Estado, foi um de muitos que têm sido alvo de escrutínio tanto de críticos quanto de apoiadores do atual presidente. Não por acaso, o gesto só foi possível mediante a revolução tecnológica propiciada pela popularização dos smartphones, a tal ponto que, nos comícios do 7 de setembro, em São Paulo e Brasília, Bolsonaro dispensasse a mídia tradicional e falasse direto com seus apoiadores. Em uma inversão de papéis, a grande imprensa teve que recuperar as transmissões do presidente em suas redes para utilizar trechos em suas reportagens.
Aprendendo a usar aplicativos
Quando, em 9 de janeiro de 2007, Steve Jobs subiu ao palco do Moscone Center, em São Francisco, para anunciar o iPhone, produto que mudou os rumos da indústria da tecnologia desde então, o líder já previa que o cotidiano de boa parte do mundo seria dramaticamente alterado pela invenção da Apple.
Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, divulgada em maio de 2021, mostrou que o Brasil possui 440 milhões de dispositivos digitais, que incluem computadores e notebooks, mas também tablets e smartphones. São atualmente 2 dispositivos por habitante do País, de acordo com o levantamento do Centro de Tecnologia de Informação Aplicada.
Entretanto, o grande efeito que catapultou a relevância e o poder dos smartphones em nossas vidas foi anunciado um ano após o lançamento do iPhone. Em 10 de julho de 2008, a Apple divulgou a criação da App Store, uma plataforma digital com, na época, 500 aplicativos disponíveis. Dentre os apps, como ficaram conhecidos, surgiram marcas gigantes que dominam as redes até hoje, influenciando desde a mobilidade das nossas cidades até o rumo das nossas eleições.
Neste contexto, nasceu o WhatsApp, aplicativo de mensagens instantâneas criado em 2009 pelos desenvolvedores Brian Acton e Jan Koum, comprado em fevereiro de 2014 pela maior rede social do mundo, o Facebook, que se tornou um sucesso instantâneo em países como o Brasil.
Em 2021, apesar da queda de 1% entre 2020 e 2021,
em janeiro deste ano, o WhatsApp estava presente em 98% dos smartphones usados
no Brasil. Os dados vieram da última edição da pesquisa “Panorama
sobre mensageria móvel no Brasil”, organizada pela Mobile Time em parceria com a
Opinion Box.
Para João Guilherme Bastos dos Santos, especialista do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) e um dos autores da pesquisa WhatsApp, política mobile e desinformação: a hidra nas eleições presidenciais de 2018, cg ompreender a dinâmica do WhatsApp no Brasil é essencial para entendermos melhor a relação entre a eleição de Jair Bolsonaro e seu atual governo.
No artigo publicado em 2019, Santos e mais três pesquisadores descreveram um estudo de dez meses, realizado durante as eleições, que monitorou o comportamento coletivo de 90 grupos de WhatsApp interconectados e de apoio aos seis principais presidenciáveis. Ao invés de se concentrar nos usos do próprio Facebook, em vista da sua importância nas eleições presidenciais americanas de 2016, o grupo escolheu voltar seu foco para o app de mensagens.
“Quando a gente escolheu olhar o WhatsApp, na verdade, a gente estava um pouco na contramão. As pessoas até olhavam o Facebook, muito, a meu ver, por influência americana, achando que ia acontecer aqui o mesmo que aconteceu nos Estados Unidos. No entanto, o padrão de uso do Brasil é totalmente diferente, e vimos no WhatsApp um potencial grande”, esclarece ele.
Para o especialista, existem pontos-chave que precisam ser levados em consideração quando se trabalha com o WhatsApp no Brasil. De forma resumida, Santos esclarece que o monitoramento de grupos no app deve levar em conta, especialmente, sua capacidade de interconexão. “Os grupos não são equivalentes. Então, não necessariamente dez grupos vão te dizer menos do que 100 grupos, porque os grupos interconectados formam uma rede. Se você tiver um grupo na posição central, você consegue monitorar o que vai viralizar para milhares de grupos sem ter que olhar os milhares de grupos. Sendo que o inverso não é verdadeiro”, explica.
Os grupos envolvendo apoiadores de Jair Bolsonaro já eram alvo de interesse acadêmico antes das eleições. Ainda assim, a presença avassaladora dos grupos de WhatsApp durante a campanha eleitoral surpreendeu não apenas os especialistas durante a pesquisa, como também os analistas políticos tradicionais e os próprios responsáveis pelo aplicativo, que se viram impelidos a se manifestar diante das denúncias envolvendo disparos em massa no WhatsApp, comprados por apoiadores de Bolsonaro, que configuravam uma prática ilegal, já que se tratava de doação de campanha por empresas, vedada pela legislação eleitoral, e não declarada.
Para Santos, as medidas oficiais, que envolviam reduzir o compartilhamento de mensagens e a promessa de mais monitoramento sobre a compra de disparos em massa, foram insuficientes.
“A gente mostrou como a estrutura de grupos interconectados é o que garante a viralização, não necessariamente a quantidade de encaminhamentos. Mesmo com um encaminhamento para uma pessoa dentro dessa estrutura, com quatro etapas de encaminhamento, você chega a milhões de pessoas”, afirma Santos, que, em um artigo de 2020 para o Observatório das Eleições, colocou em números o potencial viral do WhatsApp. “Se um grupo de WhatsApp estiver cheio (256 pessoas) e cada integrante estiver disposto a encaminhar a mensagem para um outro grupo também cheio, alcançamos 65,5 mil pessoas na primeira rodada de encaminhamentos e 16,7 milhões na segunda. Diferentemente do Facebook, em que 16 milhões de pessoas podem perder acesso a uma publicação que compartilharam caso ela seja excluída, no WhatsApp, cada um destes 16 milhões possui uma cópia do conteúdo em seu próprio celular”.
Outro fator que influencia o uso maciço do app de mensagens no Brasil envolve, para o pesquisador, seu “padrão de uso”. “O WhatsApp no Brasil tem um uso muito ocupacional e operacional. Eu tenho um grupo de trabalho, um grupo de condomínio, um para resolver problemas… Para quase todas as funções do dia a dia você tem um grupo diferente e como as pessoas estão em várias funções, você começa a constituir essa rede de grupos interconectados muito capilarizada”, revela Santos ao reforçar que a introdução do chamado “zero rating”, prática das operadoras de celular de prover dados ilimitados e sem custo para determinados aplicativos, incluindo o WhatsApp, foi essencial para a popularização.
Apesar de ter acesso aos grandes jornais e redes de televisão do País, Bolsonaro ainda permanece ligado às redes sociais e aplicativos de mensagens para realizar boa parte de suas comunicações. Para Santos, o envio de áudios no WhatsApp para grupos como o dos caminhoneiros, por exemplo, “é estratégico”. Conforme ele afirma, um dos motivos pode ser o fato de que, no caso dos caminhoneiros, cujo padrão profissional não é compatível com pronunciamentos oficiais, os áudios podem ser preferíveis.
É preciso manter a entropia nas redes
Mas e quando as comunicações extrapolam os usos estipulados dos aplicativos de mensagens e são utilizadas para disseminar notícias falsas, não apenas dentro dos grupos, mas também em redes sociais, como aconteceu durante as eleições de 2018 e continua acontecendo durante a pandemia?
Para a professora Letícia Cesarino, do Departamento de
Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o avanço das fake news foi
catapultado não somente pelas facilidades geradas pelas novas tecnologias, mas
pela estratégia por parte de grupos de direita, nascidos durante as eleições,
que envolve “manter a entropia” virtual, ou seja, contribuir constantemente com
o caos informacional acerca das idas e vindas do governo.
“Existe uma desorganização, do ponto de vista do sistema de mídia anterior, da esfera pública anterior, do sistema político anterior, então os grupos se aproveitam desse ambiente das novas mídias porque a lógica é outra. A lógica da plataforma não é uma lógica política, muito menos uma lógica democrática”, aponta a antropóloga.
Na opinião dela, o ambiente de mídia anterior às redes era centralizado, principalmente, em torno do que eles chamam de grande mídia do jornalismo profissional, que hoje é alvo de descrença por parte de grupos que espalham a desinformação. Essa descrença, para a professora, muitas vezes é alimentada pelo próprio Bolsonaro, que se coloca como vítima da “grande imprensa”.
“Quando o Bolsonaro faz coisas contraditórias, todos os seus avanços e recusas são reenquadrados como mais um passo na estratégia”, afirma Cesarino. Ao ilustrar os acontecimentos que antecederam as manifestações do Dia da Independência, que culminaram em um recuo do presidente diante das provocações tomadas como golpistas pela oposição e por boa parte da imprensa, a especialista reforça o papel das redes e grupos em apps na inversão das mensagens. “E no caso ali foi no sentido de dar uma rasteira na esquerda. A esquerda estava esperando o golpe, mas o Bolsonaro deu um passo atrás, ele é o verdadeiro Democrata, então”, explica.
De acordo com a especialista, a nova estrutura de mídias possibilitada pelos aplicativos de mensagem e redes sociais não se desloca inteiramente das mídias tradicionais. “É como se ela criasse uma camada paralela e isso é muito explícito também no modo como eles entendem a própria ideia do Brasil Paralelo”, conta ela, ao destacar que, com os novos canais, é lançada a promessa de um “acesso à verdade que a mídia anterior não oferecia, já que ela está em conchavo com as elites, por exemplo. É uma comunicação de várias camadas”.
Sobre a comunicação em diversas camadas, típica dos atuais governos considerados populistas, como foi o de Donald Trump até 2020, nos EUA, a antropóloga considera que é essencial entendermos o conceito chave de dog whistling, em português, o “apito do cachorro”, por trás das mensagens.
“A ideia do ‘apito do cachorro’, de que você
tem uma comunicação em várias faixas e públicos diferentes vão entender coisas
diferentes, é como um cachorro, que ouve um apito e nós, humanos, não ouvimos.
(O conceito) é uma metáfora para falar dessas diferentes camadas de públicos”,
esclarece.
Visto que na internet os públicos são cada vez mais personalizados e segmentados, já que diversos algoritmos que modelam nossas diferentes timelines foram programados com o objetivo de nos mostrar apenas o que pode nos interessar individualmente, a professora acredita que foram criados ecossistemas, relativamente fechados em si mesmos, em que nossas crenças e pontos de vista individuais são reforçados.
“Então você vai separando a própria percepção da realidade, na medida em que públicos que estão muito separados estimulam uma polaridade que o Bolsonaro explora. Você chega a ponto de ver a mesma notícia ou ver o mesmo vídeo, mas entender algo completamente diferente do outro”.
Investir em popularidade digital
Para mapear como essa comunicação digital tem resultado em popularidade, que pode ou não se confirmar nas urnas eleitorais, pesquisadores como Jonatas Varella, mestrando em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor de Metodologia de Pesquisa e head de Data Science no Instituto Quaest Pesquisa e Consultoria, trabalham com o conceito de “popularidade digital”.
Criado e aprimorado após 2018, o Índice de Popularidade Digital (IPD) surgiu dentro da academia, capitaneado por especialistas como o professor Felipe Nunes, também da UFMG. De acordo com o site oficial, o IPD utiliza dados do Facebook, Instagram e Twitter para comparar quais marcas ou personalidades têm maior popularidade nas redes sociais. A métrica é calculada usando um algoritmo de Inteligência Artificial que pondera a relevância de cinco conjuntos de métricas, permitindo comparar no tempo quem ou o que está se saindo melhor nas redes. Esse algoritmo monitora o desempenho por setor ou segmento de interesse.
Dentro dos muros da Universidade, “a gente começou a estudar um pouquinho sobre as redes sociais e como elas importam na relação com a política, e construímos um indicador para pensar seu impacto no voto”, conta Varella. A ideia de usar as três redes sociais que são a base do IPD nasceu a partir dos números de utilização pelos brasileiros. “Hoje a gente também trabalha com o Google, a Wikipedia e o YouTube”, revela.
Pouco antes da eleição de Bolsonaro, “começamos a perceber que os políticos estão cada vez mais se parecendo com personalidades, com pop stars. Então, eles precisam de um fã-clube para se manterem ativos e manterem sua base eleitoral ativa”, explica o pesquisador. Medir a visibilidade deles entre esses públicos, nesses espaços, foi uma consequência natural da observação sobre o protagonismo das novas redes.
Um dos parâmetros que mensura a popularidade digital de figuras políticas como o presidente Jair Bolsonaro e de seus opositores, como o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, envolve o grau de engajamento das bases de apoio, assim como sua capacidade de mobilização.
Para Varella, o atual governo não esconde que manter a popularidade digital é um de seus pilares mais importantes. “Desde 2014, Bolsonaro constrói uma persona on-line. Ele consegue, por exemplo, a partir do que ele faz como estratégia digital, se vender como uma pessoa antissistema, mesmo estando há 30 anos no governo. Isso não é por acaso, isso é uma estratégia de comunicação, que ele faz muito bem no digital”, opina.
A estratégia que envolve intensa atividade
nas redes sociais e aplicativos, com o objetivo de polarizar discursos, tem,
para Varella, a capacidade de “furar bolhas”. “Falem bem ou falem mal, mas
falem de mim”, sintetiza ele.
“Então, mesmo as pessoas discordando dele, as pessoas começaram a dar visibilidade para o Bolsonaro e para o que ele falava. E é a partir das redes que ele ganhou a capacidade de se mobilizar”, avalia o pesquisador.
O sonho e o pesadelo da democracia digital
Apesar de parecer um fenômeno local, a influência das redes sociais e dos aplicativos de mensagens pode ser percebida em praticamente todos os continentes.
O que começou nos Estados Unidos em 2016, se espalhou de forma particular e com contrastes específicos para países como a Inglaterra, em que o Facebook assumiu papel decisivo na decisão econômica que levou ao chamado Brexit. A Índia, similarmente ao Brasil, também sofreu com a difusão de fake news por meio do WhatsApp, o imbróglio resultou em restrições de compartilhamento e, neste ano, enveredou para uma batalha legal entre o governo do país e os donos do aplicativo. Já na África, em países como o Quênia, influenciadores virtuais têm sido contratados para fazer propaganda política que joga o público contra a imprensa, e após o desastre que envolveu o Facebook no genocídio dos rohingya em Myanmar, no Sudeste Asiático, o sonho que, até os anos 1990, encantava teóricos da internet e preconizava a construção de uma democracia digital, tem sido categoricamente questionado.
“Nós imaginamos que haveria uma possibilidade de uma maior participação, de uma mobilização via internet da sociedade, de tal maneira que, com isso, você aprofundaria e melhoraria a qualidade da democracia”, lembra o professor José Eduardo Faria, chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito (FD) da USP e organizador do livro A liberdade de expressão e as novas mídias, publicado pela Editora Perspectiva, em 2020.
Com o surgimento das tais novas mídias, a mentalidade era que “quanto mais cidadãos tivessem a capacidade de ouvir, menos vozes marginalizadas nós teríamos. Essa foi a premissa com a qual nós começamos a olhar o avanço das redes sociais e da comunicação on-line, só que à medida que o tempo foi passando isso não se confirmou”, afirma o professor.
Para Faria, a comunicação virtual “empobreceu a ação cívica e aumentou o poder de uma elite não representativa no controle das informações”. De acordo com o professor, empresas poderosas em setores de tecnologia passaram a controlar o acesso e fazer filtragem de conteúdo, “nem sempre se submetendo às leis locais”.
Isso também foi acompanhado por “um processo de erosão da competição de mercado”, lembra o especialista, ao destacar que grandes conglomerados foram formados nos últimos 20 anos.
“Ao mesmo tempo, a informação passou a ser vista por esses grupos como o Facebook, o Google e outros como uma espécie de commodity. Para as plataformas, aquilo é um produto”, aponta ele. Esse fato ajudou a degradar a comunicação on-line, o que empobreceu a qualidade do debate democrático.
“Você vai começar a perceber que, em vez de você ter na internet, nas redes sociais, uma ação proativa, o que você tem é uma ação negativa ou uma ação reativa por meio de um processo de xingamento, de desqualificação da informação, da qualificação do seu adversário, da disseminação de mentiras”, enumera o docente ao salientar que, nas redes, cidadãos passaram a enxergar a política por meio de estereótipos, muitas vezes, em oposição binária.
Conforme o professor, “quando você trabalha com os estereótipos, e é isso que o Bolsonaro descobriu e valorizou de 2018 pra cá, você enxerga claramente uma espécie de relação ‘amigo versus inimigo’”. Para ilustrar isso, Faria evoca o pensamento do jurista alemão Carl Schmitt, um dos mais importantes juristas da primeira metade do século 20, que acabou se tornando simpatizante do nazismo “uma espécie de intelectual orgânico do constitucionalismo nazista”, sintetiza o professor.
Para o intelectual alemão, assim como o domínio da moral é determinado pelas noções de bem e mal, o estético, pelas noções de belo e feio, o econômico, pelas categorias do lucro, o político poderia ser definido a partir da distinção “amigo-inimigo”. Na internet, nos dias atuais, essa dinâmica foi ressuscitada e incentivada em prol do populismo digital.
“Na internet é tudo muito presente, você fala com poucas palavras, e o segredo é que, quanto mais violento você for, quanto mais agressivo você for, mais seu discurso será ouvido”, sumariza o docente.
É preciso responsabilizar e educar
Embora a escalada de influência e poder das grandes empresas de tecnologia esteja cada vez mais clara aos olhos das nações do mundo, suas invenções e, em especial, os usos que diferentes grupos atribuem a elas não são de fácil regulamentação.
Apesar de seus serviços estarem presentes no planeta inteiro, quando problemas de ordem social e política acontecem, especialmente envolvendo crimes específicos como o uso de disparos em massa como propaganda política ilegal, suas sedes estão localizadas em lugares virtualmente inalcançáveis para países como o Brasil.
Para exemplificar, o professor Faria discorre: “Nós sabemos, mais ou menos, como tipificar uma conduta como crime por meio de uma linguagem objetiva, por meio de conceitos determinados. Agora, quando (o jurista) é obrigado a lidar com uma tecnologia nova que vai mudando dentro de um processo extremamente veloz, você não tem uma rotina, você não compreende bem aquele fato que você vai definir como o comum delito, você não sabe como você vai conseguir definir aquela situação nova e complexa”.
De acordo com ele, para lidar com questões envolvendo novas mídias, os legisladores enfrentam inúmeras dificuldades, já que normas objetivas nem sempre dão conta da questão.
Por isso, para pesquisadores como João Guilherme Bastos dos Santos, a aproximação de plataformas como o próprio WhatsApp e seu setor de políticas públicas, dos órgãos e instituições de pesquisa tem sido fundamental. “Acho que, atualmente, a posição do WhatsApp é bem diferente do que naquele momento ali de 2018.”
E muito além de apenas criminalizarmos novas tecnologias ou deixarmos por conta das grandes empresas a autorregulação de políticas de uso, que podem permitir brechas capazes de desvirtuarem democracias, precisamos compreender esses usos e seu contexto.
Para Santos, apesar das redes e aplicativos permitirem a disseminação rápida de uma série de narrativas problemáticas, essas narrativas não surgiram inteiramente nas redes. “Essas informações dialogam com o lastro cultural de várias coisas que as pessoas já viram e a partir daí fazem uma ponte com outros pontos. Muitas vezes, você tem um arcabouço bem cristalizado de coisas que as pessoas acreditam e você faz, na verdade, pontes, com atores novos com coisas novas. E isso dá um lastro de veracidade para aquela coisa que ela de outro modo não teria”, explica ele.
Embora para a professora Leticia Cesarino as soluções propostas pelas empresas sejam “muito tímidas”, o debate sobre os usos de apps e redes sociais avançou bastante e cabe às organizações considerarem um novo modelo de negócio, que envolva uma “algoritmização que segmente menos” e, por consequência, não contribua para difusão prejudicial de diferentes interpretações de uma mesma realidade.
Além disso, para os especialistas, é essencial que países como o Brasil incentivem o letramento digital. Afinal, nenhum governo ou grupo político deveria se abster de usar os recursos de comunicação que atinjam seu público de forma ágil e abrangente. Entretanto, quando essa comunicação é utilizada para enfraquecer a democracia, suas instituições e estereotipar o debate, é crucial que nós, os usuários, passemos a entender melhor como essas novas tecnologias – dos smartphones até aplicativos e redes sociais que neles habitam – realmente funcionam.
Do Jornal da USP
Veja: Quem semeia o caos colhe o quê? https://youtu.be/yLfPBPiRBik
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