14 outubro 2021

Crônica da quinta-feira

Catabil sobre o Índico

Luciano Siqueira

 

Faz um calor quase insuportável no Rio de Janeiro, 39,9 graus, naquela tarde de 31 de janeiro de 1951. O presidente Getúlio Vargas acaba de tomar posse. Após o juramento formal dirige-se às escadarias do Palácio do Catete e pronuncia emocionado discurso diante da multidão que o consagra.

– Não semearei ilusões nem farei prodígios, afirma.

Minha atenção, concentrada naqueles lances iniciais de um novo momento histórico, de repente é desviada pelo sacolejo abrupto do turboélice da Air Link que nos transporta de Durban, na África do Sul, para Maputo, capital de Moçambique, em cumprimento de missão oficial. Parece catabil em estrada esburacada. Demorado. Persistente. Capaz de inquietar a quem muito viaja e jamais teve receio de avião. No assento ao lado, Roberto Trevas, coordenador de relações internacionais da Prefeitura do Recife, outro veterano de viagens aéreas, também se deixa perturbar. Pelas janelas minúsculas contemplamos a imensidão do Índico: nós e o mar, imenso mar a perder de vista – e o catabil prossegue perturbador.

Cintos ajustados, um olho na linha do horizonte e o outro nas coisas que teimam em balançar dentro do avião. À nossa frente, quase ajoelhada, imperturbável, a única aeromoça a serviço dos poucos passageiros – morena-jambo de olhos cor-de-mel e alvo sorriso, cabelos negros lisos como os de uma índia -, equilibra-se como pode e enfileira caixinhas de suco artificial, sanduíches, latas de refrigerante e outras coisinhas do precário serviço de bordo.

- Esse sorriso me tranquiliza. E inspira uma crônica.

- Muito bonita, é verdade – concorda Roberto Trevas.

- Parece de origem indiana.

- Ou paquistanesa.

- Qual será o nome dela?

- What’s your name? – pergunta Trevas com o seu impecável inglês de sotaque paraibano. E completa: - Meu amigo aqui é um escritor brasileiro e deseja fazer uma crônica de que você será personagem. Precisa saber o seu nome.

Sempre sorrindo ela pronuncia algo que não compreendo. Depois escreve numa folha de papel: Loganie. E, apesar do balouçar irritante da aeronave, move-se com habilidade e a todos serve com graça e presteza.

Vergonha ficar assim abalado quando nossa fada-madrinha sul-africana faz o seu trabalho como se nada de anormal houvesse. O sanduíche é sem gosto, o suco tem sabor estranho (de maçã?) e o pensamento voa. Afinal, Vargas vai iniciar o governo com o apoio de apenas um terço da Câmara dos Deputados. Feito o primeiro governo Lula. Tem amplo apoio popular, como Lula, mas a direita oposicionista, comandada pela velha UDN, que nem o PSDB de hoje, o bombardeia com acusações de todos os tipos. Tenta desmoralizar o presidente, acusando-o de conivente com corruptos – embora nenhuma evidência haja de que tenha acobertado um ato ilícito sequer. Mais turbulência – novamente o catabil sobre o oceano. Mas é preciso manter a serenidade – e até sorrir, como Loganie, que se desdobra em gentilezas talvez acreditando que esse amigo de vocês seja mesmo um escritor. Que pense assim, não faz mal. Coisas da vida. E da política. Mal-entendidos e turbulências que devem ser enfrentadas com paciência e leveza.

E assim vamos até Maputo, sob a proteção daquele sorriso apaziguador, que nos dá tranquilidade para voltar à leitura de Quem matou Vargas – 1954, uma tragédia brasileira, de Carlos Heitor Cony (Editora Planeta, 2007). E já em terra firme escrever essa quase-crônica.

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