03 outubro 2021

Crônica de domingo

Caro amigo

Cícero Belmar*

 

Estava certo o poeta inglês John Donne: “Nenhum homem é uma ilha”. Apesar dos oceanos que sempre existirão a nos limitar, precisamos ser-com os outros para nos constituir. Os amigos é que nos dão amplitude.

Penso no dom da amizade desde que soube da produção do longa “Depois do trem”, dirigido pelo paulista Joel Pizzini. Protagonizado por Aramis Trindade, o filme é baseado na vida e obra do poeta de primeira grandeza da literatura brasileira Joaquim Cardozo.

As filmagens, com a trégua da pandemia, começaram neste setembro, no Recife. O produtor Vitor Campanario, sempre que precisou, ligou para o poeta José Mário Rodrigues. Foi aqui que me peguei refletindo sobre a amizade. Zé Mário, assim o chamo, funcionou quase como consultor.

Apesar da diferença de idade, os dois poetas eram grandes amigos: por mais que não tenhamos vocação para as travessias que nos afastam de nossas ilhas, somos viajantes longínquos em busca do amor fraterno.

Através dos amigos completamos o que a alma ainda não tem. Joaquim Cardozo já era o humanista, o erudito, o dramaturgo, o poeta, o engenheiro calculista de renome nacional, quando conheceu o jovem Zé Mário, poeta da chamada Geração 1965, do Recife.

Quem apresentou um ao outro, no Rio de Janeiro, em fins dos anos 1960, foi o escritor José Condé. O encontro possibilitou a empatia, a reciprocidade, a boa vontade, a afinidade. Virou amizade intelectual, duradoura, nesse exercício delicado que é ser-no-mundo.

Somos destinados a dimensões continentais de sentimentos e palavras: desde o primeiro contato, todas as vezes que ia ao Rio, Zé Mário o procurava para falar da terrinha, sobre a vida e a poesia. Em 1975, Zé Mário lançou o livro de poemas, de sua autoria, “Os Motivos”.

Joaquim Cardozo é que escreveu as orelhas: “A poesia de José Mário Rodrigues dá a impressão de um jogo de laços topológicos; nele existe o conteúdo de formas verbais que se entrelaçam. Daí se chega à desnecessidade de símiles, de imagens, de metáforas, e outras figuras da linguística retórica… Num jogo sutil de significados e significantes perdura na sua verve, a imagem acústica do significante, no sentido em que Saussurre a compreendeu”.

Havia sintonia e admiração. Como também é jornalista, Zé Mário o entrevistou para o suplemento cultural do Jornal do Commercio e para o Jornal Universitário, em que trabalhava. Uma entrevista por escrito. Anos depois, o jornalista Geneton Moraes Neto escreveu o livro “Caderno de Confissões Brasileiras”, que tem um capítulo com base nessa entrevista.

“A letra nítida e irregular enche 16 páginas manuscritas que Joaquim Cardozo entregou ao poeta José Mário Rodrigues, a quem devotava além de amizade, admiração”, afirmou Geneton. A amizade é a união de terras opostas. E um fim, em si.

A entrevista foi publicada, depois, no livro “Poesia completa e Prosa de Joaquim Cardozo”, organizado por Everardo Norões. Nela, Cardozo responde perguntas de Zé Mário sobre a vida, o tempo, a paz, o Oriente.

Nos últimos anos de vida, já voltando a morar no Recife, Cardozo teve Zé Mário sempre por perto. A comemoração dos 80 anos de Joaquim Cardozo foi organizada pelo amigo, que também foi companhia muito presente quando ele apresentou sinais de demência. Amizade profunda, de quem cuida, e que prosseguiu até o fim da vida de Cardozo, em 1978, aos 81 anos. Ser amigo é ser-com o outro, que se dispõe a sentir.

Muitas informações importantes foram repassadas ao filme. Entre os telefonemas, Zé Mário, que não é ator, foi convidado para fazer o papel de um músico que cotidianamente pegava o mesmo trem que Cardozo, quando este ainda era secundarista. O músico e Cardozo eram amigos.

É o trem que dá título ao filme. Uma metáfora da vida? Ou é a própria amizade uma metáfora para quem veio ao mundo, como todos nós, destinados a “ser-com”?

Assim nos fala José Mário: “Sou o que vim da montanha/ mesmo sem ter ido à montanha/ sou o que vim”. Trem que corre, como o tempo, como a vida: “És meu único amigo/ meu repouso/ e vens justamente/ quando as nuvens estão tramando inverno”.

[Ilustração: Pablo Picasso]

*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 

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Veja: Mais do que nunca vale o diálogo sem preconceitos https://bit.ly/3kbDHqq

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