10 outubro 2021

Leniência & corrupção

A ESCOLHIDA
Uma crônica sobre o escândalo da vacina que Bolsonaro não rejeitou
ANA CLARA COSTA, revista piauí

 


S
entados em torno de uma mesa no 15º andar de um edifício anexo do Congresso Nacional, os servidores do gabinete do senador Renan Calheiros (MDB-AL) começaram a ler um lote de mais de 1,5 mil páginas de telegramas diplomáticos recebidos pela CPI da Pandemia. Fazia duas semanas que a CPI vasculhava documentos, tomava depoimentos, alinhava pedidos de quebra de sigilo. O objetivo era investigar a omissão fatal do governo de Jair Bolsonaro no combate à pandemia. Havia a escassez de oxigênio em Manaus, a demora na compra de vacinas, a atuação clandestina do gabinete paralelo, a insistência do presidente em difundir remédios ineficazes. Os telegramas, reunidos em mais de duzentos arquivos de computador, deviam dar uma ideia sobre a desastrada conduta do governo para trazer imunizantes do exterior. Até que o servidor Weiller Diniz de Oliveira, assessor de Calheiros há mais de dez anos, leu um telegrama despachado de Nova Delhi, capital da Índia, que lhe chamou a atenção.

O documento informava que Bolsonaro enviara uma carta ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, datada de 8 de janeiro de 2021. Na carta, o presidente dizia que a Covaxin, uma vacina indiana, já fora incluída no Programa Nacional de Imunizações. Era estranho. O imunizante não tinha sequer sido comprado e as autoridades sanitárias brasileiras ainda não haviam aprovado seu uso. A leitura de outros despachos diplomáticos deixava evidente que o governo estava empenhadíssimo na compra da Covaxin, vacina que não tinha autorização de uso nem mesmo na Índia. A urgência destoava do desprezo habitual de Bolsonaro com relação à imunização. Àquela altura, o governo já assinara um acordo para comprar 100 milhões de doses da AstraZeneca, mas ignorara três ofertas de vacina da Pfizer no Brasil, enquanto o presidente fazia questão de debochar da CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan, de São Paulo. Dois dias antes de enviar a carta a Modi, Bolsonaro se negara publicamente a comprar seringas e afirmara que a imprensa “potencializava” o vírus. Por que o governo estava tão empenhado em comprar a Covaxin, um imunizante do qual quase ninguém ouvira falar?

Os telegramas da Índia causavam estranheza, mas, isoladamente, não queriam dizer muita coisa. “Era uma linha do tempo de um comportamento anômalo”, explicou outro técnico que trabalhou na CPI e pediu para não ser identificado por não ter autorização para dar entrevistas. O servidor que leu os telegramas no dia 16 de maio registrou mentalmente a informação. Três semanas depois, já no início de junho, a CPI recebeu mais de oitocentas páginas que compunham um inquérito aberto pela Procuradoria da República do Distrito Federal para investigar os desvios do governo na gestão da pandemia. Junto com a papelada, um ofício da procuradora Luciana Loureiro informava o seguinte: “Anexo aos autos, o depoimento sigiloso de servidor do Ministério da Saúde ouvido no dia de hoje [foi ouvido no dia 31 de março]. Mantenha sigiloso. Tema: Bharat Biotech.”

Como Bharat Biotech é o nome do laboratório indiano que estava produzindo a Covaxin, acendeu-se o sinal amarelo. Só que o “depoimento sigiloso” não estava no anexo, como dizia o ofício. A CPI solicitou que o material fosse compartilhado, mas a procuradora Loureiro, temendo que o envio do depoimento prejudicasse a investigação, não atendia aos pedidos. No dia 9 de junho, os senadores se reuniram e escalaram o colega Randolfe Rodrigues (Rede-AP) para falar com a procuradora. Deu certo. De posse do áudio do depoimento, Rodrigues reuniu um grupo de senadores e técnicos para ouvi-lo. Na gravação, o servidor Luis Ricardo Miranda, que trabalhava desde 2018 como coordenador de importação do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, contava que vinha sendo pressionado para autorizar a compra da Covaxin. Recebia telefonemas à noite e até nos fins de semana e ouvia pedidos para fazer vista grossa às irregularidades do negócio.

A conexão estava feita. A CPI encontrara o primeiro sinal de que havia um esquema montado no governo para favorecer a compra de 20 milhões de doses da Covaxin ao preço de 1,6 bilhão de reais. No plano diplomático, o presidente prometia comprar a vacina junto ao governo da Índia. Na burocracia interna do Ministério da Saúde, pressionava-se para que o negócio saísse, atropelando as normas internas. Entre um ponto e outro, o esquema estava povoado por vigaristas interessados em saquear os cofres públicos por meio de um negócio bilionário. Daquele momento em diante, a CPI da Pandemia ganhou novo rumo – e o governo Bolsonaro perdeu de vez o discurso de que viera para combater a corrupção. O esquema estará descrito nas mais de mil páginas do relatório final da CPI, a ser divulgado neste mês de outubro, no qual o presidente será acusado de uma penca de crimes. Entre eles, deverão constar prevaricação e crimes contra a saúde pública, contra a administração pública, contra a paz pública e contra a humanidade, charlatanismo e incitação ao crime. Esse rosário de malfeitos, na avaliação dos senadores, pode lastrear um robusto pedido de impeachment por crime de responsabilidade.

O escândalo da Covaxin começou a tomar forma um ano antes, em 28 de maio de 2020, uma quinta-feira fria e nublada em São Paulo. Naquela noite, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, se dirigia a um compromisso sigiloso: jantar no apartamento do empresário e advogado Marcos Tolentino, na Chácara Klabin, um bairro de classe média alta da Zona Sul. Recém-empossado no cargo, Pazuello acabara de substituir o ex-ministro Nelson Teich e assumira com a disposição de cumprir todas as exigências de Bolsonaro – em especial, a autorização para uso da cloroquina em pacientes infectados com o coronavírus. No jantar, Pazuello conhecia apenas um dos convivas, o deputado Ricardo Barros (PP-PR), que pouco depois viraria líder do governo na Câmara. Ao chegar, o ministro foi apresentado ao anfitrião, dono oculto do FIB Bank, uma firma que emite cartas de fiança. Também foi apresentado ao empresário Francisco Emerson Maximiano, dono da Precisa Medicamentos, uma intermediadora de negócios do setor farmacêutico, e seu diretor, Danilo Berndt Trento, além de Wagner Potenza, presidente do FIB Bank de Tolentino.

O assunto do jantar permanece em segredo. A então mulher de Pazuello, Andrea Barbosa, contou a senadores da CPI da Pandemia que esteve no local naquela noite, mas achou a conversa desinteressante e o ambiente muito cheio, num período em que as mortes por Covid-19 escalavam as estatísticas. Chamou o motorista e foi embora. É certo que ninguém falou sobre vacina contra o coronavírus, pois o assunto ainda não estava na pauta, mas também é certo que o encontro não honra a biografia dos presentes, uma vez que todos, até hoje, negam ter ido à casa de Tolentino. (As duas autoridades públicas do grupo estavam na capital paulista naquela noite. No caso de Pazuello, consta de sua agenda oficial a visita a São Paulo. No de Barros, aparece na prestação de contas de gastos parlamentares apresentada à Câmara dos Deputados, que inclui recibos de passagens de ida e volta para São Paulo. Os dois, no entanto, afirmam que estavam em outros lugares que não ali.)

O grupo reunido no apartamento tinha larga experiência em vendas para o governo, particularmente para o Ministério da Saúde. Francisco Maximiano negociava com o poder público desde o início da década de 2010, quando era dono da Global Gestão em Saúde, que intermediava a compra de medicamentos e insumos para o setor público e atuava no ramo de benefícios farmacêuticos para empresas. Já a Precisa Medicamentos, também de propriedade de Maximiano, vinha fornecendo insumos para o Ministério da Saúde desde maio de 2018, bem antes da gestão de Pazuello. Marcos Tolentino e Danilo Trento, os outros dois nomes do quarteto, haviam comandado a Alta Farma, uma importadora de insumos que chegou a ter 22 contratos com o setor público. Eram todos homens de negócio que atuavam no setor de saúde – e ter a chance de falar pessoalmente com Pazuello mostrava-se uma oportunidade de ouro.

Eram, também, parceiros de confusões. Em 2016, quando Ricardo Barros fora ministro da Saúde, a Global de Maximiano deu um desfalque no ministério: vendeu medicamentos importados para tratar uma doença rara em 152 pacientes, recebeu 20 milhões de reais antecipados e nunca entregou a mercadoria. O Ministério Público investiga o caso, mas até hoje não encontrou resposta para um enigma: a Global não tinha licença para importar remédios, um requisito mínimo e básico para entrar no negócio, mas, mesmo assim, o ministro Ricardo Barros a contratou formalmente – e pagou antecipado. Sem a entrega, a solução seria convocar a segunda colocada na licitação, mas Barros insistiu para que fosse mantido o contrato com a Global.

Até hoje a empresa não devolveu o grosso do dinheiro aos cofres públicos. O deputado e Maximiano são réus no processo sobre o assunto que corre a passos lentos na Justiça Federal do DF.

Quando contratou a Global Gestão em Saúde, Ricardo Barros sabia com quem estava lidando. Anos antes, a empresa se tornara conhecida por receber um aporte irregular de 40 milhões de reais do Postalis, fundo de pensão dos funcionários dos Correios. As investigações da época, que não chegaram a lugar algum, conseguiram ao menos revelar que a Global depositara 9 milhões de reais para um conhecido lobista de Brasília, Milton Lyra, que tinha bom trânsito nos Correios. Era uma sugestão de que a Global conseguira o negócio à base de propina. Depois, em outro negócio obscuro, a Global foi contratada para distribuir o vale-farmácia para funcionários da Petrobras. O contrato, de 500 milhões de reais, acabou rompido quando a estatal descobriu que o benefício não estava sendo distribuído integralmente.

O elo mais sólido entre os presentes no jantar, no entanto, era o próprio anfitrião. Dono de um emaranhado de mais de trinta empresas, todas em nome de parentes ou laranjas, o advogado Marcos Tolentino tinha uma trajetória improvável. Nasceu em São Paulo, mas começou a carreira como vendedor de precatórios em Curitiba, quando foi apresentado ao deputado Ricardo Barros, cuja base eleitoral fica no interior do Paraná. Ainda como vendedor de precatórios, conseguiu um feito notável. Com ajuda de Celso Russomanno, então deputado pelo PP-SP, ganhou uma concessão de tevê, a Rede Brasil de Televisão, em São Paulo. Com a emissora, deu um salto. Usou-a para lavar dinheiro num esquema de compra de uma vaga no Tribunal de Contas do estado de Mato Grosso – e aproximou-se da bancada evangélica e do então deputado Jair Bolsonaro.

Mas sua amizade com Ricardo Barros só prosperou depois que o deputado assumiu como vice-líder do governo de Dilma Rousseff e, mais ainda, quando virou ministro da Saúde de Michel Temer. Quem conhece os dois relata que Tolentino tem uma postura subserviente em relação ao deputado e comporta-se como um “cumpridor de ordens”. Quando foi convocado para depor na CPI da Pandemia, Tolentino esboçou sua estratégia de defesa com a ajuda de Barros. Quando chegou a vez de Barros depor, Tolentino o acompanhou até a CPI e assistiu à parte de seu depoimento – atitude que os senadores consideraram como uma afronta, dado o envolvimento do advogado em todas as irregularidades sob investigação no Senado.

Encerrado o jantar na Chácara Klabin, os negócios prosperaram. Danilo Trento, o diretor da Precisa Medicamentos que também costumava prospectar negócios para Tolentino, conseguiu concluir uma transação que se arrastava desde o ano anterior. Com a ajuda dos dois cônsules honorários da Índia no Brasil, Leonardo Ananda Gomes e seu pai, Elson Gomes Junior, que há anos vêm intermediando negócios entre empresas brasileiras e indianas, Trento fechou a venda de 10 milhões de unidades de preservativos femininos para o Ministério da Saúde, ao preço de 31,5 milhões de reais. Fabricados pela Cupid Limited, sediada em Mumbai, os preservativos seriam pagos em Hong Kong. Era uma triangulação estranha: produzida na Índia, a mercadoria se destinava ao Brasil, mas o pagamento seria em Hong Kong. Isso já era incomum, mas a venda acabou suspensa por quebra contratual. A Precisa atrasou a entrega dos produtos.

Os preservativos femininos – e o contato com a Índia – ajudaram a azeitar o caminho do que viria a ser conhecido como o escândalo da Covaxin. Em outubro do ano passado, a Bharat Biotech anunciou que estava disposta a vender sua vacina para o setor privado, e não apenas para governos, como faziam – e ainda fazem – os principais fabricantes do mundo. Danilo Trento enxergou a valiosa oportunidade. Tomou as primeiras providências e, no mês seguinte, a Precisa Medicamentos já estava sondando o interesse do mercado privado pela Covaxin. No início de novembro, Trento fez uma consulta informal a alguns membros da Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas (ABCVAC), entidade que representa 416 clínicas e laboratórios. Eles demonstraram interesse na compra. Em janeiro, a ABCVAC enviaria a seus associados uma carta detalhando a proposta e acrescentando um alerta incomum, em letras maiúsculas: INFORMAÇÃO SIGILOSA SOB PENA DE RESPONSABILIZAÇÃO DA CLÍNICA ENVOLVIDA EM QUALQUER VAZAMENTO.

A correspondência dizia que cada dose custaria de 32 a 40 dólares, a depender da quantidade da encomenda. Era um preço salgadíssimo, que proporcionaria uma margem de lucro superior a 100% para a Precisa Medicamentos. O setor privado não tinha autorização para comprar vacinas – uma exclusividade do poder público –, mas, apesar da proibição, 59 clínicas toparam o negócio. Apostavam que logo seriam liberadas para competir com o SUS (Sistema Único de Saúde) na compra de imunizantes. As tratativas evoluíram bem e, em janeiro de 2021, as clínicas pagaram um sinal de 10% sobre o valor da encomenda, o que resultou num depósito superior a 30 milhões de reais em favor da Precisa Medicamentos.

O interesse das clínicas da ABCVAC abriu as portas da Bharat Biotech para Trento e Maximiano, que conseguiram sentar à mesa de negociações com os indianos. Encaminhado o negócio no setor privado, o passo seguinte, e bem mais ambicioso, era agora emplacar a venda da Covaxin para o governo. No dia 20 de novembro, quando alguns estados fazem feriado pelo Dia da Consciência Negra, Maximiano reuniu-se com o então secretário-executivo do ministro Pazuello, o coronel da reserva Elcio Franco, notório pelo seu broche de lapela, que exibe uma caveira atravessada por uma faca. Até aquele momento, o governo parecia satisfeito com a encomenda de uma única vacina, a AstraZeneca, e não se mexia para ampliar a oferta de imunizantes. Pior: fazia quase dois meses que nem se dera ao trabalho de responder à terceira carta da Pfizer, oferecendo 70 milhões de doses, a 10 dólares cada.

O coronel da caveira, no entanto, achou que a Covaxin era, esse sim, um excelente negócio. Ao ser informado por Maximiano de que a vacina poderia custar 10 dólares por dose, ou até menos, o coronel disse que o governo estava interessado na oferta. Com seu aval, começou-se a preparar uma viagem à Índia para tratar da compra. Nos primeiros dias de janeiro de 2021, uma numerosa comitiva embarcou para Nova Delhi. Além de Trento e Maximiano, estavam no grupo um filho de Maximiano, Felipe, e uma diretora da Precisa, Emanuela Medrades. Juntaram-se à caravana os dois cônsules honorários da Índia, os mesmos facilitadores do negócio dos preservativos, e diretores da ABCVAC.

A comitiva não contava com nenhum representante do governo, mas tinha um trunfo maior para negociar a compra da Covaxin: aquela carta de Bolsonaro para Narendra Modi, o premiê indiano, informando que a vacina já fora incluída no plano de imunização do Brasil. A essa altura, os militantes da Covaxin já tinham conseguido estabelecer relações próximas com a família Bolsonaro. Flávio Bolsonaro chegou a acompanhar Maximiano numa audiência no BNDES, na qual o empresário foi pedir uma linha de crédito. Tolentino era convidado para eventos no Palácio do Planalto. Trento, por sua vez, se aproximara de Eduardo Bolsonaro. Ao depor na CPI, Trento negou qualquer relação, embora tenha sido desmentido pelo conteúdo de mensagens interceptadas pela Justiça mostrando que ambos se conheciam.

O fato é que a carta de Bolsonaro para Modi era uma vantagem para a turma: servia como um abre-alas poderoso junto ao governo da Índia e, claro, ao próprio laboratório Bharat Biotech. Na mesma correspondência, Bolsonaro também mostrava uma urgência incomum em receber antecipadamente 2 milhões de doses da AstraZeneca, que, embora inglesa, é fabricada na Índia. Pedia que Modi fizesse a gentileza de mandar as doses para “a imediata implementação de nosso Programa Nacional de Imunizações”. Na verdade, Bolsonaro estava apenas correndo para vacinar algum brasileiro antes que seu rival, o governador paulista João Doria, aplicasse a primeira dose da CoronaVac.

Até onde a CPI apurou, a urgência em trazer 2 milhões de doses da AstraZeneca não teve corrupção, mas teve desperdício de dinheiro público provocado por interesse político. Na ânsia de vacinar antes de Doria, o governo fez uma trapalhada típica de quem trabalha no caos administrativo: fretou dois aviões para pegar as vacinas – um Airbus A330neo, o maior da companhia aérea Azul, cujo custo até hoje não foi revelado, e uma outra aeronave, contratada por meio da DMS Agenciamento de Cargas e Logística, ao custo de 500 mil dólares. Ninguém sabia que estavam sendo alugados dois aviões para o mesmo fim. A aeronave da Azul, coberta com um adesivo gigante nas cores da bandeira onde se lia “BRASIL IMUNIZADO – SOMOS UMA SÓ NAÇÃO”, já estava no Recife, pronto para decolar para a Índia, quando chegou a notícia de que a mercadoria não estava pronta para entrega. Para não perder a viagem, o governo pediu à Azul que aproveitasse o avião para levar cilindros de oxigênio a Manaus, onde doentes com Covid agonizavam sem ar nos hospitais. O avião da DMS nem saiu do solo. Os 500 mil dólares, como se previa no contrato, não foram devolvidos aos cofres públicos.  (Dias depois, em 22 de janeiro, numa operação discreta e sem motivação política, a embaixada brasileira em Nova Delhi despachou os 2 milhões de doses para o Brasil a bordo de um avião da Emirates. Custou apenas 55 mil dólares.)

As tratativas para a compra da Covaxin, no entanto, corriam bem. No dia 6 de janeiro, a comitiva da Precisa Medicamentos foi recebida pelo embaixador brasileiro na capital indiana, André Corrêa do Lago. No telegrama que o diplomata enviou para o Itamaraty, reunido no pacote entregue à CPI, Corrêa do Lago informou que Maximiano, que liderava o grupo, mencionou a existência de conversas com o Ministério da Economia para a abertura de linhas de crédito favorecendo clínicas privadas interessadas em comprar vacinas. Maximiano dizia que a ideia era combater o que chamou de “oligopólio” das grandes farmacêuticas no Brasil: a norte-americana Pfizer, a inglesa GSK e a francesa Sanofi. Era estranho, pois o setor privado nem tinha autorização para negociar vacinas. Talvez estivesse apostando que, mais à frente, o quadro mudaria.

No dia 10 de janeiro, Maximiano, acompanhado de parte da comitiva, pegou em Mumbai o voo de volta para o Brasil. No dia 12 já estava em Brasília para uma reunião com técnicos do Ministério da Saúde. Empolgado com o negócio bilionário que se materializava, não quis responder a uma pergunta elementar dos servidores: qual seria o preço da dose da Covaxin, embora em reunião anterior já tivesse acenado com o valor de 10 dólares. No memorando do encontro  enviado à CPI, os técnicos dizem que Maximiano demonstrou “desconforto em informar os valores”. No mesmo dia, porém, Elcio Franco, o coronel da caveira, recebeu um ofício do diretor executivo da Bharat Biotech, Krishna Mohan Vadrevu, informando que a dose sairia por 15 dólares, bem mais do que os 10 dólares que Maximiano prometera meses antes. O ofício também dizia que, se em cinco dias o governo confirmasse a compra, o laboratório conseguiria entregar 2 milhões de doses até o fim de janeiro. Primeira curiosidade: a carta de Krishna Mohan não fazia qualquer menção à Precisa Medicamentos, a intermediadora do negócio. Segunda: Elcio Franco não respondeu à Bharat. Terceira: uma semana depois, o Ministério da Saúde informou à Precisa que aceitava dar início à compra do imunizante ao preço unitário de 15 dólares, num total de 1,6 bilhão de reais. Quarta: a Precisa Medicamentos nunca tinha importado doses de vacinas antes.

Com o negócio avançando, o Ministério da Saúde fez o empenho do dinheiro em 22 de fevereiro, já nos últimos dias da gestão de Pazuello. Empenho é o termo técnico usado para definir que a verba pública está reservada e não pode ser destinada para nenhum outro propósito. Com o dinheiro garantido, o ministério e a Precisa Medicamentos assinaram o contrato no dia 25 de fevereiro. Mas havia um obstáculo no caminho. A Anvisa não autorizara o uso da Covaxin no Brasil. O imunizante não estava nem mesmo sob análise da agência sanitária. De que valeria importar uma vacina que não podia ser aplicada? Ou que levaria ainda semanas, talvez meses, para atender todas as exigências da Anvisa? A questão estava sendo discutida no Congresso, pois o governo enviara uma medida provisória na qual permitia que a Anvisa autorizasse a importação de qualquer vacina sem registro no Brasil, desde que tivesse sido aprovada pelas agências sanitárias dos Estados Unidos, União Europeia, Japão, China ou Reino Unido. A MP fora aprovada pela Câmara dos Deputados no início do ano, mas não incluía a agência da Índia, conhecida pela sigla CDSCO. Antevendo o problema, o deputado Ricardo Barros, que a essa altura já era líder do governo, vinha tentando resolver esse entrave.

No dia 3 de fevereiro, Barros fez uma emenda incluindo a CDSCO na lista das agências sanitárias estrangeiras e deu uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada no dia seguinte. Atacou o trabalho da Anvisa e disse que o governo precisava “enquadrar” a agência, que usava filtros burocráticos em excesso. “Eles não entenderam ainda. Estão fora da casinha, não sabem que estamos numa pandemia, que precisamos de coisas urgentes, que precisamos facilitar a vida das pessoas. É só exigência. Não é possível que tenha onze vacinas aprovadas em agências do mundo inteiro e nós só temos duas, e eles não estão nem aí com o problema”, disse. Na entrevista, Barros não fez menção que seu parceiro Maximiano estava comprando vacina na Índia. A nova redação da medida provisória foi aprovada no dia 23 de fevereiro.

Em março, com o contrato entre a Precisa e o ministério já assinado, estava tudo acertado para a importação, mas a Covaxin enfrentava problemas na própria Índia, onde ainda estava sendo submetida a testes clínicos. Em um telegrama enviado no dia 11, o embaixador André Corrêa do Lago comunicou o Itamaraty que o laboratório Bharat Biotech pedira ao governo indiano para autorizar o uso emergencial da Covaxin, liberando o imunizante dos testes a que vinha sendo submetido. No mesmo telegrama, Corrêa do Lago informou que o governo indiano havia autorizado a futura remessa de 4 milhões de doses da Covaxin para o Brasil. Com esse desdobramento, o Itamaraty em Brasília, que ainda estava sob o comando de Ernesto Araújo, chegou a interceder em favor da Precisa, marcando reuniões entre a Bharat Biotech e a Anvisa para agilizar o negócio.

 

Agora, as pressões passaram a se concentrar na Anvisa. A Precisa Medicamentos, que concordara em assumir os riscos de eventuais efeitos colaterais da Covaxin, não conseguia apresentar à agência seu plano de farmacovigilância. A Bharat Biotech, por seu turno, também tinha dificuldade de entregar os documentos necessários. Um servidor do Ministério da Saúde, William Amorim Santana, fazia o meio de campo entre a agência e a Precisa. Lendo-se seus e-mails, recolhidos pela CPI, fica-se com a impressão de que Santana trabalhava para a Precisa, e não para o ministério. Ele, assim como outros funcionários, avisava a empresa dos comunicados que recebia, e chamava a atenção para certos aspectos.

Na promiscuidade burocrática, a Precisa despachava e-mails para o Ministério da Saúde e se dava ao direito de copiar diretores da Anvisa. A agência chegou a reclamar formalmente. Em e-mail dirigido ao coronel Elcio Franco, pediu que o Ministério da Saúde concentrasse toda a comunicação: “Encarecemos que as manifestações no âmbito desse processo sejam centralizadas por esse ministério”, dizia, alertando que aquilo podia “causar tumulto à instrução processual”. A tal “instrução processual” estava particularmente confusa porque as partes – apesar da assinatura do contrato – não paravam de pedir mudanças.

O diretor Roberto Dias, que chefiava o Departamento de Logística do Ministério da Saúde, foi particularmente ativo nas alterações. A Precisa chegou a solicitar que o governo antecipasse o pagamento de 45 milhões de dólares pela Covaxin, coisa que não estava prevista no contrato original. Roberto Dias concordou e pressionou o servidor Luis Ricardo Miranda, o mesmo que prestou o “depoimento sigiloso” ao Ministério Público, para que encaminhasse a modificação contratual. Miranda resistiu o quanto pôde – e o pagamento antecipado não saiu. Em outro ofício, a Precisa pediu que o Ministério da Saúde colocasse o contrato sob sigilo. Apesar de incomum por se tratar de uma compra pública, o pedido foi acatado.

Roberto Dias chegara ao cargo na gestão do ministro Luiz Henrique Mandetta por indicação do ex-deputado federal Abelardo Lupion (DEM-PR), que o contratara quando comandou a Secretaria de Infraestrutura no governo do Paraná. Mandetta recorda que, depois que deixou o ministério, toda a sua equipe foi substituída – menos Dias. “Roberto tinha uma experiência com logística no Paraná. E ele, no período em que estive lá, não apresentou qualquer problema. Nunca houve ruído. Mas quando eu saio, todos os meus são exonerados, menos ele. O que indica que ele buscou apoio político para ficar”, diz o ex-ministro. Quando Dias trabalhou no governo paranaense, o estado era governado por Cida Borghetti, mulher do deputado Ricardo Barros. 

Disposto a fazer a compra da Covaxin de qualquer jeito, o Ministério da Saúde não via nenhum problema em todos os problemas. A forma de pagamento, por exemplo, era uma triangulação estranha – tal como aquela usada na compra de milhões de preservativos femininos. O 1,6 bilhão de reais seria pago em Cingapura a uma empresa chamada Madison Biotech PL, cujo sócio fundador é o presidente da Bharat Biotech, Krishna Murthy Ella. Ou seja: a vacina era da Índia, seu destino era o Brasil, mas o dinheiro ficava em Cingapura, um conhecido paraíso fiscal. O ministério também não viu problema nas garantias do negócio. Chegou a aceitar que a Precisa apresentasse uma carta de fiança irregular, emitida pelo FIB Bank, a empresa de Marcos Tolentino, o anfitrião do jantar da Chácara Klabin. Era irregular porque, pela lei, as garantias que lastreiam qualquer compra do governo só podem ser apresentadas em um destes quatro formatos: ou dinheiro, ou títulos da dívida pública, ou seguro-garantia (emitido por uma seguradora) ou fiança bancária (emitida por um banco). O FIB Bank não é seguradora e, apesar do nome, também não é banco.

Além disso, o FIB Bank é um poço de irregularidades. Seu capital está lastreado em um conjunto de terrenos em Curitiba, mas, segundo documentos levantados em cartório pela CPI, a localização acabou alterada para São Paulo. “Os terrenos foram voando para São Paulo”, ironizou a senadora Simone Tebet (MDB-MS), integrante da CPI da Pandemia, na sessão em que se questionou a fraude. Não era tudo. A carta de fiança do FIB Bank estava assinada por Roberto Ramos, que havia pelo menos três anos não era mais presidente da empresa – nem participara de conversa alguma. Seu nome constava como presidente porque os dois sócios do FIB Bank haviam morrido e Tolentino era um sócio oculto. Roberto Ramos nem sequer foi consultado previamente. Estava tudo tão errado que, ao ser convocado para depor na CPI, Ramos resumiu sua situação numa frase grosseira: “Desculpe a palavra, mas o meu rabo vai arder.” Ele depôs e mentiu à vontade. Mentiu ao dizer que efetivamente atuava no FIB Bank, que era presidente da empresa e que participara da negociação do contrato.

Mesmo irregular, a carta de fiança do FIB Bank foi aceita pelo Ministério da Saúde, que também – outra marmelada – autorizou que fosse entregue dez dias depois do prazo. Nada disso passou pelo crivo da Controladoria-Geral da União (CGU), que, por regra, deveria ter acompanhado todo o processo de compra da Covaxin. Quando o governo recebeu a oferta de vacinas da Pfizer, a CGU avaliou o negócio minuciosamente. No caso da Covaxin, a omissão começou por obra do Ministério da Saúde, que preferiu não acionar o órgão para fazer a análise prévia do contrato. A CGU, apesar de ter tomado conhecimento das tratativas com a Bharat Biotech, que logo vieram a público, também não se interessou pelo negócio. Só se mexeu para examinar o contrato em junho, depois que a CPI descobriu as irregularidades.

No final de julho, depois de examinar o contrato, o titular da CGU, o ministro Wagner Rosário, disse não ter visto nada de errado nos atrasos, nas mudanças contratuais e nos erros da Precisa. Afirmou que o único movimento suspeito era uma adulteração nos documentos feita pela empresa. A investigação de Rosário gerou desconfianças até mesmo na própria CGU. Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, técnicos abriram uma outra auditoria sigilosa, em paralelo à do ministro, para analisar o contrato. Rosário é militar, amigo do presidente Bolsonaro e adepto das mesmas grosserias. Chamado a depor na CPI, foi irônico, desrespeitoso e, acusado de omisso por Simone Tebet, teve um rompante machista e disse que a senadora estava “totalmente descontrolada”.

Com a omissão da CGU, a malandragem correu solta. Naquela única irregularidade detectada pelo órgão, a Precisa Medicamentos adulterou uma carta da Bharat Biotech para se enquadrar nos requisitos burocráticos do Ministério da Saúde. Na carta, o laboratório indiano dizia que a Precisa era sua “representante” no Brasil, mas a Precisa acrescentou, por conta própria: “representante e distribuidora exclusiva”. Mas os senadores encontraram uma falcatrua maior: a Precisa não tinha nem mesmo assinado um contrato com a Bharat Biotech. Como não apresentou tal documento, a CPI ordenou uma operação de busca e apreensão no escritório da Precisa – e não achou nada que confirmasse a formalização do negócio. “É gravíssimo: como o governo firmou um contrato de aquisição de vacina com uma empresa que não tem nem compromisso formal com o fornecedor?”, questiona o senador Randolfe Rodrigues. Na busca e apreensão, descobriu-se ainda um documento mencionando que a Precisa dividiria os lucros da venda da Covaxin com a Invexia, empresa com sede nos Emirados Árabes Unidos, cujo representante está envolvido numa fraude com testagem em massa de Covid na Índia.

Diante de tantas pressões, irregularidades e desvios, na época o servidor Luis Ricardo Miranda decidiu contar o que se passava para seu irmão, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), um bolsonarista de primeira hora, hoje arrependido. Os dois resolveram então levar o caso a Bolsonaro, imaginando que o presidente não soubesse de nada e, ao saber, fosse tomar alguma providência. No dia 20 de março, um sábado, os irmãos Miranda foram recebidos no Palácio da Alvorada. Ao depor na CPI, o servidor contou aos senadores que, depois de relatar tudo o que sabia, Bolsonaro disse que aquilo era “coisa do Ricardo Barros”. Também prometeu, segundo os irmãos Miranda, que pediria para a Polícia Federal investigar tudo.

Não aconteceu nada. Bolsonaro nunca pediu investigação policial. Quando o caso veio a público, o governo divulgou três versões diferentes. Disse, primeiro, que a cronologia da denúncia estava errada. Verificou-se que não estava. Depois, disse que mandou o ministro Pazuello investigar. Não colou, porque o ministro fora demitido um dia depois da conversa no Alvorada. Disse então que, na verdade, Pazuello pediu que a denúncia fosse investigada por seu subordinado, o coronel Elcio Franco, que teria tomado todas as providências e, apesar do empenho investigativo, não encontrou nada. Também não colou, porque o coronel deixou o cargo quatro dias depois do suposto início da “investigação”. Até hoje, talvez acuado pelos rumores de que a conversa no Alvorada tenha sido gravada pelos irmãos, Bolsonaro não desmentiu a denúncia dos Miranda.

No dia 4 de abril, duas semanas depois de ser informado sobre as maracutaias em torno da Covaxin, Bolsonaro voltou a ligar para o primeiro-ministro indiano. Dessa vez, o lobby era outro. O presidente queria pedir a liberação de insumos para a fabricação de hidroxicloroquina no Brasil e, como se fosse um representante comercial, chegou a informar que dois laboratórios brasileiros estavam interessados em produzir o remédio – a Apsen Farmacêutica, presidida pelo empresário bolsonarista Renato Spallicci, e a EMS, do empresário Carlos Sanchez. Como, àquela altura, a ciência já provara cabalmente que a hidroxicloroquina não era eficaz para a Covid, ninguém mais estava interessado na substância, de modo que o pleito de Bolsonaro pôde ser logo atendido. Cinco dias depois da conversa com Modi, Bolsonaro informou que os insumos haviam sido liberados. A Apsen disse que, no ano passado, seu faturamento com a venda de cloroquina cresceu 30% em relação ao ano anterior. A receita da EMS com a venda do remédio cresceu vinte vezes desde 2019. Carlos Sanchez enviou dois emissários à CPI pedindo para não depor e não ter seu sigilo bancário quebrado. O senador Ciro Nogueira (PP-PI), então membro da CPI e hoje ministro da Casa Civil, empenhou-se para que os pleitos do empresário fossem atendidos. Depois de conversas nos bastidores, Sanchez conseguiu os dois objetivos.

Semanas mais tarde, já no final de abril, Bolsonaro ainda ouviu calado mais uma “coisa do Ricardo Barros”. No dia 29, seu líder subiu à tribuna da Câmara para denunciar que a Anvisa estava embromando na liberação de vacinas – e, pela primeira vez, mencionou especificamente a Covaxin, cuja compra o presidente sabia estar eivada de irregularidades. “Nós temos 500 milhões de doses de vacinas contratadas”, disse Barros. “A programação de entrega de vacinas não pôde ser cumprida porque não houve liberação da Anvisa nem da Covaxin, nem da Sputnik, nem de outras vacinas que estão lá com pedido de uso emergencial.”

Naquele mesmo 29 de abril, a CPI da Pandemia iniciava sua primeira reunião. Buscava os erros do governo na condução da pandemia e tropeçou num caso exemplar de corrupção. Bolsonaro e seus auxiliares alegam que a operação da Covaxin não causou nenhum dano ao erário, pois o contrato foi rompido sem que qualquer pagamento tivesse sido feito. A estratégia de defesa não menciona dois aspectos. Primeiro, que a vacina indiana só deixou de ser comprada porque a CPI descobriu a maracutaia. Segundo, que a tentativa de cometer um crime é também um crime. “No Código Penal há crimes que só valem quando consumados”, diz a senadora Simone Tebet. “Mas há outros em que a simples tentativa é considerada crime, ainda que com pena atenuada. É o caso dos crimes contra a administração, é o caso de corrupção. Quando um órgão de controle impede um desvio, isso não significa que o autor é eximido de qualquer penalidade.”

A procuradora Luciana Loureiro, da Procuradoria da República do Distrito Federal, começou a investigar a conduta do governo na pandemia no início de 2021. Chegou a ouvir mais de cinquenta depoentes e estava em busca de malfeitos administrativos cometidos na pasta da Saúde, desde a aquisição maciça de cloroquina à falta de repasses a estados e municípios para combater a Covid-19. Loureiro só está autorizada a investigar os atos administrativos de um ministro, já que, na esfera criminal, a atribuição é da Procuradoria-Geral da República. Não se sabe como a procuradora chegou ao servidor Luis Ricardo Miranda, mas ela logo percebeu a importância do depoimento.

Quando a CPI da Pandemia pediu cópia do áudio do depoimento de Miranda, a procuradora resistiu a ceder porque tinha receio de que vazamentos prejudicassem a investigação. Depois que os senadores ouviram o áudio naquela reunião no gabinete de Randolfe Rodrigues, o conteúdo logo viria a público. No dia 18 de junho, a Folha de S.Paulo noticiou a existência do áudio, mas a notícia não causou a repercussão que os senadores imaginavam. Três dias depois, o Jornal Nacional fez uma longa reportagem, e o assunto explodiu. “Quando saiu no JN, tudo mudou”, conta um técnico da CPI que acompanhou tudo de perto.

O depoimento dos irmãos Miranda foi o ponto alto da CPI e, a partir dele, descobriu-se que o Ministério da Saúde funcionava como um covil, atraindo picaretas e vigaristas dispostos a surrupiar de trocados a bilhões. Na turma dos trombadinhas estava o lobista Marconny Faria, que chegou a cobrar propina para conseguir para um “cliente” uma vaga de trabalho num órgão ligado ao Ministério da Saúde. Na turma dos tubarões, estava Roberto Dias, o amigo do deputado Ricardo Barros que dirigia o Departamento de Logística e controlava um portentoso filão do orçamento – cerca de 30 bilhões de reais empenhados somente em 2021. Dias, coincidência ou não, era o mais interessado na burocracia ministerial em abrir as portas, e os cofres, do ministério para a Precisa Medicamentos.

Desde então, os irmãos Miranda mudaram de vida. O servidor continuou colaborando com a CPI, sobretudo depois que o Ministério da Saúde vetou o acesso público ao processo de compra da Covaxin. Mas vive com medo. Não sai de casa, trabalha remotamente e nunca recebeu a segurança prometida quando se dispôs a denunciar o caso publicamente. Seu irmão, o deputado, conta que recebe ameaças sistemáticas nas redes sociais, como “sua hora vai chegar” ou “político não leva bala, só cai avião”. E está sendo investigado pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara por ter afirmado, em entrevista ao jornal O Globo, que Pazuello confessara ter sofrido pressões do presidente da Câmara, Arthur Lira, pela liberação de dinheiro. Miranda agora tem feito apelo aos senadores da CPI para não ser cassado. Bolsonaro, apesar de nunca ter desmentido Miranda, pediu a abertura de um inquérito para que o deputado seja investigado por “denunciação caluniosa”. Além disso, Miranda perdeu quase todas as emendas que pleiteara. Ele enumera: “Me tiraram 20 milhões de reais que estavam ligados a projetos no Ministério do Desenvolvimento Regional, depois mais 10 milhões que iriam para a educação. Todas as emendas que foram liberadas para a Câmara nos últimos dias, para mim, foram congeladas.”

O ex-diretor Roberto Dias, que comandava os 30 bilhões de reais, foi demitido do cargo no dia 29 de junho. O contrato de compra da Covaxin foi cancelado no dia 26 de agosto, cinco meses depois que Bolsonaro foi avisado das irregularidades. A família presidencial tomou distância dos suspeitos – Maximiano não aparece com Flávio Bolsonaro, Trento não aparece com Eduardo Bolsonaro e Tolentino não é mais convidado para o Palácio do Planalto. As 59 clínicas privadas, que anteciparam mais de 30 milhões de reais à Precisa pela compra da Covaxin, levaram um calote. O deputado Ricardo Barros continua líder do governo. Bolsonaro continua presidente da República.

O relatório final da CPI será encaminhado ao Ministério Público Federal e à Procuradoria-Geral da República, mas os senadores são céticos quanto à abertura de um processo de impeachment do presidente. “O relatório fundamenta muito bem o crime de responsabilidade. Há ainda um componente forte de corrupção e prevaricação”, diz o senador Humberto Costa (PT-PE). Ele, contudo, acha que o relatório da CPI não é mais forte do que aqueles que já constam nas dezenas de pedidos de impeachment na gaveta de Arthur Lira. “Razões para o impeachment já existem de sobra.”

Fim da história?

Nos bastidores da CPI, pode-se ouvir que a história acaba aqui embora devesse prosseguir. As investigações não conseguiram elucidar as conexões políticas que permitiram a um esquema de vigaristas abocanhar o contrato da Covaxin. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) informa que todos os tentáculos do escândalo levam ao principal sócio do governo Bolsonaro – o PP, partido presidido por Ciro Nogueira. “O que parece muito claro é que se trata de um esquema originariamente vinculado ao PP e que, num dado momento, precisou de apoio político extra para manter seus indicados na estrutura do Ministério da Saúde”, diz o senador, que dá um exemplo: “Foi o caso de Roberto Dias, enquanto durou.”

As investigações sobre o PP esbarraram em dois empecilhos. O primeiro foi a restrição do acesso às informações confidenciais da CPI. Repreendido pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, sobre o vazamento de dados sigilosos, o senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da comissão, fechou as portas aos senadores, permitindo que só tivessem acesso aos dados decorrentes de seus próprios requerimentos. A medida impediu, por exemplo, uma análise detalhada das quebras de sigilo bancário e fiscal da VTCLog, empresa de logística que, tal como o PP, tem longa relação com o Ministério da Saúde. A despeito desse histórico, até o fechamento desta edição, apenas o motoboy da empresa, Ivanildo Gonçalves, depôs na CPI. Os senadores descobriram que ele pagou boletos em nome de Roberto Dias, levantando a suspeita de que as despesas do ex-diretor eram bancadas pela VCTLog.

O segundo empecilho surgiu do bom relacionamento das empresas investigadas com o meio político. Em conversas em que pedem para não ser identificados, senadores contam que Francisco Maximiano, o dono da Precisa, é um negociador conhecido em Brasília e foi bastante próximo do operador do MDB, o lobista Milton Lyra, que passou uma temporada preso em 2018 por suspeitas de desvio e lavagem de dinheiro público. Maximiano, dizem os senadores, também tinha boa relação com o antecessor de Roberto Dias na diretoria de Logística do Ministério da Saúde. Seu nome é Davidson Tolentino de Almeida (sem parentesco com Marcos Tolentino) e ele foi indicado ao cargo por Ciro Nogueira na época em que Ricardo Barros era o ministro da Saúde. Um ex-assessor de Nogueira, em depoimento na Operação Lava Jato, confessou que Davidson Tolentino era o “homem da mala” do PP, responsável por coletar propina em Brasília e armazená-la em um bunker em São Paulo.

Até 1º de setembro, Davidson Tolentino dava expediente na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), órgão que concentra boa parte das verbas do “orçamento secreto”, a jabuticaba que o governo Bolsonaro reinventou para distribuir dinheiro público sem dar satisfações a ninguém. Davidson Tolentino também foi indicado para uma das diretorias da Codevasf por Ciro Nogueira. Tanto na oposição quanto na base de apoio ao presidente Bolsonaro, ninguém acha muito conveniente bulir com quem opera uma montanha de verbas. Assim sendo, os senadores concordaram em encerrar os trabalhos da CPI sem abrir outra investigação cujo foco seria a notável influência do pepista Ciro Nogueira dentro do Ministério da Saúde. Fuçar aí poderia causar inconveniências ao PP, a legenda que controla o filé dos cargos e do orçamento e dedica amor voraz ao governo Bolsonaro. É a nova política.

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