A PEC dos Precatórios
A solução da vez oferecidas
pelos “jênios” do Ministério da Economia apresenta agora uma outra conta que
pesa na estrutura orçamentária: o pagamento de precatórios
Paulo
Kliass, portal Vermelho www.vermelho.org.br
O debate político mais recente tem sido dominado pela velocidade de
tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 23 de 2021. A matéria
foi encaminhada pelo Presidente Bolsonaro ao Congresso Nacional no início de
agosto deste ano. Rapidamente, ela foi apelidada de “PEC dos Precatórios” e
assim tem sido tratada pela grande imprensa e pelos atores políticos envolvidos
na sua discussão e no seu encaminhamento.
Ora, mas por que essa alcunha, que nos faz aproximar bastante da esfera
da Justiça, se a Exposição de Motivos (EM) da matéria foi assinada pelo
superministro Paulo Guedes, o então suposto comandante em chefe da área da
economia deste governo? A resposta a esta indagação nos remete à essência da
política econômica daquele obscuro operador do sistema financeiro que tanto
colaborou para promover a aproximação do então candidato defensor da pena de
morte e da tortura junto à nata do mundo do financismo tupiniquim.
Paulo Guedes parece viver em uma redoma de vidro, isolado do mundo real,
desde a década de 1980. Logo depois de ter voltado ao Brasil, após dar uma
colaboraçãozinha básica na montagem dos programas dos chamados chicago
boys na ditadura sangrenta do general Pinochet do Chile, ele
incorporou de maneira definitiva o discurso da doutrina neoliberal. Fez fortuna
às custas do Estado e de suas maquinações com a perigosa área de tangência
incestuosa entra as finanças públicas e os interesses do capital privado aqui
no Brasil. Mas nunca perdeu a oportunidade de clamar contra o setor público e
de propor sua mais completa privatização.
Do ponto de vista do diagnóstico dos problemas da economia e da
sociedade brasileiras, ele nunca escondeu seu DNA associado à defesa das elites
dos endinheirados pela via do parasitismo. Assim, identificava no suposto
desequilíbrio estrutural na situação fiscal de nosso País um dos grandes males
de nossa sina coletiva. A solução passaria por uma reorganização destruidora da
administração estatal, que deveria incluir também uma redução brutal da
estrutura e do volume do gasto público no Brasil.
Austeridade fiscal é coisa do passado.
Ao repetir o mantra ultrapassado dos ajustes fiscais propostos até o
passado recente pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial
(BM), Guedes se desconectou completamente de seus congêneres ainda em vida
inteligente e ativa nos chamados países centrais e desenvolvidos. Isso porque a
partir da emergência da crise financeira de 2008/9, houve uma recuperação do
debate a respeito da importância do setor público como instrumento para superar
as dificuldades impostas pela recessão e pela paralisia, ambas provocadas pela
ameaça de bancarrota geral do sistema a partir da ameaça de falência de grandes
conglomerados bancários e financeiros.
A narrativa amarrada de forma umbilical à busca sistemática e obsessiva
de superávit primário e a implementação da austeridade fiscal a qualquer custo
ganha uma certa flexibilizada nos Estados Unidos e na União Europeia. A
emergência em promover aumento das despesas governamentais como forma de evitar
a propagação generalizada da crise abre uma janela para a aceitação menos
aterrorizante para eles de um certo grau de déficit público e mesmo de aumento
do endividamento dos governos. A urgência por introduzir um certo pragmatismo
nos condimentos da ortodoxia até então reinante abre caminho para uma espécie
de auto crítica envergonhada – de caráter geral, pessoal e institucional –
quanto aos equívocos praticados em nome da austeridade fiscal pelo mundo afora.
No caso brasileiro, no entanto, a blindagem para impedir a chegada de
tais ventos renovadores foi quase completa. As instituições de pesquisa
vinculadas ao poder do financismo, os órgãos de governo e os grandes meios de
comunicação seguiam ignorando o avanço das discussões em andamento no centro do
capitalismo global. Praticou-se austericídio à mancheia como nunca dantes, em
especial após a promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 95, de 2016, a
famosa regra do teto de gastos.
Ora, se a receita do povo da ortodoxia para superar as dificuldades na
área fiscal se resumia a cortes pelo lado da despesa, a situação se resolvia
sempre pela lógica simplificadora da conta de padaria. Ao olhar para a
estrutura e composição do orçamento da União, os tecnocratas do financismo
identificavam os itens que mais pesavam nas despesas e aí saíam em busca de
soluções tão milagrosas quanto destruidoras.
Precatórios são a desculpa da vez.
Assim foi com a previdência social e a suas reformas sempre focadas na
redução de direitos, com o intuito de diminuir os gastos com aposentadorias e
pensões. Afinal, os espertinhos “descobriram” que os benefícios pagos pelo INSS
conformavam um item expressivo dos gastos totais. De forma semelhante está
ocorrendo agora com a Reforma Administrativa, também com intenção de demitir
servidores e reduzir seus salários. Do mesmo modo, o argumento de plantão seria
a ponderação significativa dos gastos com pessoal no total do orçamento. Porém,
nunca passa pelo leque de alternativas verificar o que se passa com isenções e
deduções tributárias, bem com as sonegações mais do que conhecidas. Ou então
como enfrentar os gastos trilionários com rubricas financeiras, a exemplo do
pagamento de juros da dívida pública.
A solução da vez oferecidas pelos “jênios” do Ministério da Economia
apresenta agora uma outra conta que pesa na estrutura orçamentária: o pagamento
de precatórios. Para quem não acompanha a matéria, até parece que esses caras
descobriram a pólvora. Afinal, tudo é muito simples e fácil na manipulação das
planilhas de cálculo instaladas em seus computadores de seus gabinetes. Corta
aqui, corta ali e as coisas parecem mesmo se ajeitar no final. Porém, alguém
deve ter avisado que a saída com os precatórios esbarra em um obstáculo
constitucional. Sem problemas, pensou a pessoa encarregada da tesourada. A
gente prepara aqui uma PEC e pronto.
Só que a questão é um pouco mais complicada. Segundo a definição do
Conselho Nacional de Justiça:
(…) “Precatórios são requisições de pagamento expedidas pelo Judiciário
para cobrar de municípios, estados ou da União, assim como de autarquias e
fundações, valores devidos após condenação judicial definitiva. O pagamento de
precatórios está previsto na Constituição Federal.” (…)
Isso significa que a intenção de Paulo Guedes é transformar as dívidas
obrigatórias da União (e vale também para os entes subnacionais – Estados,
Distrito Federal e Municípios), consignadas em orçamento após condenação
judicial definitiva, em mera intenção de pagamento. É mais do que sabido que o
Estado tende a ser péssimo pagador de suas obrigações. Há um enorme
retardamento no reconhecimento das dívidas e mesmo nas etapas judiciais
seguintes para promover o pagamento. Há processos que duram décadas. Quando
finalmente são esgotadas as últimas possibilidades de manobras jurídicas, os
valores são inscritos como precatórios nas respectivas peças orçamentárias e o
não cumprimento de tais obrigações implica em crime de responsabilidade para o
chefe do Poder Executivo.
Pedalada de R$ 90 bilhões.
Paulo Guedes percebeu que no Orçamento Geral da União para 2022 existe um total de R$ 90 bilhões para honrar os compromissos judiciais do governo federal. Assim como tentou fazer com a previdência social ou com os gastos com pessoal, agora seus olhos brilharam para essa rubrica. O texto da EM deixa clara a intenção do governo Bolsonaro:
(…) Isso porque, segundo as informações encaminhadas pelo Poder Judiciário para composição da próxima Lei Orçamentária, cerca de R$90 bilhões deveriam ser direcionados para gastos com sentenças judiciais no Orçamento federal de 2022 (…)
Na sequência da argumentação enviada ao Congresso Nacional, Guedes ensaia um compromisso com a manutenção a ferro e fogo do teto de gastos, mas não consegue enganar mais ninguém com essa falsa narrativa apenas para inglês ver. Segundo ele, os limites da EC 95 e o impacto dos precatórios terminariam por comprometer os gastos em áreas sociais:
(…) Com os limites para o Poder Executivo estabelecidos pelo Novo Regime
Fiscal, a inclusão do montante necessário à honra das sentenças judiciais
ocupará espaço relevante que poderia ser utilizado para realização de
relevantes investimentos, bem como aperfeiçoamentos de programas e ações do
Governo Federal e provimento de bens e serviços públicos. (…)
Mas o fato concreto é que a PEC propõe romper o teto de gastos por meio
de um subterfúgio malandro – essa sim, uma verdadeira pedalada fiscal. Afinal,
se houvesse mesmo um desejo de reconhecer o equívoco do chamado Novo Regime
Fiscal, que congela as despesas públicas por longos 20 anos a partir de 2017,
bastaria o governo encaminhar uma PEC revogando a EC 95.
Mas não é essa a verdadeira intenção.
Lembremo-nos todos que o governo atualmente é dirigido pelo Centrão e pelo
fisiologismo no interior do Congresso Nacional. O Senador Ciro Nogueira (PP/PI)
é o Ministro Chefe da Casa Civil, tendo por interlocutores Rodrigo Pacheco
(DEM/MG) no Senado Federal e Arthur Lira (PP/AL) na Câmara dos Deputados.
Assim, o que está em vias de consolidação é a tentativa de institucionalizar a
prática de emendas parlamentares secretas e bilionárias dirigidas a alguns
parlamentares selecionados, sempre que estejam alinhados com os desejos e
interesses do Palácio do Planalto.
A “economia” (sic) com a postergação sine die dos R$ 90
bi dos precatórios, portanto, ofereceria uma porta de saída para Guedes
continuar fingindo que se mantém fiel à austeridade fiscal e seu compromisso
canino com o teto de gastos, enquanto arranja uma solução contábil e fictícia
para programas que Bolsonaro precisa urgentemente oferecer para fortalecer sua
intenção de reeleição em outubro próximo. Esse é, por exemplo, o caso da
repaginada que deu no Bolsa Família. Um golpe que não engana mais ninguém,
nessa manobra esdrúxula de propaganda para “chamar de seu” aquele programa que
o mundo todo sabe que tem a marca original de Lula e do PT.
Solução é revogar o Teto de Gastos e a EC 95.
Por outro lado, o corte nos precatórios ainda ofereceria de bandeja
valores astronômicos para a prática das chamadas “Emendas do Relator”. Na
verdade, um eufemismo para se referir a transferências obscuras e sem nenhuma
transparência de valores do Orçamento para cumprir aquilo que tradicionalmente
eram as chamadas “emendas parlamentares”. Tratava-se de rubricas de valores
menores a que os membros do legislativo tinham direito para uso de seu mandato
ou de suas bancadas, geralmente orientadas para atender interesses de seu
município, estado ou categoria de sua base eleitoral. Há 2 anos está em vigor a
novidade do “Emenda do Relator”, uma nova categoria para além das já
existentes. Uma verdadeira caixa preta, sobre a qual o Supremo Tribunal Federal
(STF) agora pretende lançar sua lupa.
Ao contrário do que Guedes alardeia em seu desespero para manter a boia
de salvação que oferece a Bolsonaro em seu final de governo, os valores
bilionários dos precatórios não significam que atende em apenas interesses de
grandes empresas. Parte expressiva deles são ações envolvendo grande número de
pequenos interessados, como aposentados e pensionistas do INSS ou servidores
públicos. Na verdade, falta transparência na apresentação destes grandes
agregados pelo Poder Judiciário. No entanto, o pior caminho é fazer tábula rasa
desse direito e dar um calote horizontal nas dívidas com cores constitucionais.
Enfim, trata-se de um bom debate. Mas nada que tenha a ver com a
desaparecida rigidez que Paulo Guedes alardeia ainda manter com a austeridade
fiscal. O rei está nu! Se a realidade evidencia que o teto de gatos já é coisa
do passado, cabe ao Congresso Nacional reconhecer tal fato e decretar a
revogação da EC 95. Afinal, o dito popular nos ensina que “antes tarde, do que
nunca”.
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Onde a
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