29 novembro 2021

Entre a falácia e o drama real

Cinco ministérios de Bolsonaro associam políticas a falsa reversão do
desmatamento
Entre as medidas que contribuiriam para índices estão destinação de terras públicas, regularização de garimpo e intervenção militar; desmate disparou na Amazônia
Vinícius Sassine, Folha de S. Paulo

 

Cinco ministérios do governo Jair Bolsonaro (sem partido) apontaram uma reversão do desmatamento da Amazônia, um mês após fim do ciclo com a maior devastação em 15 anos, e associaram políticas desenvolvidas pelas pastas a uma falsa constatação de diminuição dos índices de desmate.

Em uma reunião no dia 24 de agosto do Conselho Nacional da Amazônia Legal, que é comandado pelo vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB), os presentes trataram como certa uma redução de 5% no desmatamento do bioma, a partir de dados do Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Nesse encontro, representantes de cinco pastas —Ciência e Tecnologia, Agricultura, Defesa, Economia e Minas e Energia— listaram quais de suas políticas tinham levado à melhora dos números.

Entre as ações atreladas ao que seria um êxito no combate ao desmatamento estão a destinação de terras públicas a uso por posseiros, o que é apontado por críticos como porta para a grilagem, formalização do garimpo em região com pilhagem de ouro e impacto em comunidades indígenas, e a fracassada intervenção militar na Amazônia.

​O problema é que os números oficiais, divulgados pelo Inpe no último dia 18, apontaram um resultado bem diferente daquele tratado na reunião. Em vez de diminuir, o desmatamento da Amazônia na verdade explodiu, chegando a 13.235 km² no período que vai de agosto de 2020 a julho de 2021. Isso representa um aumento de 22% em relação ao ciclo anterior.

Desde 2006 não havia tanta perda de vegetação amazônica em território brasileiro.

O governo Bolsonaro segurou a divulgação dos dados do Inpe, concluídos e inseridos no sistema eletrônico do governo em 27 de outubro. Quatro dias depois, teve início a COP26, a Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas.

Os representantes do governo brasileiro no evento participaram das negociações internacionais sem mencionar o recorde de desmatamento.

Na última reunião do ano do Conselho da Amazônia, feita cinco dias após a divulgação dos dados oficiais, Mourão assumiu a culpa pelo fracasso das ações no bioma. "Não vou dizer que foi ministro A, ministro B ou ministro C. Eu não consegui fazer a coordenação e a integração da forma que ela funcionasse."

A fala é diferente do tom da reunião do dia 24 de agosto. A ata do encontro —que não foi tornada pública— mostra que os integrantes do conselho demonstraram um alinhamento à falsa constatação de reversão do desmatamento.

Secretário-executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, Sergio Freitas de Almeida "falou sobre a queda dos indicadores de desmatamento que vem sendo registrada nos dois sistemas, Prodes e Deter, por intermédio do Inpe". O Deter reúne dados de alertas de desmatamento. O Inpe é vinculado ao Ministério da Ciência.

A pasta teve ciência do relatório do Prodes, que consolida os dados de forma oficial, no mesmo dia da conclusão do documento, 27 de outubro. E não diz por que deixou de agir nos dias que antecederam a COP26; afirma apenas que o Prodes é programado para divulgação em dezembro.

O secretário-executivo emendou logo em seguida políticas do ministério associadas à tentativa de combate ao desmatamento da Amazônia: "projetos de bioeconomia" voltados a cadeias produtivas de açaí, cupuaçu, castanha e pirarucu.

O ministério não respondeu aos questionamentos da reportagem.

O representante do Ministério da Agricultura, Marcos Montes, "expressou a alegria ao ser informado que está sendo revertida a tendência do grave problema de desmatamento que temos e assim melhorar a imagem do país".

Segundo o secretário-executivo, a pasta "tem procurado avançar fortemente em relação às questões da bioeconomia e do ordenamento territorial", o que permitiria punir responsáveis por desmatamento ilegal.

No plano nacional para controle do desmatamento ilegal do MMA, o ordenamento citado diz respeito a destinação, uso e ocupação de terras públicas federais. A bioeconomia inclui produção madeireira e extrativismo.

Para Ane Alencar, diretora do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), a política do governo Bolsonaro de ocupação de espaços na Amazônia lança sinais que podem resultar em grilagem e desmatamento.

"O sinal é: ‘Se pegarmos essa terra hoje, podemos conseguir a posse dela no futuro.’ Há um sinal claro de desgovernança ambiental. A falta de um poder público colocando ordem faz com que as pessoas se sintam livres para ganhar dinheiro com novas fazendas, exploração de madeira e garimpo", diz Alencar.

Os dados do Ipam mostram que 54% do desmatamento na Amazônia em 2020 se concentrou em terras públicas.

O ministério afirmou que somente a ocupação e a exploração "direta, mansa e pacífica" anterior a 22 de julho de 2008 é passível de regularização. "A regularização fundiária não estimula a grilagem e novas ocupações irregulares", diz, em nota. Ocupações em unidades de conservação, terras indígenas e áreas de interesse da União não podem ser regularizadas, segundo a nota.

O representante do Ministério da Defesa no conselho presidido por Mourão disse ser importante a coordenação feita pelo colegiado, apresentou dados da intervenção militar na Amazônia e afirmou que "qualquer diminuição desse esforço vai impactar nos gráficos apresentados".

As três intervenções militares das Forças Armadas, feitas a partir de decretos de GLO (garantia da lei e da ordem) assinados por Bolsonaro, custaram R$ 550 milhões e terminaram num fiasco, com a explosão do desmatamento. O próprio Mourão reconheceu a falta de êxito das operações militares.

O Ministério da Defesa não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Já o Ministério de Minas e Energia exaltou a "queda dos índices de desmatamento" e detalhou no Conselho da Amazônia a atuação voltada à regularização do garimpo no Rio Tapajós, no Pará, por meio da formalização da permissão de lavra garimpeira. Essa formalização está a cargo da Agência Nacional de Mineração.

O garimpo ilegal no Tapajós impacta diretamente as comunidades indígenas da região. Segundo Carlos Souza Júnior, coordenador do programa de monitoramento do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), muitos dos garimpos ilegais estão dentro de territórios protegidos.

Para Alencar, do Ipam, é inimaginável uma recuperação e uma regularização de áreas de garimpo que se espalham pela Amazônia. "Esses donos de garimpo não têm CNPJ, retiram o ouro e mudam de lugar o tempo todo. É quase impossível organizar isso. E há questões de saúde e de impacto irreversível."

Segundo o Ministério de Minas e Energia, uma lei de 1989 permite a formalização de atividades de garimpagem. "Ao cumprir suas obrigações ambientais, que incluem a recuperação ambiental de áreas impactadas, a atividade de garimpagem realizada sob o regime de permissão de lavra garimpeira contribui para a preservação e recuperação da floresta", disse em nota.

O Ministério da Economia também exaltou redução de desmatamento, com base em dados de agosto, e disse ter agido para garantir "recursos e pessoas" voltados ao desenvolvimento sustentável na região.

Diferente dos outros presentes no encontro de 24 de agosto, o Ministério da Infraestrutura não fez nenhuma declaração sobre uma possível ligação entre suas ações e uma suposta queda no desmatamento. Em vez disso, o representante da pasta comunicou apenas avanços na busca pela licença ambiental para a pavimentação da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho.

Institutos que monitoram a devastação da Amazônia, como Ipam e Imazon, apontam a rodovia como foco de desmatamento e grilagem de terras públicas. "A BR-319 tem um papel social, mas o desafio é o descontrole de ocupação de terras públicas. É comum que novas estradas [conectadas a rodovias] sejam abertas ilegalmente por madeireiros e garimpeiros", diz Souza. Segundo ele, 95% do desmatamento se concentra a cinco quilômetros dessas estradas.

O GOVERNO BOLSONARO E A FALSA REDUÇÃO DO DESMATAMENTO DA AMAZÔNIA

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações

  • O que foi dito sobre o desmatamento em agosto: "O secretário-executivo do ministério, Sergio Freitas de Almeida, falou sobre a queda dos indicadores de desmatamento que vendo sendo registrada nos dois sistemas, Prodes e Deter, por intermédio do Inpe."
  • Políticas do ministério associadas à falsa redução do desmatamento: Estímulo à bioeconomia.
  • O que significam essas políticas: São citadas as cadeias produtivas de açaí, cupuaçu, castanha e do pirarucu.

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

  • O que foi dito sobre o desmatamento em agosto: "O secretário-executivo do ministério, Marcos Montes, expressou a alegria ao ser informado que está sendo revertida a tendência do grave problema de desmatamento que temos e assim melhorar a imagem do país."
  • Políticas do ministério associadas à falsa redução do desmatamento: Ordenamento territorial e estímulo à bioeconomia.
  • O que significam essas políticas: O ordenamento citado é a destinação, uso e ocupação de áreas em glebas públicas federais, vistos por críticos como estímulo à grilagem e ao desmatamento. Bioeconomia está relacionada a ampliação de produção madeireira e extrativismo.

Ministério da Defesa

  • O que foi dito sobre o desmatamento em agosto: "O chefe de gabinete do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas do Ministério da Defesa, major brigadeiro Flávio Luiz de Oliveira Pinto, falou dos números mais recentes da Operação Samaúma, que a Defesa entende que somente foi possível devido à sinergia que é proporcionada pelo conselho e que qualquer diminuição desse esforço vai impactar nos gráficos apresentados."
  • Políticas do ministério associadas à falsa redução do desmatamento: Intervenção militar a partir de GLOs decretadas pelo presidente.
  • O que significam essas políticas: Três operações –Verde Brasil, Verde Brasil 2 e Samaúma– duraram 16 meses, consumiram R$ 550 milhões e terminaram com disparada do desmatamento na Amazônia.

Ministério de Minas e Energia

  • O que foi dito sobre o desmatamento em agosto: "O secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral, Pedro Paulo Dias Mesquita, parabenizou a ação do Conselho da Amazônia e a queda dos índices de desmatamento com destaque para a importância da atuação integrada."
  • Políticas do ministério associadas à falsa redução do desmatamento: Formalização de permissão do garimpo na região do Rio Tapajós, no Pará.
  • O que significam essas políticas: O garimpo ilegal impacta as comunidades indígenas da região, amplia o desmatamento e contamina os cursos d’água com mercúrio.

Ministério da Economia

  • O que foi dito sobre o desmatamento em agosto: "O secretário especial de Produtividade, Carlos Alexandre da Costa, manifestou alegria em ver os dados de agosto. Após sair da última reunião do conselho, conversou com várias federações e associações para tentar apoiar a reversão dos dados."
  • Políticas do ministério associadas à falsa redução do desmatamento: Busca de soluções para a distância dos principais centros em relação à Amazônia e garantia de recursos e pessoas para desenvolvimento sustentável.
  • O que significam essas políticas: A pasta atua em regulamentação do ZEE (Zoneamento Ecológico-Econômico) e também na destinação de glebas públicas federais.

Fontes: Ata da 6ª reunião do Conselho Nacional da Amazônia Legal, realizada em 24.ago, e Plano Nacional para Controle do Desmatamento Ilegal 2020-2023, do Ministério do Meio Ambiente.

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Veja: Quem se junta para quê?  https://bit.ly/3m3IpbJ

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