22 dezembro 2021

Crônica da quarta-feira

Flagrante de solidão
Luciano Siqueira

 

Restaurante muito simples, mas organizado. Sempre cheio: cardápio razoavelmente atraente, preço acessível.

Self-service.

Os comensais chegam em grupos, crachás à vista, funcionários que são de empresas sediadas no bairro. 

Dão a impressão de que todos falam ao mesmo tempo, em voz alta, sorridentes, barulhentos.

Preferimos uma mesa no canto oposto ao caixa, perto da porta de entrada. Daí é possível olhar a cena de anglo privilegiado — condição satisfatória para quem, como eu, se compraz em observar pessoas e lugares.

Já havia notado outras vezes o cidadão de meia-idade, calvo, ligeiramente obeso, talvez 50 anos. Desprovido de crachá. Só.

Hoje pude encará-lo olhos nos olhos, como se diz.

Mas ele parecia não me ver, como nada enxergava ao olhar o entorno um tanto vagamente. Absorto. Impreciso. 

Mal tocava no que pusera no prato. Apenas bebia uma coca-cola como quem toma uma dose de whisky. Lentamente.

Por um instante nossos olhares se cruzaram e pude perceber a tristeza estampada em sua fisionomia, em absoluto contraste com algazarra do ambiente.

Ensaiei o comentário, à guisa de solidariedade:

— Barulho infernal, né?

— Eu gosto. Preciso disso...

Nada mais falamos porque ele virou o rosto e seguiu observando o entra e sai divertido da clientela.

E eu, que evito líquido ao almoço, pedi um suco de limão na intenção de ali permanecer por um instante mais e observá-lo. 

Meu Instinto solidário sugeriria uma conversa.

Impossível.

Ligeiramente inclinado, ele agora parecia observar as próprias mãos. 

O amigo que me acompanhava, olhos presos ao smartphone, parecia nada perceber. Sequer se dera conta do monossilábico diálogo que eu travara com o desconhecido.

— Vamos nessa?

— Vamos!

Saí com a certeza de que havia presenciado uma cena de solidão explícita, tão comum na cidade que encanta mas também oprime.

[Ilustração: Edward Hopper]

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Veja: A poesia em seus lugares e cores https://bit.ly/3BKdwhd

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