20 dezembro 2021

Crônica da segunda-feira

Perseguição na livraria

Luciano Siqueira

 

Vislumbro uma brecha na atribulada agenda e desembarco na grande livraria, onde entre livros permito-me duplo devaneio: o olhar sobre estantes de literatura brasileira e a mente livre para imaginar fragmentos em torno que sou, do que faço, do que desejo...

Uma janela de leveza que chega a ser um truque de sobrevivência para quem muito trabalha e sempre se vê às voltas com problemas e desafios de toda ordem.

Comparável a uma conversa em torno de um bom cappuccino.

Mas desta vez o prazer intelectual fortuito é interrompido pelo velho conhecido, que não chega a ser propriamente amigo.

Cumprimenta-me com o cotovelo e se diz surpreso por me reconhecer por trás da máscara de proteção contra a Covid, após tanto tempo sem me ver.

— Eu o reconheci pelo olhar!

Retribuo o cumprimento e apresso-me em anunciar que ali estou concentrado na escolha de um livro para presentear uma amiga.

E que tenho pouco tempo para fazê-lo, pois logo em seguida terei compromisso inadiável.

Por uns segundos imaginei que o antídoto funcionaria e que poderia tranquilamente retornar aos livros e à livre imaginação.

Ledo engano, como se dizia antigamente.

O dito cujo me seguia e, compulsivo, desferia comentários e perguntas como um boxeador que cerca o adversário e tenta nocauteá-lo.

— Saudade da Prefeitura?

— Não. Fui 16 anos vice-prefeito, cumpri meu dever e a vida continua...

— Tem visto Geraldo Julio?

— Não, às vezes conversamos por telefone - respondo com os olhos fixos no volume de Milton Hatoum.

Finjo ter visto, numa gôndola adiante, algo do meu interesse e me desloco rapidamente.

Porém impertinente e importuno, ele não me deixa em paz:

— Na literatura estrangeira quais são os autores de sua preferência?

— Depende do gênero.

— E dos escritores brasileiros quais você considera os melhores?

— Também depende do gênero.

— E quais os gêneros literários que mais você lê?

— Leio o que me interessa a cada momento.

— Então você não tem preferências fixas, né?

Nada respondo e finjo atender uma mensagem no WhatsApp.

— Você costuma ler textos no smartphone? - dispara o impertinente.

"Assim já é demais", pensei comigo mesmo. "Esse cara não se manca, não tem limites."

Resta-me fugir.

Mais uma vez finjo com o smartphone à mão e balbucio qualquer coisa sobre a hora do próximo compromisso.

— Eu entendo, vocês líderes sempre são muito ocupados - diz ele, não sei se sinceramente ou por banal ironia.

Aproveito a ligeira trégua para cair fora:

— Agora terei que ir, qualquer dia a gente toma um café e conversa com calma.

— Ótimo! Tome aqui meu cartão e anote meu telefone. Assim que tiver um tempinho livre, ligue que será um prazer revê-lo — disse ele, como se eu estivesse verdadeiramente interessado em sua impertinência.

Já em meu carro, no estacionamento do shopping, cometi um gesto que minha mãe Oneide classificaria como "falta de caridade", católica fervorosa que era. Rasguei o cartão de visitas do perseguidor em talvez vã expectativa de jamais encontrá-lo.

Conversar é sempre um prazer. Mas sob pressão, jamais!

Veja: A mentira o desgasta e o enfraquece; mas retém parte de sua base ignara https://t.co/Dp8f13AzZ4

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