19 dezembro 2021

Crônica de domingo

E se o transplantado entrar em órbita?

Luciano Siqueira

 

Leio na Folha que um médico astronauta norte-americano se dedica a imprimir em 3D tecidos humanos, em pleno espaço sideral.
 
O experimento científico tem a ver com a escassez de órgãos para transplante em indivíduos parcialmente mutilados.
 
Sou de uma geração que, na adolescência, lia ficção científica com certeza absoluta de que muito do que se imaginava jamais se tornaria realidade.
 
Voos espaciais, por exemplo.
 
Hoje, formado em medicina e de mente aberta a tudo o que a humanidade possa imaginar e fazer, não me livro entretanto do velho sentimento de estranheza quando me informo de atitudes tão usadas quanto essa, a reprodução de tecidos humanos numa máquina que me faz lembrar uma xerox qualquer da vida...
 
Haveria limite para reprodução de tecido humano assim desse jeito?
 
Qual jeito?
 
Numa máquina 3D, enquanto a nave espacial se mantém em órbita.
 
Que limite?
 
O tipo de células, por exemplo. Pois uma coisa é reproduzir tecidos do fígado, dos rins ou das unhas...
 
Porém reproduzir tecidos do cérebro já são outros quinhentos.
 
Meu receio é que o cidadão beneficiado com transplante de células do sistema nervoso central, replicadas numa maquininha, enquanto dá voltas pelo universo afora, possa ele mesmo "entrar em órbita" e não sair mais...
 
Então, o sujeito andaria em círculos, por exemplo.
 
Ou faria discursos quilométricos, que nem o finado amigo senador padre Mansueto de Lavor, do PMDB pernambucano, que toda vez que era instado a concluir suas demoradas falas em comícios, se via tomado de uma certa ansiedade e voltava ao ponto de partida, prolongando mais ainda sua peroração.
 
— Melhor não pressioná-lo – a turma dizia -, senão ele "entra em órbita" novamente e não consegue sair...
 
No mundo de hoje, de comunicação digital em tempo real, frases curtas e respostas rápidas, gente transplantada com material "orbital" pode se dar muito mal.
 
Perdoem-me astronautas cientistas, mas desconfio que seria desastrosa uma declaração de amor (que hoje em dia dispensa versos parnasianos e pede pouco mais do que um olhar insinuante) pronunciada por um benefiário de enxerto cerebral produzido durante rodeios intermináveis em torno da lua, quem sabe.
 
Pois o amor pede poesia e dispensa ciência. Ou não?
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As imagens da vida na arte, em fotografia e em vídeo https://bit.ly/3E95Juz

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