11 dezembro 2021

Crônica de sábado

Touro de ouro e Geografia da fome

Cícero Belmar*

 

Sinto muito, Josué de Castro, suas denúncias continuam sem serem ouvidas. Olha o resultado: neste 2021, quando faz 75 anos da publicação de um dos livros dos mais fenomenais já escrito neste País, “Geografia da Fome”, de sua autoria, a fome atinge cerca de 20 milhões de brasileiros.

Sim, eu sei que esta pandemia de covid-19, que se arrasa há praticamente dois anos, contribuiu. A população de rua aumentou e as estatísticas nos constrangem com tantas pessoas na extrema miséria. Ela também agravou os dramas sociais, as desigualdades, as diferenças profundas.

Mas você alertou, com a seriedade do cientista que foi: “A perspectiva dos próximos anos, se não se processar uma mudança radical na política alimentar do mundo, é bem mais alarmante”.

Cientistas são os profetas de nossos dias. No mês passado uma mulher foi presa roubando uns pacotinhos de tang e outros de macarrão instantâneo, num supermercado de São Paulo. Era para matar a fome dos cinco filhos. “Eu só queria ser gente”, disse a mulher, aos jornalistas.

Na mesma São Paulo, há duas semanas, colocaram a estátua de um touro de ouro, imitação cafona de Nova York, na frente do prédio da Bolsa de Valores brasileira. Disseram que simbolizava a prosperidade. Diante das críticas, tiraram o monumento da alienação de lá. Essa conta não fecha.

Geografia da Fome escandalizou o mundo há 75 anos ao provar que esse flagelo não era resultante só da escassez de alimentos. Mas, primeiro, da insuficiência calórica dos tipos de alimentos consumidos. Tipo macarrão instantâneo e tang, que não suprem necessidades vitamínicas.

E o principal motivo, o que fez a terra tremer, com a Geografia da Fome: o livro denunciou que ela existia, existe e existirá por ausência de políticas públicas. Por falta de vontade de gestores que não querem acabar com a fome. A miséria interessa a políticos escrotos, genocidas e congêneres.

O livro foi escrito em 1946 e se tornou um sucesso retumbante na Europa arrasada pela guerra. Josué de Castro se tornou o brasileiro mais conhecido no mundo, na década de 1950. Gilberto Freyre era seu rival. Ficaram famosas as polêmicas dos dois intelectuais, no Recife.

(Pausa para os comerciais. Escrevi um romance chamado “Rossellini amou a pensão de dona Bombom”, que narra a vinda do diretor de cinema, o papa do neorrealismo italiano para o Recife, em 1958, para filmar Geografia da Fome. No romance, evidencio os desencontros de Gilberto e Josué. Agora que vendi o meu peixe, voltemos ao ponto).

Homem de esquerda, deputado federal pelo PTB, Josué de Castro virou celebridade e autor de best-seller. Num dos seus livros, criou o mito do homem caranguejo. Como recifense, conheceu as palafitas em comunidades pobres. O homem caranguejo seria o que vivia em palafitas, se assemelhando em tudo aos crustáceos, arrastando-se na lama pegajosa. Aquele que, dos mangues, tira o sustento da família.

Josué, você tinha razão: estamos todos cada vez mais atolados nessa lama, caminhando para trás, como fazem os caranguejos. A situação piorou muito. Está explosiva.

Há um livro com escritos de Josué, reunidos e organizado por Anna Maria de Castro, que se chama “Fome: um tema proibido”. Nele, uma citação adaptada a partir de um pensamento de Einstein, diz: “O homem só poderá sobreviver a esta época mudando radicalmente a maneira de pensar, com uma nova consciência política, à base de uma nova experiência existencial”. Recado dado.

Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.

 Veja: Retomando a abordagem de aspectos relevantes da situação política https://bit.ly/2YS51Di

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