18 janeiro 2022

Crônica da terça-feira

A solidão é fértil

Luciano Siqueira

 

Num dos mais recentes documentários acerca da sua obra e vida, Chico Buarque diz precisar da solidão para criar.

Ou seja, há que sentir-se sozinho consigo mesmo para viver livremente esse estado da mente humana que é a abstração, a possibilidade de um distanciamento da realidade imediata, sem dela sair, mas podendo enxergá-la de fora para dentro.

Psicólogos consideram a capacidade de abstração uma expressão da inteligência.

Cá com meus modestos botões, suponho que quem se apega estritamente à realidade imediata jamais poderá compreendê-la, salvo superficial e fragmentariamente.

Com a evolução da humanidade, tem sido possível a construção de modelos de análise da realidade concreta que são um instrumento pelo qual se busca não apenas respostas para compreensão dos fenômenos materiais e humanos, mas para formulação de perguntas que inquietem a ponto de se desvendar a essência das coisas.

Claro que há uma diferença abissal, embora nem sempre reconhecível, entre a pura e inconsequente abstração (que mais ilude ou confunde) e a análise objetiva da realidade.

A dialética materialista se ocupa dessa segunda alternativa.

Abstração meramente idealista diz respeito à primeira alternativa.

— Por que esse "devaneio filosófico", se você curte alguns poucos dias de descanso com a família numa praia tranquila? — meus certamente escassos leitores poderiam perguntar.

— Justamente porque há tempo e condições de relaxamento suficientes para isso...

Na verdade, se não tenho os dons poéticos, literários e musicais de Chico Buarque, sou compelido pela militância política, que pretendo revolucionária e consequente, a uma boa dose cotidiana de abstração — para assim captar a essência do que acontece.

É como se para mim a abstração fosse fruto, e é, de uma luta cotidiana comigo mesmo para evitar sobreviver e agir impelido tão-somente pelo impulso do que fazer e de quase nada pensar.

Esse é o buraco que atrai muita gente imediatista e impaciente, que subjetivamente se sente realizada por funcionar em moto continuo, até alcançar a dose de cansaço diário que lhe obriga a parar para descanso.

Sim, Chico Buarque tem toda razão. 

Não que exatamente estejamos fisicamente isolados, mas que sejamos capazes de abstrair a realidade imediata e refletir sobre o sentido dos fatos e das coisas.

Isto sem necessariamente estamos numa casa de praia usufruindo de uma rede na varanda...

Fazer é obviamente indispensável. 

Pensar é imprescindível para fazer bem feito — e viver.

[Ilustração: Jean-Michel Basquiat]

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