22 fevereiro 2022

Alta tensão

Socos, chutes e dedo nos olhos

Cícero Belmar*

 

Esta cena é real, filmada pelas câmeras de um prédio: dois motoristas pararam num sinal de trânsito, desceram de seus carros, começaram a discutir, exaltados, com muita gesticulação, e em seguida a pancadaria correu solta. Trocaram socos, agarraram-se, um mandou o adversário para o asfalto, até que outras pessoas apareceram no vídeo para apartar o vale tudo.

Fazia parecer brigas juvenis, mas os envolvidos eram dois homens feitos. A cena ocorreu este mês na Avenida Agamenon Magalhães, uma das mais movimentadas do ensandecido trânsito do Recife. Recebi o vídeo pelo WhatsApp e fiquei impressionado com a epidemia. No caso, a de agressões e violência, que expõe cada vez mais a natureza humana feroz.

Não digo “instinto animalesco”, em respeito à minha doce e elegante cadela. Ela não perde as boas maneiras. Não sei qual a justificativa para aqueles dois se digladiarem. Quero acreditar que a troca de tapas, socos, chutes no saco e dedo nos olhos poderia não ter ocorrido. Pedir desculpas, aceitar desculpas, é um poder que todos nós temos. Convenhamos, é até uma forma mais urbana de resolver conflitos.

Fiquei pensativo. Concluí que aquela cena só poderia ter ocorrido nesse estranho tempo presente. Estamos tão vulneráveis, tão abusados em nossos direitos, agredidos na dignidade, que retaliamos de forma violenta, com facilidade, aos desentendimentos e mal-entendidos cotidianos.

Ultimamente, temos colecionado abusos e agressões institucionais e estruturais. No dia a dia nós nos sentimos insultados, provocados, “assaltados”. Mas, de uma hora para a outra, parece que ficamos de mãos atadas. Contraditórios, descontamos a raiva reprimida nas coisas mais banais e no convívio com as pessoas. Tudo serve para uma briga, uma discussão acirrada. Queremos tirar satisfação por causa de bobagens. Assim caminha a humanidade nesse Brasil brasileiro.

Houve uma distorção da nossa realidade, saímos de uma democracia cidadã direto para o fascismo. No poço fundo onde caímos a selvageria é a forma mais fácil de reação. A cultura do ódio incentiva isso e espera que todos sejamos delinquentes. Dar cabeçada ou querer quebrar o braço do outro são práticas típicas desse pântano.

Assim como aqueles dois respeitosos senhores do trânsito, qualquer coisa, vamos pra cima. Mas, reagimos com letargia quando nossa cidadania e liberdade são infringidas. Perdidos no reino das mesquinharias, não refletimos sobre o que de fato nos ofende, fere e causa dano.

O brasileiro não enxerga mais poesia no cotidiano. Falando sobre isso com meu pai, Cícero, que na semana passada fez 92 anos com lucidez, ele respirou fundo, como se não visse uma saída neste instante: “Está tudo desarrumado, o governo e a cabeça do povo”. Nessa conversa, lembrei-me do poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira, um clássico do modernismo brasileiro. (Fica bem fazer a referência neste centenário na Semana de Arte Moderna). Bandeira encerra o poema assim:

– “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”.

*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras

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