A leoa
Cícero
Belmar*
Fica parecendo fala de feminista. Mas o fato é que depois de assistir ao Canto Livre de Nara Leão, série documental dirigida por Renato Terra, na Globoplay, fiquei com a sensação de que, ao longo da história, o movimento de Bossa Nova quis invisibilizar o papel da mulher. De uma, pelo menos. Como dizem as ativistas, mexeu com uma, mexeu com todas.
Sou capaz, até, de fazer um abatimento nessa minha crítica. Não
sei se a coisa machista foi do movimento em si ou das narrativas forjadas
depois. Incontestável é que as histórias que prevaleceram têm a essência
patriarcal. Fazem pensar que só havia homem na Bossa Nova, movimento musical
surgido na década de cinquenta, que projetou a música brasileira em todo o
mundo.
Quer uma prova? É só perguntar a muitos dos que curtem a MPB
quais são os três principais nomes naquela efervescência musical. Na ponta da
língua: Tom Jobim, João Gilberto e Vinicius. Ok, dá para entender, sem eles não
existiria hoje, no nosso imaginário, o jeitinho de andar da Garota de Ipanema.
Tem essa coisa de eles serem compositores, da genialidade, e realmente foram
figuras essenciais para o movimento como um todo. Ah, vai: eles eram bons para
caramba.
Também não estou dizendo que Nara Leão ficou no mais completo
ostracismo, mas sim que a participação dela foi sendo minimizada. Talvez porque
ela tenha rompido com o movimento e, de vingancinha, deram-lhe um papel
secundário. Mas, a real, é que o empenho dela abriu espaços para o movimento
acontecer. Suas contribuições foram maiores e mais marcante do que se sabe. As
narrativas é que não dão a justa dimensão. Pronto, falei.
Na verdade, Nara foi além de um movimento de jovens descolados
da zona sul carioca. Enquanto os meninos ficavam naquela besteirinha enfadonha
de um barquinho, um sorriso e uma flor, ela se abriu para o mundo. E fez umas
conexões inteligentes, ousadas, construtivas.
Começou assim: por motivos pessoais, ela “saiu” do movimento.
Cansou de ficar olhando o mundo através do janelão do seu apartamento, da praia
de Ipanema. Era ali onde morava e reunia a turma até o amanhecer.
A leoa enxergou o morro, a cultura do povo, a arte que se
produzia por lá. Com a ajuda de Carlos Lyra, chegou aos compositores como Elton
Medeiros, Nelson Cavaquinho, Zé Ketti, João do Vale. A transgressão está no
olhar? Ou na alma? Foi uma transgressora. Como a arte se renova na
transgressão, foi assim que ela se tornou tão importante quanto a própria Bossa
Nova.
Gravou Cartola, que já era grife, mas também todo aquele pessoal
talentoso que jamais chegaria ao asfalto se não tivesse alguém influente que os
descobrissem. Nara fez o linque do samba de morro com a novidade que vinha da
zona sul carioca. As duas coisas tinham alquimia.
Paulinho da Viola diz, no documentário, que ela cantou o samba
com uma pegada de bossa, o que soou diferente. O jornalista e crítico Nelson
Motta, também no documentário, afirma que a audácia de Nara, de aproximar uma
coisa da outra, é que deu origem a essa tal de Música Popular Brasileira.
Grandiosa.
Isso sem contar que ela se misturou com o pessoal do Cinema
Novo, do “teatro novo”, lançou Maria Bethânia, foi a primeira artista a cantar
música engajada no Brasil. Nara Leão era foda, saiu da zona sul, mas nunca
“pagou” de dondoca. A artista fez o próprio caminho, construiu pontes. Somente
os poetas constroem* pontes.
*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras
Concordo plenamente com você, Cícero Belmar!
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