Violência no campo dispara no Brasil
Cristina Ávila, Amazônia Real
O
Brasil bate recordes de violência contra comunidades tradicionais e agricultores
familiares. Em 2021, cresceram em 1.110% as mortes consequentes de conflitos no
campo e houve dois massacres de indígenas e sem-terra. Matadores de encomenda,
agromilícias e agentes públicos cometeram 35 assassinatos em áreas rurais,
número superior aos 20 registrados em 2020. Foram mais de duas execuções por
mês na Amazônia Legal (80% do total do País). Na região Norte, a água também é
motivo de graves conflitos, com aumento de 18% de casos e 54% do número de
famílias envolvidas. Na parte amazônica de seu território, o Maranhão enfrenta
uma situação calamitosa, com aumento de nove vezes nos registros de
enfrentamentos por conta da água.
É o pior
cenário da série histórica registrada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT)
desde 1985. Nesta segunda-feira (18), a CPT lança o relatório “Conflitos no
Campo Brasil 2021”, um retrato cruel sobre a violência rural que não cessa. Em
20 de março de 2022, militares ao sul da Venezuela provocaram a chacina de três
homens, de 22 a 30 anos, e uma mulher de 45, do povo Yanomami que vive em
regiões de fronteira. Foi o segundo em sete meses na mesma Terra Indígena. Em
agosto do ano passado foram assassinados três indígenas isolados (sem contato)
Moxihatëtëa”, no garimpo Faixa Preta, do lado brasileiro, onde esse território
está invadido por 20 mil garimpeiros. O levantamento parcial da CPT já
contabiliza 14 assassinatos em 2022 no país, o que indica que a tendência é
esse cenário só piorar.
Outra morte
lembrada no relatório é o assassinato
dos ambientalistas José Gomes, o Zé do Lago, de sua companheira
Márcia Nunes Lisboa e sua filha Joane Nunes, em 9 de janeiro deste ano. Eles
atuavam na proteção de tartarugas dentro da Área de Proteção Ambiental Triunfo
do Xingu. Até o momento, o Estado não concluiu as investigações.
A
violência contra os Yanomami, que já foi abordada na série especial Ouro do Sangue
Yanomami e na cobertura da Amazônia Real, é
comparada ao Massacre de Haximu, ocorrido em 1993. Na ocasião, 16 indígenas
foram mortos. O caso, que contou com uma das atuações mais importantes do
Ministério Público Federal em Roraima, é um marco no julgamento do genocídio no
Brasil.
Essa
violência no campo parte também de agentes que deveriam proteger as minorias.
Segundo a CPT, em 13 de agosto de 2021 a Força Nacional de Segurança, com a
Polícia Militar de Rondônia, assassinou três sem-terra no Acampamento Ademar
Ferreira, em área da Liga dos Camponeses Pobres (LCP). “O número de
assassinatos no estado chegou a 11, sendo que 8 deles são de pessoas acampadas
ou aliadas do referido movimento social, o que indica uma verdadeira caçada dos
órgãos repressivos do estado e da União contra esse grupo”, afirma o documento.
Rondônia
detém o recorde nacional em 2021, com 11 mortes violentas. Em seguida, vem o
Maranhão com 9, Roraima, Tocantins e Rio Grande do Sul, com 3 assassinatos cada
um. No País, das 35 execuções no campo, 10 foram indígenas, 9 sem-terra, 6
posseiros, 3 quilombolas, 2 assentados da reforma agrária, 2 proprietários
familiares, 2 quebradeiras de coco babaçu e 1 pessoa aliada dos movimentos
sociais.
O número de
sem-terra assassinados cresceu 350% comparado ao ano anterior, enquanto o de
vítimas posseiros de terra foi multiplicado por seis. E as mortes ocorridas em
consequência de conflitos saltaram de 9 em 2020 para 109 em 2021. Um aumento de
1.110%. Dessas, 101 foram de indígenas Yanomami. Os conflitos também fizeram
crescer de 9 para 13 os registros de pessoas torturadas (44%) e agredidas
fisicamente de 54 para 75 (39%).
Segundo a CPT, o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT)
provocou o aprofundamento de “uma política antirreforma agrária, expropriatória
e violenta nas áreas rurais” do País. Os números comprovam essa nova realidade.
Os conflitos por terra cresceram 46%, o número de assassinatos 34% e os
conflitos por água triplicaram. Entre 2011 e 2015, foram registrados 6.737
conflitos no campo, envolvendo mais de 3,5 milhões de pessoas. No período
seguinte, de 2016 a 2021, esses números subiram a 10.384 conflitos e atingiram
5,5 milhões de pessoas.
A falta de água
304 conflitos por água no Brasil envolvendo 56.135 famílias:
A
falta de água para a vida de indígenas e ribeirinhos tem significado muito
diferente de abrir a torneira e não poder lavar louça. “Mudou a dinâmica de
nossa vida toda. Até nosso transporte. Nossos rios são nossas ruas”, relata
Lorena Curuaia, nascida em Jericoá, aldeia Xipaya-Curuaia, no centro da Volta
Grande do Xingu, em uma das áreas mais atingidas pelas secas provocadas pela
construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA).
“Não tem mais
como escoar a produção que ia pelos rios. A estrada não funciona. A estrada não
pode funcionar se não tiver veículo. A produção que ia para a cidade hoje está
estragando na aldeia”, afirma a indígena. Lorena Curuaia conta que a Volta
Grande do Xingu tem 130 quilômetros quadrados, com cerca de 27 comunidades e 12
mil habitantes, entre indígenas, ribeirinhos e pescadores artesanais. Além de
não ajudar, a estrada atrapalha a vida dos nativos, pois é por ela que chegam
os forasteiros que agem com violência nas terras indígenas.
Com o
barramento do Xingu, até mesmo a velocidade das cheias e vazantes que eram
parte da natureza hoje são controladas pela Norte Energia, por meio das vazões
que passam pelas comportas da usina hidrelétrica. “Uma hora a água está em
cima, outra hora está embaixo. Não há mais verão e inverno. Não se encontra
mais peixe no igapó. Hoje a água traz é coceira no corpo. As caças foram para
lugares bem mais longe. Os pontos estratégicos de alimentação não existem mais.
As nossas plantações tinham mais vida. Acho que a água chegava de outro modo,
parece que o solo perdeu também nutrientes”, conta Lorena.
Na região
Norte, segundo o relatório da CPT, foi registrado um aumento de 18% nos
conflitos por água, com 66 em 2020 e 78 em 2021. E as famílias envolvidas
passaram de 19 mil para 29,2 mil (54%). O Pará foi o que mais contribuiu para o
aumento de casos, de 31 para 47 (52%). E o número de famílias envolvidas
cresceu de 7,8 mil para 16,1 mil (105%).
Em
um balanço geral de todo o Brasil, as causas dos conflitos pela água cresceram
provocados por mineradoras internacionais (30%), setores empresariais (19%),
fazendeiros (14%), pela instalação de hidrelétricas (10%), empreendimentos
governamentais (9%) e pela atuação de garimpeiros (8%).
“Chama a
atenção ano a ano o protagonismo persistente das mineradoras, como principal
ator dos conflitos por água”, apontaram os pesquisadores Maiana Teixeira e
Talita Montezuma, autoras de textos do relatório. Entre os registros, 135
envolvem disputas por uso e preservação das águas, 127 se relacionavam a obras
como açudes e barragens e 40 envolvem investidas para apropriação privada
direta das águas, com cercamento e expropriação de territórios. “Setores
empresariais somados concorrem na responsabilidade direta de mais de 80% dos
casos, mas não é desprezível a participação direta e indireta do Estado, que
deveria garantir o imperativo legal da água como bem público e direito humano”,
anota o relatório.
No Pará, o
rio Tapajós é um dos exemplos das desgraças que os brasileiros promovem contra
seu próprio patrimônio. “A nossa vida era de fartura na margem de um dos mais
lindos rios de águas doces da Amazônia. Águas verdes e ricas em variedade de
peixes. Tucunaré, surubim, dourada”, conta a ribeirinha Marilene Rodrigues
Rocha, moradora da comunidade Vista Alegre do Muratuba, situada na Reserva
Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns.
“De uns
tempos pra cá, 2005 ou 2006, começou a mudar, perder a cor. Já nessa época a
gente clamava e não éramos ouvidos. Agora descobrimos que muitas comunidades
bebem água e comem peixes contaminados pelo mercúrio dos garimpos. Agora se
sente coceira no corpo quando se banha. Não é mais aquele banho bom”, lamenta a
ribeirinha.
“Uma
pesquisa recente da Universidade Federal do Pará, Fiocruz (Fundação Oswaldo
Cruz) e parceiros mostrou que 90% dos ribeirinhos do Baixo Tapajós, onde
moramos, estão contaminados. Alguns com níveis altíssimos de mercúrio”, exclama
a coordenadora do Conselho Indígena Tupinambá, Raquel Tupinambá. “Estas
questões têm nos tirado o sono, nos preocupado muito. Sabemos do risco,
certamente já temos efeitos colaterais em nossas vidas. A gente implora que as
autoridades, o Estado, o governo, olhem para essa situação. E temos que nos
mobilizar para tentar frear essa destruição que afeta as águas, que são a
principal fonte de vida para nós humanos e para outros seres vivos.”
O documento
da CPT destaca que Roraima, onde em 2020 não houve registro de conflitos por
água, passou a ter seis casos, com o envolvimento de 8.155 famílias. O salto se
deveu ao registro dos problemas provocados pelos garimpos em território Yanomami.
Os conflitos no Maranhão
No
Nordeste, o Maranhão, Estado que também faz parte da Amazônia Legal, teve o
maior aumento nacional de conflitos em 2021, chegando a 830%, com 3 em 2020
para 28 em 2021. No mesmo período, mais famílias sofreram os prejuízos das
pressões sobre a água (58%), passando de 873 para 1.380. No balanço das
estatísticas do Brasil, houve leve queda, de 350 conflitos envolvendo 56,2 mil
famílias para 304 e 56,1 mil famílias.
Os indígenas
Tremembé de Engenho, em São José do Ribamar, terceiro mais populoso município
do estado na região metropolitana de São Luís (MA), enfrentam o problema das
águas poluídas do rio Pindaí e a pressão de empresários que querem ainda se
apropriar da água do subsolo de seu território, além de lutarem contra
desmatamentos, loteamentos ilegais e constantes invasões que ameaçam a sua
vida.
“No subsolo
do meu território tem um lençol de água mineral. O interesse dos grileiros é
esse, pela riqueza que é de todos. A gente perfura um poço de 15 ou 20 metros e
já encontra água boa, potável. Não precisa de tratamento”, conta Robervalter
Lisboa Ribeiro Cruz, ou Robson Tremembé como é conhecido. Ele disse que são
várias empresas de olho no patrimônio indígena, já consolidadas e com
exploração em outras áreas do estado.
O
rio Pindaí, há cerca de 20 anos, também ainda era água boa para os indígenas.
“Nós tomávamos banho, bebia dela, pescava, brincava. Hoje em dia o nosso rio
não serve mais pra nada. A água é escurinha, de tanta poluição de esgoto que
vem da cidade. É uma tristeza muito grande a respeito desse rio que perdemos.
Agora querem construir fonte de água mineral onde está nossos plantios, nossa
horta, nossa roça”, diz Robson Tremembé.
Em fevereiro de 2021, o povo Tremembé obteve decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendendo a reintegração de posse de seu território dada em 1ª instância por juizado incompetente para o processo, que é da ordem da Justiça Federal. Uma ação foi impetrada por empresários do setor de água mineral interessados em seu despejo. Os indígenas sofreram diversos ataques e ameaças.
Veja: O PCdoB e a política de alianças: a água e o óleo https://bit.ly/3EonuYC
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