Notas sobre o ser humano e o mundo
Ronaldo Correia de Brito*, em
seu site
Aprendi a ler na História
Sagrada, uma seleta de textos do Antigo e do Novo Testamento, ilustrada por
Gustave Doré. Durante muito tempo esse foi o único livro em nossa casa, o que
já era muito. Sempre considerei a Bíblia um compêndio de narrativas, sem
atribuir-lhe qualquer significado religioso. Li esse livro com o mesmo deleite
com que li Odisséia, Ilíada, Mahabharata e Ramayana.
A leitura da Bíblia e a escuta
das histórias de tradição oral marcaram minha escrita. Nós, da latitude
Nordeste, precisamos resolver um impasse entre o legado oral e nossa formação
literária escrita. Guimarães Rosa também precisou
resolver isso e o próprio Mário de Andrade reconheceu nesse impasse uma questão
fundamental da literatura no Brasil.
Acho que desde menino fantasiei
ser um narrador anônimo e ainda pequeno era convidado para recontar as
narrativas que lia. Durante anos, estudei as técnicas de construção das
narrativas bíblicas, sobretudo os diálogos, e descobri ritmos particulares,
falas surpreendentes, uma estrutura complexa e contemporânea.
A transtradução ou transcriação
do Qohélet, feita por Haroldo de Campos, é para mim uma soberba contribuição à
poesia brasileira.
Desejava provar que o homem é o
mesmo, onde quer que ele esteja. A realidade que vivemos agora nos provou isso.
Kurosawa adaptou para o cinema duas tragédias de Shakespeare: Ran –
baseado no Rei Lear – e Trono manchado de sangue –, inspirado em
Macbeth. É surpreendente como Kurosawa alcança a mais alta representação da
cultura do seu país, o Japão, nos dois filmes. No entanto, estão ali os dramas
humanos – a ambição, a inveja, o ódio, o medo – revelados por um dramaturgo
inglês.
Li os escritores russos com
devoção. Não apenas Dostoiévski, mas também Tolstoi, Gogol, Tchekhov e
Turguêniev. Acho a Rússia muito parecida com o Brasil. Mas ocupo-me com a
invenção da fala dos meus personagens de um jeito que não reconheço nos
romances russos.
A literatura contemporânea se
ocupa de migrantes e ciclos migratórios porque está na ordem do dia a compulsão
pelo deslocamento. No romance Galiléia refiro os escritores viajantes
e os sedentários, da classificação de Walter Benjamin. Pertenço à segunda
categoria e estou sempre me perguntando por que ninguém para mais quieto.
O que mais respeito numa pessoa
é sua capacidade de pensar o mundo em que vive, ou pensar sobre si mesma.
Conheci homens que nunca saíram de suas cidadezinhas e são capazes de observar
e pensar. Outros viajam e não fazem mais do que tirar fotografias. Machado de
Assis nunca deixou o Rio de Janeiro e escreveu a obra que conhecemos. João
Cabral viajou muito, mas sua referência é sempre Pernambuco e o Recife.
*Médico, dramaturgo, escritor
Veja: Federação para eleger Lula e derrotar Bolsonaro https://bit.ly/3uGYIiS
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