LIÇÃO
DE TORTURA
Curso de formação de policiais rodoviários federais eliminou disciplina
sobre direitos humanos e tem só quatro horas de aulas presenciais sobre uso
diferenciado da força
Samira Bueno, Fabrício Rosa e Renato Sérgio de Lima,
revista piauí
Amorte de
Genivaldo de Jesus Santos após ser abordado por agentes da Polícia Rodoviária
Federal (PRF) no município de Umbaúba, em Sergipe, recoloca no debate o tema da
formação policial. Santos era esquizofrênico e foi parado porque estava andando
de moto sem capacete. Terminou sua existência no porta-malas da viatura, se
contorcendo, asfixiado pelo gás lacrimogêneo de uma bomba jogada pelos agentes
da PRF, em uma sessão de tortura filmada pela população local.
Este episódio se soma a
outro, ocorrido há dez dias em Fortaleza, Ceará, que culminou na morte dos
policiais rodoviários Márcio Hélio Almeida de Souza e Raimundo Bonifácio do
Nascimento Filho. Ao abordarem um homem em situação de rua, um dos agentes teve
sua arma de fogo roubada e ambos acabaram mortos pelo suspeito. Os dois casos
coincidem com alterações recentes na matriz curricular de formação dos
policiais rodoviários e com a extinção das comissões regionais de direitos
humanos no âmbito da instituição.
O projeto pedagógico de
ação educativa vigente no Curso de Formação Profissional (CFP), exigência para
aqueles que passam no concurso para a Polícia Rodoviária Federal, tem 476
horas-aula, sendo 90 horas de ensino à distância e 386 horas de formação
presencial. No entanto, praticamente desapareceram da formação oficial desses
policiais disciplinas que permitiriam aos profissionais lidarem com situações
como a que vitimou Santos ou os policiais rodoviários.
Conforme grade de aulas do CFP de 2022, a disciplina direitos humanos e
integridade foi completamente eliminada do currículo deste ano. Sua ementa
inclui: “PRF como promotora de Direitos Humanos; Grupos vulneráveis; Violência
contra a mulher; Crime análogo à escravidão, tráfico de pessoas; Abordagem
policial a grupos vulneráveis.” Essa disciplina tem hoje zero horas. Isso
mesmo, zero horas. Nenhuma.
Já a disciplina uso diferenciado da força (UDF), cuja ementa trata da
“Legislação internacional e nacional do uso da força; Modelos de uso da força
das instituições policiais e o adotado na PRF”, bem como sobre “Doutrina para
situações de contaminação por gás lacrimogêneo” ou “Efetuar a descontaminação
quando for submetido ao gás lacrimogêneo” tem um total de 4 horas-aula
presenciais e 8 horas no ensino à distância. Para se ter uma ideia, a
disciplina armamento, munição e tiro acumula 66 horas no módulo presencial e 10
horas em EAD.
Até 2018, o currículo de formação profissional da PRF concentrava entre
22 e 30 horas-aula da disciplina de direitos humanos. Nos últimos anos, a
disciplina foi sendo reduzida gradualmente; em 2021 eram 11 horas-aula fundidas
em uma disciplina que concentrava relações humanas, ética e direitos humanos,
até se transformar em zero horas no currículo de 2022.Com a extinção da
disciplina, as temáticas de direitos humanos passariam a ser abordadas em
outras disciplinas, segundo o projeto pedagógico do curso de formação dos
policiais rodoviários federais.
As alterações motivaram um manifesto datado de 14 de maio de 2021, assinado
pelos instrutores da disciplina “direitos humanos e cidadania – DHC” e entregue
ao coordenador-geral da UniPRF (Universidade Corporativa da Polícia Rodoviária
Federal). No documento, os professores afirmam: “Ao longo dos últimos anos, a
PRF vem sendo reconhecida como instituição de destaque nacional na proteção e
promoção de direitos humanos, tendo sido agraciada com diversos prêmios e
também contemplada com recursos advindos de Termos de Ajustamento de Conduta,
de forma que a eventual exclusão da disciplina DHC do CFP pode repercutir
negativamente na imagem institucional e, consequentemente, inviabilizar novos
reconhecimentos a partir da interpretação como forte indicativo de que o ato de
cuidar e proteger passou a ser negligenciado. Assim, uma gestão institucional
que se alicerça em critérios e fundamentos técnicos não pode abdicar da
valorização da temática direitos humanos em seu curso de formação para novos
policiais.”
Em uma democracia, cabe às polícias a manutenção da ordem pública e a
defesa e promoção de direitos da população. Não à toa, a democratização do país
na década de 1980 foi seguida da revisão das matrizes curriculares dos
profissionais de segurança pública de todo o país, fossem eles guardas
municipais, policiais estaduais ou federais. O ensino dos direitos humanos –
expressão demonizada por Bolsonaro e seu governo – passou a ter centralidade na
formação de policiais.
A noção de formação em direitos humanos, longe de se restringir a
concepções filosóficas sobre direitos ou deveres, pauta-se pela necessidade
diária dos profissionais. São reflexões e saberes como estes que permitem ao
policial desenvolver habilidades que o permitam intervir nas mais variadas situações,
como o reconhecimento e a identificação de violações de direitos humanos que
fazem parte do cotidiano de um policial rodoviário, tais como a exploração
sexual infantil, trabalho escravo, pessoas em situação de rua e portadoras de
transtornos mentais.
Também para lidar com situações como essas, o profissional de segurança
pública precisa ser instrumentalizado de saberes específicos relativos à
abordagem policial e ao uso diferenciado da força. Como conduzir uma abordagem
ou como manejar instrumentos de menor potencial ofensivo são alguns aspectos
tratados nas disciplinas de formação.
O boletim de ocorrência registrado pelos policiais após o
incidente que resultou na morte de Genivaldo Santos fala no
“uso das tecnologias de menor potencial ofensivo, com o uso de espargidor de
pimenta e gás lacrimogêneo” e afirma que os policiais teriam “empregado
legitimamente o uso diferenciado da força”, exatamente os temas previstos nas
duas disciplinas que praticamente inexistem na formação da PRF.
Em outra demonstração de ataque à própria noção de preservação dos
direitos humanos, a Portaria DG/PRF 456, de 3 de maio de 2022, revogou as
portarias que instituíram as Comissões Regionais de Direitos Humanos e as Bases
Descentralizadas de Direitos Humanos da Polícia Rodoviária Federal, estruturas
estaduais responsáveis por operações de combate à exploração sexual infantil,
trabalho escravo e afins. Suas funções foram aglutinadas na Diretoria de Gestão
de Pessoas e nas unidades de gestão de pessoas.
Um dia antes da morte de Santos, a PRF participou de uma ação conjunta
com a Polícia Militar do Rio de Janeiro na Vila Cruzeiro, que resultou em 25
mortes. A justificativa foi que ela foi chamada para dar apoio à ação da PM do
Rio de Janeiro. Aliás, esse também foi o argumento de outra operação que teve a
participação da PRF que gerou, em uma mórbida coincidência, o mesmo número de
mortes. Foi a ação contra o novo cangaço em Varginha, no Sul de Minas Gerais,
em outubro de 2021. Ao que tudo indica, Bolsonaro está conseguindo o que
queria: acabar com a profissionalização de uma força policial com mais de
noventa anos de existência e transformá-la em uma tropa de intervenção (pouco)
tática para mobilização e utilização discricionária pelos gestores políticos.
Além das dúvidas sobre a legalidade de tal arranjo, outra questão se
impõe. A PRF não tem efetivo para ser, ao mesmo tempo, tropa de intervenção e
Polícia Rodoviária. O efetivo total da corporação é de cerca de 12 mil pessoas,
o que, operacionalmente, dá algo como 3 mil policiais disponíveis por turno de
serviço.
Os assassinatos de Genivaldo de Jesus Santos, Márcio Hélio Almeida de
Souza e Raimundo Bonifácio do Nascimento Filho deveriam acender os alertas dos
órgãos de fiscalização de controle da atividade policial. Elas sinalizam para
opções político-institucionais e não somente para erros ou crimes dos agentes
individualmente. O Brasil vive um momento de radicalização político-ideológica
das polícias e é preciso interromper esse movimento urgentemente.
Samira Bueno, É socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. Tem mestrado e doutorado em administração pública e governo
pela FGV.
Detalhes que revelam a essência https://bit.ly/3n47CDe
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