O
fim da financeirização?
Em vez do dólar, China e Rússia já negociam com alguns países através
de suas moedas, lastreadas em commodities como petróleo e gás. Algo se move na economia
global: a ficção do rentismo vai sendo desafiada pela segurança da produção
real
Márcio Pochmann, Outras palavras
Assiste-se, neste início da terceira década do
século 21, ao processo de comoditização monetária que pode estar encerrando
meio século de funcionamento da economia global baseada no dólar e subscrita
por ativos financeiros. O aparecimento de moedas lastreadas em commodities
parece apontar para o enfraquecimento da fase de predomínio de moedas
fiduciárias, sem garantias ou conversibilidade real, que não seja meramente
financeira.
Em termos técnicos, é a possibilidade da definição
do novo marco monetário internacional, uma espécie de Bretton Woods III. Isso
porque na Conferência de Bretton Woods, realizada nos Estados Unidos em 1944,
foi estabelecido um conjunto de disposições acordadas por 45 países que
constituíram o sistema financeiro do período após a Segunda Guerra Mundial.
Por quase três décadas (1944-1973), o dólar se
transformou em moeda forte do setor financeiro mundial e referência para as
demais moedas, especialmente do Ocidente. Assim, cada moeda nacional estaria
vinculada ao ouro a 35 dólares, possibilitando que qualquer portador desta
moeda pudesse, em qualquer parte do mundo, trocar por seu equivalente em ouro.
Para que isso se viabilizasse, foram criadas
instituições financeiras associadas ao sistema das Nações Unidas (ONU), como o
Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, como garantidoras do sistema
financeiro global. A expansão econômica reconhecia por “30 anos gloriosos do
capitalismo” foi expressão da contida especulação financeira em amplo ritmo de
produção, geração de empregos e inclusão social.
A partir de 1973, com o fim da conversibilidade do
dólar ao ouro, a moeda dos Estados Unidos assumiu a sua face fiduciária, como
as demais moedas nacionais. Uma espécie de Bretton Woods II se constituiu em
torno da prevalência do dólar mantido o seu papel de ativo financeiro de
reserva global. Por isso, as últimas cinco décadas foram marcadas por intensa
volatilidade nas taxas de câmbio, juros e ativos financeiros. Sem garantia na
produção de mercadorias e sem lastro em dólar, a sustentação do dólar somente
se tornou possível no mundo em crescente processo de financeirização.
Dessa forma, a indústria de produção foi sendo
substituída pela financeira associada à indústria dos derivativos, dos fundos
de hedge e das ações de securitização. Na toada da desregulamentação
neoliberal, a globalização econômica se fundamentou na lógica do crédito global
voltado fundamentalmente para atividades financeiras.
O resultado da longa fase do dólar fiduciário foi o
decrescimento do ritmo de expansão econômica, a prevalência de largo desemprego
e precarização dos postos de trabalho, com pobreza e desigualdade em alta. Ou
seja, a formação de uma classe planetária de oligarcas, muito ricos pela
monopolização da economia mundial permitida por cadeias globais de valor a
secundarizar a política no interior das nações às forças de mercado.
As insistentes medidas governamentais para manter o
dólar como moeda fiduciária de referência no mundo parecem se esgotar. Exemplo
disso vem do fim das taxas de juros negativas nos Estados Unidos (EUA), Japão e
União Europeia (UE), após o esgotamento das operações de criação de quantidades
significativas de dinheiro artificial (quantitave easing) desde a grave crise
financeira de 2008 para postergar a catástrofe capitalista, conforme revela
Nomi Prins no seu livro: Conluio, como os banqueiros centrais manipularam o
mundo.
Países como a Rússia e a China, entre outros, não
se entregaram às modalidades da conjuração do dinheiro fácil permitido
pelo quantitative easing (servidão quantitativa da
financeirização). Por isso detêm, atualmente, os balanços limpos dos seus
respectivos bancos centrais, ao contrário do que se verifica nos EUA, na UE e
no Japão.
Em vez do direcionamento do dinheiro
disponibilizado para oxigenar a economia, prevaleceu a lógica do rentismo que o
direciona à compra das próprias ações, com altos dividendos revertidos aos
acionistas. Os novos oligarcas do dinheiro revelam suas opções pela elevada
proximidade com os bancos centrais que, na condição de independentes, forçam
governos a se aliarem aos seus homólogos privados e se reproduzirem através dos
empregos rotativos de seus funcionários (banco privado – banco central – banco
privado – banco central).
Nesse cenário, o curso atual que decorre do aumento
da inflação tem sido acompanhado pela maior taxa de juros, desacelerando as
economias ocidentais e favorecendo a transferência de renda e riqueza para a
classe planetária dos oligarcas, sobretudo no Ocidente. Se combinadas ainda com
as sanções adotadas contra a Rússia, percebe-se o potencial risco devastador
para o sistema financeiro ocidental.
Até agora, ao que parece, a Rússia se inspirou nos
EUA de 1973, quando acertaram com países do Oriente Médio a aceitação de sua
moeda, sem mais garantia e conversibilidade ao ouro, como pagamento do petróleo
para os membros da Organização Mundial do Petróleo (Opep). Como maior país
exportador de energia do mundo, a Rússia busca estabelecer a sua moeda (rublo) como
referência de meio de pagamento internacional e a China estabeleceu com a
Arábia Saudita o pagamento do petróleo importado através do renminbi.
Ao mesmo tempo, os dois países em referência, entre
outros, experimentam novas modalidades monetárias com lastro em produção de
mercadorias (commodities), como alternativa ao Bretton Woods II. Por meio
século, o dólar fiduciário governou o mundo através da financeirização
econômica paralelamente ao domínio político dos oligarcas enriquecidos pela
imposição do receituário neoliberal.
O Bretton Woods III pode ser a alteração
substancial da economia global fundada em moeda fiduciária que sustenta o dólar
pela financeirização para o novo sistema financeiro assentado em moedas
lastreadas em commodities. Nesse sentido, ocorrerá a substituição da garantia
financeira (fictícia) pelo seguro da real produção de mercadorias proveniente
do processo de comoditização monetária.
O fato e a ideia https://bit.ly/3n47CDe
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