O mito do Mito
Os fatos dizem que a eficiência das Forças Armadas na gestão
pública é mais fantasia que realidade
Natalia Viana, revista piauí
O verdadeiro mito que sustenta o governo não é o que
dorme no Palácio da Alvorada. É aquele ao qual Jair Bolsonaro se agarra a cada
nova crise, inclusive as que ele mesmo cria: o mito da eficiência das Forças
Armadas. A ideia de que os militares são gestores eficazes, aptos a resolver
qualquer parada, não vem de agora e ressurgiu em todos os governos desde a
redemocratização – de Fernando Henrique Cardoso a Michel Temer, passando por
Dilma Rousseff. Virou até expressão corrente na caserna chamar as Forças Armadas
de “Posto Ipiranga”, em referência a uma campanha publicitária de 2011 que
dizia que o estabelecimento resolvia tudo que as pessoas precisavam. Bolsonaro,
espertamente, apropriou-se não só do mito, mas também da expressão. A diferença
é que a aplicou não a um militar, mas ao seu ministro da Economia, Paulo
Guedes, com os resultados que todos conhecem.
No embalo da ilusão de eficiência, as Forças
Armadas estiveram significativamente ocupadas neste início de século: foram
chamadas para pacificar o Haiti, combater a maior seca do semiárido, coordenar
a segurança pública durante a Copa do Mundo e a Olimpíada, gerir o combate ao
desmatamento da Amazônia, acolher refugiados venezuelanos, construir rodovias,
proteger fronteiras, fazer revista em penitenciárias, ajudar no controle da
pandemia e, agora, questionar se as urnas eletrônicas em uso no Brasil há
décadas são realmente confiáveis.
Em todos os governos recentes, a justificativa para
a convocação dos militares é sempre idêntica: são pessoas que prezam valores
como a “lealdade”, a “probidade” e a “competência técnica”. “Estejam onde
eles estiverem, na ativa ou na reserva, nos quartéis ou em
repartições, os militares são cumpridores de suas obrigações e deveres”,
escreveu o vice-presidente Hamilton Mourão, ele próprio um general da reserva
do Exército, no jornal O Estado de S. Paulo, em abril do ano
passado. Mas são palavras que poderiam vir de muitas outras penas ou bocas.
Em 29 de janeiro de 1993, O Globo estampou,
na página 11 do jornal, o título Empresários querem Exército nos morros –
demanda aprovada pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro e
pela Associação Comercial do Rio de Janeiro. A mesma edição trazia a notícia de
que o Alto Comando das Forças Armadas fora chamado para “debater” o combate à
pobreza pelo então presidente Itamar Franco, que encarregara o Exército de
fiscalizar a distribuição de 100 mil toneladas de feijão para a população.
Quase vinte anos depois, Dilma Rousseff repetiu que, na luta para acabar com a
pobreza extrema, as Forças Armadas seriam essenciais. “Sua larga experiência de
trabalhos sociais, desenvolvida em todo o território nacional e alcançando as
regiões mais longínquas e remotas, tem valor inestimável para chegarmos a esse
objetivo primordial. Por seu espírito cívico e sua excelente formação
profissional, os soldados brasileiros vêm atuando da forma mais dedicada e
eficiente para que o Brasil se transforme definitivamente em um país
desenvolvido”, discursou a ex-presidente, em 5 de abril de 2011.
A vaidade inerente às classes militares foi percebida
já no século XVIII pela escritora feminista Mary Wollstonecraft, para quem o
fru-fru das insígnias, as lustrosas botas e os uniformes bem aprumados só
servem para esconder a ociosidade dos soldados em tempos de paz. Enquanto eu
pesquisava sobre a atuação das Forças Armadas na segurança pública na última
década para o livro Dano Colateral, publicado pela editora
Objetiva, deparei-me com um autoelogio oficializado, no Museu Histórico do
Exército, em pleno Forte de Copacabana, no coração do ponto turístico mais
famoso do Brasil. Na Sala dos Presidentes Militares, inaugurada em 2008, os
generais que comandaram a ditadura por 21 anos são apresentados como líderes
que “souberam, com raro discernimento, interpretar os anseios de ordem e
progresso do nosso povo, conduzindo o País com honestidade, dedicação e
respeito, alcançando, inclusive, elevados níveis de crescimento econômico”.
Ao final da ditadura, claro, ninguém diria que
tinha sido boa a condução do país pelos militares. Sem contar a tortura, os
desaparecimentos e ameaças a opositores do regime, que não se encaixam muito
bem na definição de “honestidade, dedicação e respeito”, o salário mínimo tinha
perdido 50% do seu valor real, e a inflação, saltado de 80% para 300% ao ano,
mas os índices eram manipulados pelo governo. Movimentos de trabalhadores e
donas de casa tiveram que fazer, à mão, os cálculos que mostravam que o salário
já não era suficiente para comprar a comida do mês. Apesar disso, os militares
seguem acreditando – ou simulando acreditar – que “entregaram” de maneira
“organizada” o poder aos civis. Poucos admitem que o governo militar se tornara
insustentável, por falhas inerentes a uma ditadura, dentre elas a
impossibilidade de crítica, ou de autocrítica.
É essa mesma falta de crítica que marca o
pensamento militar a partir da década de 1990 com uma novidade, segundo o
professor Heraldo Makrakis, coronel da reserva e doutor em ciências militares
pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme). O fim da Guerra Fria
obrigou as forças de defesa do Hemisfério Ocidental a se repensarem em um mundo
unipolar, e foi então que ganhou força nas escolas militares o que ele chama de
“gerencialismo”, uma nova roupagem à tradição positivista das nossas Forças Armadas.
Escolas como a Eceme, a Academia da Força Aérea
(AFA) e a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) incluíram cursos de
administração em seus currículos. Até mesmo o Conselho Federal de Administração
passou a aceitar equivalências entre o diploma de ciências militares e o do
bacharelado de administração. O resultado foi, segundo o pesquisador, “a
prevalência do gerente neoliberal em detrimento do engenheiro
desenvolvimentista”, este último uma imagem associada aos militares durante a
ditadura. “Existe uma compreensão de que, tendo o treinamento adequado, é
possível comandar, governar e gerenciar a tudo e a todos.” Para Makrakis, o
gerencialismo anda de mãos dadas com uma nova doutrina de defesa hoje muito
influente no pensamento militar brasileiro: a guerra de quarta geração, que
mescla segurança pública com defesa e, por consequência, amplia os tentáculos
militares para diferentes áreas da vida pública.
É um entendimento tecnicista do mundo que bate de
frente com a gestão democrática da coisa pública. “A democracia não é uma coisa
pronta, ela é um ponto de partida, sempre”, diz Makrakis. “A forma de discurso
da democracia é a retórica dialética que prevê acordos. E a forma do discurso
do gerencialismo é analítica, em que você parte de verdades estabelecidas e
processos dedutivos e sempre chega às respostas corretas.” É uma percepção que,
inclusive, deixa escapar uma verdade irrefutável: os militares erram tanto
quanto os outros seres humanos.
Um bom exemplo desse tipo de “gerencialismo
militar” é o documento “Projeto de Nação – O Brasil em 2035”, divulgado pelo
jornal O Estado de S. Paulo. Elaborado pelo instituto do
ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas, e coordenado pelo
general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente da ONG do torturador Carlos
Alberto Brilhante Ustra, o documento mostra que, na imaginação dos militares,
se eles seguirem no comando do Brasil por mais treze anos, o país poderá ficar
livre do “globalismo”, do “ativismo judicial” e do marxismo cultural. Para
tanto, basta aplicar os passos descritos no documento, como acabar com a
gratuidade do SUS e das universidades públicas.
Do lado de fora da caserna, a cristalização da ideia
de que os militares são “pau pra toda obra” ocorreu na era de ouro das
operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) durante os governos petistas. Foi
o governo Lula que, em 2010, a pedido de Sérgio Cabral, lançou mão da primeira
grande operação de GLO nas favelas cariocas. A Operação do Alemão entregou a
chave da comunidade ao Comando da Força de Pacificação por um ano e meio. Os
militares seguiram no Rio de Janeiro um modelo posto em prática no Haiti, do
qual o Exército se orgulhava tanto, a ponto de promover tours gratuitos para
jornalistas cobrirem o “êxito” brasileiro no país caribenho. Entre os anos de
2010 e 2016 foram realizadas 35 operações de glo, além das iniciativas de
segurança durante a Copa do Mundo e a Olimpíada.
A campanha do Haiti teve bem mais problemas do que
ficou registrado na opinião pública. Algumas operações, como a realizada na
favela de Cité Soleil, em julho de 2005, causaram mais de sessenta mortes,
segundo ONGs locais. Comandada pelo general Augusto Heleno, a operação foi
denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A ONU nega que as
mortes tenham ocorrido. Houve pelo menos duzentas denúncias de abuso e
exploração sexual, poucas delas investigadas. As tropas nepalesas, sob
comando do Brasil, importaram cólera para o Haiti, um desastre de gestão que
matou mais de 4,5 mil pessoas em um país em frangalhos após um devastador
terremoto em 2010. Os recentes distúrbios políticos no Haiti comprovam que, se
houve algum legado da campanha militar no país, ele é menor do que apregoam
nossas Forças Armadas.
O mesmo vale para a Operação Arcanjo, que ocupou os
complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, a partir de novembro de
2010. Durante alguns anos viu-se uma redução da atividade de organizações
criminosas, que migraram para outras favelas, dando espaço à Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP). Construiu-se um teleférico no Alemão e jovens moderninhos
estrangeiros se mudaram para lá. O policiamento extensivo com armas pesadas
“permitiu que mais de 250 mil pessoas recuperassem a possibilidade de viver com
dignidade”, disse o general Adriano Pereira Júnior, na cerimônia de
encerramento da operação que ele próprio comandou. Hoje, tudo voltou ao que era
antes. Quando entrevistei o general Pereira Júnior para o meu livro, anos
depois do fim da Arcanjo, ele foi incisivo. Disse que a operação “não deixou
nenhum legado” para o Complexo do Alemão. Ele acha, porém, que as GLOs são
“necessárias” sempre que o governo do estado “reconheça que não tem meios
suficientes para atender àquela operação”.
Para o general Sérgio Etchegoyen – com quem
conversei durante a escrita do meu livro –, a GLO no Brasil “é a falência das
outras agências”, que buscam os militares como último bastião. “No Exército
a gente tem a expressão ‘Posto Ipiranga’. Tem algum problema? Passa no Posto
Ipiranga. E ele vai pra rua fazer tudo, inclusive GLO. Isso é bom? É, do
ponto de vista do país é bom saber que tem uma reserva de pessoas, de
competências, de capacidades de que ele pode lançar mão numa emergência,
mas, ao mesmo tempo, denuncia que as agências do governo brasileiro não têm
a saúde que deveriam ter.”
Elogiadas pelos ministros de plantão a cada GLO, as
Forças Armadas ganharam ainda mais terreno depois do impeachment de Dilma
Rousseff. O sucessor dela, Michel Temer, com uma aprovação popular que
raramente passou de um dígito, admitiu (em seu livro A Escolha: Como um
Presidente Conseguiu Superar Grave Crise e Apresentar uma Agenda para o Brasil)
que os militares deram “prestígio enorme” ao seu governo. O auge desse acordo
de cavalheiros foi a intervenção federal no Rio de Janeiro, em 2018, em
decorrência do aumento da violência urbana. Um grande fiador da intervenção foi
o próprio general Etchegoyen, alçado ao cargo de ministro do Gabinete de
Segurança Institucional (GSI) do governo Temer e amigo de infância do general
Villas Bôas.
Naquela época, a imprensa relatou que Villas Bôas
estava contrariado. Ele já havia dito abertamente: “Não gostamos de participar
desse tipo de operação.” Meses depois, com Bolsonaro já eleito, sua visão era
bem outra: “O chamamento de militares para ocupar cargos em outras áreas é
uma volta à normalidade”, disse, reforçando que a violência urbana havia se
tornado uma questão de segurança nacional. “Naturalmente, de acordo com o que
a Constituição prevê, os militares inexoravelmente terão de participar
desse esforço nacional, quer como protagonistas, quer como coadjuvantes.”
Os anos seguintes à intervenção no Rio demonstraram
que durante essa operação os generais foram picados pela “mosca azul”, como
descreveu uma pessoa que tinha trânsito no gabinete do secretário de segurança
pública da intervenção, o general Richard Nunes. Ele havia sido nomeado pelo
interventor, general Walter Braga Netto, provável candidato a vice-presidente
na chapa de Bolsonaro e cujas digitais no apoio ao presidente em seu plano de
demolir a democracia já fazem dele um dos personagens infames da história
brasileira.
A ideia de que os militares seriam “uma reserva de
competências e capacidades” à disposição da nação era só a metade da história
contada da porta dos batalhões para dentro. A outra metade construía, fechando
os olhos para os seus próprios (e numerosos) erros, uma visão preconceituosa e
maléfica, segundo a qual os civis falharam na condução do país durante a
democracia. Ouvi isso de muitos generais, com divergências apenas nos tons de
cinza. Essa visão foi resumida de maneira cristalina em um artigo também de
Hamilton Mourão, publicado pelo jornal Zero Hora no dia do
primeiro turno das eleições de 2018. No fim da ditadura, escreveu Mourão, uma
“parcela da nação, extasiada, julgou que iríamos viver uma época de liberdade,
democracia e progresso”. Foi um “ledo engano”, segundo ele, pois aquele período
histórico (que estava por terminar) fora marcado por “sucessivos escândalos,
todos tendo como escopo o desvio de recursos públicos, seja pelo desperdício,
seja pelo roubo puro e simples”.
Não existe um éthos mais
profundamente arraigado na retórica bolsonarista do que essa visão tacanha,
gestada dentro da caserna e abraçada por parte dela, segundo a qual a democracia
foi apenas corrupção – esquecendo-se, convenientemente, de que a censura à
imprensa promovida pela ditadura impedia até mesmo que se noticiasse a
corrupção no regime militar. Segundo Mourão, o novo governo iria prover “a
ordem necessária”, seguindo o exemplo de Duque de Caxias, o Pacificador.
“Nossas façanhas servirão de exemplo a toda Terra”, ele escreve, citando o hino
do Rio Grande do Sul, seu estado natal.
Vale relembrar melhor essas façanhas.
A intervenção federal do Rio – que inspirou o éthos do
governo Bolsonaro – terminou com 76% de aprovação dos cariocas. O combate ao
roubo de cargas foi uma prioridade: diminuiu 19% em relação ao ano anterior.
Os outros crimes caíram menos, como roubos de rua (7%) e de veículos (8%).
Homicídios foram reduzidos em 6,7%. Por trás desses números, a operação deixou
um rastro de descalabros difícil de superar. A reforma da polícia e a redução
da letalidade e da corrupção policial foram abandonadas no meio do percurso. O
crime fugiu da capital e se aboletou no interior. A vereadora Marielle Franco
foi assassinada a tiros e até hoje não se sabe quem mandou matá-la. Um
levantamento feito pela Defensoria Pública da União contabilizou nada menos que
quinhentos relatos de violações de direitos humanos cometidas por policiais e
soldados do Exército. O mais chocante talvez sejam as acusações de torturas
dentro da Vila Militar, na Zona Oeste do Rio, incluindo chicotadas com fios
elétricos, ameaças de sufocamento com saco plástico e de estupro com cabo de
vassoura.
Veja: Quem semeia o caos
colhe o quê? https://youtu.be/yLfPBPiRBik
Enquanto isso, o Exército ganhou um “banho de
loja”, como me disse o general Etchegoyen: “um choque de gestão” de 1,2 bilhão
de reais, a verba federal empenhada na intervenção no Rio. Mas até mesmo o
choque de gestão está agora sob suspeita: de acordo com uma auditoria sigilosa
em uma amostra de despesas da intervenção, ficou comprovado o desvio de
finalidade em 80% dos gastos. Segundo a auditoria, obtida pela piauí,
grande parte do dinheiro foi gasta com o próprio Exército, em veículos
blindados Lince, reforma de instalações em outros estados, upgrade de
softwares para o sistema de inteligência. E camarões, muitos camarões, bacalhau
e torta holandesa, guloseimas que saíram a um custo de mais de 300 mil reais.
Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o caso ainda não foi relatado pelo
ministro Vital do Rêgo Filho nem enviado para apreciação do plenário.
Na época, o general Richard Nunes se
autocongratulou pelo sucesso da intervenção em entrevista a Marcelo Godoy,
publicada no Estado de S. Paulo, em 14 de dezembro de 2018. “A
sociedade chegou a um ponto de amadurecimento de entender que nossa maior crise
era ética, muito mais do que econômica e social”, disse. “E as Forças
Armadas conseguiram atravessar todo esse processo mantendo alto grau de
credibilidade. Elas conseguiram preservar-se pelos valores que encarnam.”
Segundo Nunes, os generais da reserva “não têm outro interesse que o da
sociedade”, pois “construíram uma vida calcada em princípios e valores
éticos sólidos”.
Do mesmo modo, a gestão do general Eduardo Pazuello
no Ministério da Saúde – seguramente um marco na história das calamidades
promovidas por militares – foi recompensada. A lógica era bem pouco dialética.
“É simples assim: um manda e o outro obedece”, disse o general, em uma live de
Bolsonaro, sentado ao seu lado. Obediente, Pazuello ganhou lugar no palanque do
presidente e deve ser candidato a deputado federal pelo Rio de Janeiro, com a
bênção do ex-patrão. Seguem até hoje diversas investigações sobre o ex-ministro,
que, sem ter nenhuma qualificação para o cargo, assumiu a pasta da Saúde quando
havia no Brasil pouco mais de 15 mil mortos pela Covid. Deixou o ministério
quando os óbitos chegavam a 280 mil, o que garantiu que o país permanecesse em
segundo lugar no ranking mundial de vítimas fatais da pandemia.
Além da tragédia que provocou, o comando
militarizado da Saúde foi marcado por desastres de gestão. Um grupo de
procuradores do Ministério Público Federal (MPF) apontou seis decisões tomadas
pela pasta de Pazuello que configuram improbidade administrativa e indicou que
as centenas de milhares de mortes ocorridas eram “em grande parte evitáveis”.
Entre os erros, omissão na compra da vacina da Pfizer, perda de validade de
milhares de exames RT-PCR e obstrução de informações sobre a Covid. Sem falar
que Pazuello capitaneou a política de produção e distribuição de cloroquina
pelo Exército – foram entregues em todo o Brasil mais de 2,8 milhões de
comprimidos sem qualquer eficácia contra a Covid.
O general foi investigado também a pedido da
Procuradoria-Geral da República (PGR) por suspeita de não ter agido a tempo de
evitar a falta de oxigênio nos hospitais do Amazonas, no início de 2021, e
pelas mortes em consequência da escassez do produto. (Pazuello foi inocentado
graças a uma mudança na lei naquele mesmo ano, segundo a qual é preciso dolo
para configurar crime de improbidade administrativa – omissão ou incompetência
não bastam.) Ele, claro, não andava só. Uma espiada no levantamento do TCU
sobre o número de militares empregados no governo federal, publicado no ano
passado, revela que o Ministério da Saúde era a pasta que mais concentrava
membros da ativa das Forças Armadas: 1 249, o dobro de 2016. Além disso, o
general tinha vinte militares na sua assessoria direta.
O país assiste a recordes de desmatamento nos
últimos anos, e também aí se pode encontrar a marca indelével do dedo dos
militares. A resposta aos incêndios que devoraram a Amazônia em 2019 – e
atraíram atenção internacional – repetiu, claro, a velha fórmula: Bolsonaro
mandou o Exército resolver, com uma GLO, a Operação Verde Brasil, dedicada a
combater o crime ambiental. Depois disso, fez do general Mourão o principal
articulador das políticas para a Amazônia, como presidente desde 2020 do
Conselho Nacional da Amazônia Legal, entidade da qual excluiu membros da
sociedade civil e até mesmo os governadores dos estados da região – que
voltaram ao conselho graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). À
primeira GLO seguiu-se outra, a Operação Verde Brasil 2, que teve pouco
resultado e causou vergonha ao país no plano internacional, ao ser taxada de
“fracasso”. Outra encrenca foi a compra de um satélite finlandês de baixa
eficiência por um valor 66 vezes maior do que o gasto com satélites mais adequados
do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O desmatamento foi o maior
da última década. Desapareceu uma área de floresta equivalente a nove vezes o
tamanho da cidade do Rio de Janeiro.
Conforme a regra do “um manda, o outro obedece”, as
Forças Armadas agora protagonizam um dos episódios mais deprimentes de sua
história. Em fevereiro, elas enviaram uma série de questionamentos sobre a
segurança das urnas eletrônicas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e fizeram
sete sugestões de mudança. O TSE respondeu com dois documentos, um deles com
mais de seiscentos anexos, e o outro com 48 pontos, respondendo às dúvidas, uma
a uma. Nos documentos, o tribunal demonstrou que os militares não estavam
entendendo direito o funcionamento das urnas, recusou três das sete sugestões
que as Forças Armadas haviam feito e informou que as demais sugestões já eram
adotadas, entre elas a totalização de votos em nível regional. Por fim, o TSE
apontou erros de cálculos dos militares.
Veja: Bolsonaro age como derrotado https://bit.ly/3wzziDL
Neste caso, a incompetência juntou-se ao ânimo golpista. A trama contra a lisura das eleições vem sendo armada por bolsonaristas desde 2019, quando o general Luiz Eduardo Ramos, hoje ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, recorreu aos serviços de um técnico em eletrônica para apregoar a ocorrência de fraude no pleito de 2014 – o que nunca foi comprovado. O técnico em eletrônica contou à Polícia Federal que, além do general Ramos, chegou a se reunir com o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e com o próprio presidente Bolsonaro, todos interessados em encontrar algum indício capaz de desmoralizar a votação eletrônica.
Em agosto do ano passado, a porcentagem de
brasileiros que aprovava a participação de militares no governo chegou ao nível
mais baixo: 32%. Contudo, no levantamento mais recente do jornal digital Poder360,
essa porcentagem se recuperou, chegando a 43%, contra 44% que desaprovam a
presença militar no governo.
Os erros cometidos pelos militares em suas
investidas como gestores públicos são tabus no reino de Bolsonaro. O silêncio
mais ensurdecedor é o dos generais, que no passado lamentavam toda vez que um
governo os procurava para funções extras. A primeira vez que vi a expressão
“Posto Ipiranga” foi no começo de 2018, em uma entrevista ao Correio
Braziliense do general José Carlos de Nardi, ex-comandante do
Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas que coordenou a segurança da Copa do
Mundo. Ele reclamava que a intervenção federal no Rio de Janeiro
não daria em nada – como não deu – e criticava a decisão de relegar ao Exército
a Operação Acolhida, que recebe e abriga refugiados venezuelanos na fronteira
com Roraima. Sabiamente, o general fez uma pergunta que cabe como uma luva nos
dias de hoje:
– O que o Exército tem a ver com isso?
Veja: Programa de Lula em debate https://bit.ly/3trR3UK
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