11 julho 2022

Paradoxo literário

Vargas Llosa e a falsa dialética de bom escritor, mas cidadão de direita
Já ali eu havia notado que pelo menos em A Guerra do Fim do Mundo Mario Vargas Llosa havia sido um portentoso fracasso ao cometer um livro falho, indigno de um criador um pouquinho acima da média
Urariano Mota*, Vermelho www.vermelho.org.br

A jornalista colombiana María Jimena Duzán publicou no El País, em 07.07.2022, um ótimo artigo sobre Vargas Llosa. Sob o título de “Vargas Llosa, el equivocado eres tú”, ela foi direto ao ponto:

“El escritor y premio nobel de literatura Mario Vargas Llosa ha dicho a manera de sentencia que los colombianos votamos mal porque elegimos a un exguerrillero del M-19 como nuevo presidente del país. ‘Si actúa en la legalidad, bienvenido’ dijo con un gesto de escepticismo y de profunda desconfianza y, como si ya hubiera hecho su juicio sobre lo que le va a suceder a Colombia, dejó caer su ultimátum al concluir que la elección de un exguerrillero en la presidencia ponía en peligro la legalidad que por años ha tenido Colombia. ‘Hay una legalidad que se ha mantenido todos estos años a pesar de que la guerrilla representaba otra cosa’, remató en su diatriba.

El veredicto que hace el Nobel sobre Colombia puede sonar bien en Madrid, frente a sus áulicos, pero no en Bogotá. Aquí su dictamen resulta ligero, injusto e irrespetuoso para con los 11 millones de colombianos que ejercieron su derecho al voto. Su dictamen parte del estigma y de la descalificación moral y convierte a los colombianos que votaron por Gustavo Petro en seres sospechosos, que no son de fiar”

Mas lá no fim do artigo ela escreve: “Vargas Llosa es un escritor y ensayista que ha cautivado al mundo. Sin embargo, cuando se mete en la política casi nunca acierta”. É desse ponto que continuo. Há um pensamento que aparenta ser dialético quando expressa que indivíduos reacionários, até mesmo de direita, podem ser bons ou ótimos escritores. No passo seguinte, falam que escritores de esquerda nem sempre são bons escritores. Esse é um passo necessário para a afirmação a seguir, “escritores de esquerda são panfletários”. E porque escrevem panfletos, longe estariam da boa literatura. Não vem nem ao caso aqui lembrar da ótima literatura, panfletária, de Swift – que recomendava aos pais pobres a venda dos filhinhos aos ricos, para que as crianças fossem comidas assadas – ou de Mark Twain que matou a hipocrisia dos super-honestos na novela “O homem que corrompeu Hadleyburg”, Não, porque devo continuar. Isto é, com a base sólida de que literatura não é panfleto de esquerda, partem para a insinuação de que os escritores reacionários escreveriam magníficos romances! Mas é preciso ir mais devagar com o andor, porque o santo é de barro.

A primeira coisa a pensar é que não basta expor a contradição, para, a partir daí, ser dialético. Percebem? Dizer que um homem negro pode ser racista é expor uma contradição. Ou, de outra maneira, dizer que um operário pode apoiar um fascista é o momento flagrante de uma contradição. Mas a dialética só vai se realizar quando a contradição for mais que exposta: ela há de ser compreendida em seu profundo Movimento contraditório, nunca como o retrato fixo de uma paisagem. Ah, os reacionários podem ser bons escritores (e, sub-repticiamente, sem que se ouse expressar o seu nome, “quanto mais reacionário, melhor!”).

Ah, menos e mais. Olhem aquela clássica afirmação de que Balzac era monarquista, mas revolucionário nos seus romances. Mas ficar nisso é não ver que o senhor “de Balzac”: a) tinha o seu foco nos odiosos burgueses; b) que seus personagens monarquistas, ou nobres, não possuíam ações elogiosas. E se vamos aos escritores brasileiros, sempre se fala – ou melhor, se acusa! – que Machado de Assis em sua vida era alienado, conservador, e no entanto, o maior escritor brasileiro. Mas amigos, como faz falta o Dicionário Machado de Assis, do grande José Carlos Ruy, para esclarecer e repor o lugar e gênio de Machado de Assis. (Editora Anita Garibaldi, por que a demora em publicar a última obra de José Carlos Ruy?). Por outro lado, ou do mesmo lado, temos Lima Barreto e Castro Alves, escritores de esquerda dignos de qualquer literatura do mundo. E de modo mais recente, o fecundo Graciliano Ramos. Onde então estaria a “dialética” do cidadão reacionário, mas escritor de gênio? Quando saímos do Brasil, bem podemos ir ao ponto máximo onde se encontra Leon Tolstói. Esse russo realizou uma obra-prima, ou melhor, obras-primas, todas movidas por um profundo amor ao camponês, e com o próprio espírito de ideias anarquistas na sua vida. Onde estaria a “dialética” que apenas vê o ponto do latifundiário da pessoa do escritor e conde Tolstói?

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Isso posto, vamos a um escritor bem menor, de nome Mario Vargas Llosa, que cativou o mundo. E retomo o que antes eu escrevera sobre o escritor peruano. Em 2010, quando publiquei o texto “Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura”, de passagem eu criticara a infeliz recriação dele no livro A Guerra do Fim do Mundo. Ainda que na época o comunicado de Estocolmo informasse que na literatura de Llosa o tema central era a luta pela liberdade em seu país, pois os prêmios, como os obituários, mentem na proclamação das virtudes, maior foi a mentira na imprensa brasileira ao noticiar o livro sobre Canudos como um dos seus grandes feitos.

Pelo contrário, já ali eu havia notado que pelo menos em A Guerra do Fim do Mundo Mario Vargas Llosa havia sido um portentoso fracasso ao cometer um livro falho, indigno de um criador um pouquinho acima da média, porque não se sustentava em vários níveis: a) pela criação mesma de personagens – e um deles era nada mais, nada menos, que Antonio Conselheiro; b) pela desproporção de abismo entre a dimensão humana/política de Canudos e o livrinho realizado; c) pelo cotejo inevitável com a obra-prima Os Sertões – o de Llosa e o de Euclides eram dois mundos estranhos, antagônicos, repelentes recíprocos; d) pela aviltação de Euclides da Cunha, um intelectual de honestidade absoluta. Mas, digamos, isso é passado.

O diabo é que o passado na literatura é um infindável presente. Nela não há jornal velho ou produto com a validade vencida. Na literatura há uma eternidade muito acima da dos diamantes, pois em vez de pedras a humanidade é que brilha. E se perdoam o passo, passagem e queda, queremos dizer, aquele passado ruim, precário e pretensioso de Mario Vargas Llosa torna a voltar em Tia Júlia e o escrevinhador. Então digamos, isso é presente.

Para o caso de Tia Júlia, pouco importa se o narrador se atribua a um autor de radionovela, Pedro Camacho, louco de frases sonoras e de extravagâncias, ou a um escritor cujas recordações se confundem com as do tido como o Magnífico Mario Vargas Llosa. Importa o conjunto, a forma da argamassa geral do livro, e o sentimento de dó, constrangimento que causa até nos olhos de quem desejava apenas se entreter, mas sem rebaixar a própria inteligência. Pois o que diria um leitor diante desta literatura cuja eternidade está mais para diamantes que para a humanidade?

O autor relata como um burocrata, ele conta incidentes sem que se reflitam nos personagens o que ele conta do que fazem. Em romance, ou melhor, em arte, isso é grave. Ele descreve fatos, não narra gente. O reflexo do acontecimento na pessoa navega ao largo. Aquilo que aprendemos em desenho, em imagens do bom e velho cinema, de que a sombra do personagem, em momentos dramáticos, é mais humana que a pessoa, e nem precisaríamos ir a Eisenstein, pois nos basta o que o genial Kafka ensina quando elude o prosaísmo que é o simples contar fatos, esqueçam.

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No romance, o jovem Vargas de 18 anos e sua tia de mais de trinta estavam sob a mira de uma explosão familiar, com ameaças de morte de um senhor arbitrário, pai do narrador, sob escândalo moral e de costumes. E no entanto rumavam para o centro do vulcão em Lima aos beijos e apertos. Quem já passou pelo amor e paixão tensos e perseguidos sabe que as linhas citadas acima são vazias de significado. Amantes à beira do limite de uma dissolução não agem com tamanha leviandade, digamos, para dizer o mínimo. Nesses dois falhos personagens não há o morre e renasce, morre e renasce, como as batidas de um músculo no peito. Júlia e Varguitas longe estão de seguir para o centro de suas vidas com os olhos vermelhos, porque desejariam renascer, quando na verdade fariam um nascimento a fórceps, vindo daquela luz emitida por Goethe. “Enquanto não compreenderes que tudo morre e que tudo renasce, continuarás a ser apenas um visitante de um triste planeta”.

Qual. Para quê um clássico luminoso, para que exigências de humanidade em personagens cômicos, burlescos? Em Tia Júlia e o escrevinhador, Mario Vargas Llosa vence o escândalo, os traumas, a tempestade, a inexperiência de adolescente, pelo que conta em suas linhas. “O casamento com tia Júlia foi realmente um sucesso e durou bem mais do que todos os parentes e até ela mesma tinham temido, desejado ou prognosticado: oito anos”. Que sucesso!

Esse é o escritor Mario Vargas Llosa, que coincide os seus anos de reacionarismo com a decadência artística. Mas pode ser que tudo seja só uma coincidência. Ou talvez uma nova dialética da natureza.

*Jornalista, escritor

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