Aparência e essência na
desigualdade global
Pobreza, desemprego e violência
explodem, mas estes dados são a sombra de transformações mais profundas. O
centro do mundo se desloca para o Oriente — e decadência do Ocidente espraia o
subdesenvolvimento até em países ricos
Marcio Pochmann, Outras palavras
Proliferam
dados cadastrais e de pesquisas a respeito da centralidade da desigualdade no
mundo contemporâneo. São provenientes de bancos, consultorias de gestão de
riqueza, publicações especializadas empresariais, organismos não governamentais
e de centros universitários. Todos, em geral, convergem na descrição do
crescimento da desigualdade, sem questionar, contudo, o sentido implícito do
processo de acumulação de capital e de suas transformações mais recentes.
De certa
forma, o padrão metodológico atualmente perseguido pelo conjunto de informações
acerca da desigualdade no mundo concede centralidade à individualidade
(distribuição pessoal da renda, mais ricos, maiores empresas, entre outros),
excluindo, muitas vezes, o tratamento da realidade como pertencente ao
movimento de natureza totalizante. Resumidamente, o método adotado parece se
aproximar da contribuição iluminista do pensador alemão Georg Hegel (1770-1831)
sobre a fundamentação da razão humana a expressar a concepção da realidade
fundada na ideia formada no tempo e espaço.
Outro pensador
alemão, Karl Marx (1818-1883), também iluminista, destacou que a realidade do
mundo não viria da ideia, mas justamente da realidade social vivida. Por isso,
o conhecimento seria totalizante, uma vez que a perspectiva individualista
seria apenas parte inexorável de um todo interligado.
Veja: A
fome por si mesma não esclarece https://bit.ly/3sorzHH
No enfrentamento dos problemas de natureza humana, o encaminhamento de soluções pressuporia certa visão de conjunto. Do contrário, a capacidade de avaliar a dimensão de cada elemento do quadro geral se tornaria comprometida, permitindo a mera descrição das consequências derivadas de causas, em geral, não reveladas.
Ademais da contribuição dos dois importantíssimos pensadores iluministas alemães do século 19, requer recuperar o aporte teórico inglês de Adam Smith (1723-1790) no enfrentamento dos privilégios e restrições definidas pelas antigas políticas mercantilistas na Inglaterra do século 18. No seu livro Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, de 1776, Smith apontou que no capitalismo a riqueza de uma nação não se mensuraria pela capacidade de acumulação de tesouros, mas pela capacidade do trabalho e da produção fazer circular a própria riqueza produzida.
Em síntese, o nível da produção deveria ser medido pela divisão do trabalho definida pela acumulação de capital. Tendo em vista que no capitalismo a orientação primordial do indivíduo estaria na escolha racional para obter o maior retorno no emprego do capital, não necessariamente, o atendimento das necessidades dos outros.
Desde a virada para o século 21 que a crescente integração das economias no mundo as tornou cada vez mais homogêneas, porém assentadas em crescentes desigualdades sociais e econômicas. O esgotamento da regulação capitalista estabelecida ao final da segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a liberalização estabelecida a partir dos anos de 1970 promoveram a difusão do subdesenvolvimento em novas bases, inclusive nos países que até então eram considerados desenvolvidos, como os do Norte global.
O reaparecimento e a ampliação dos sinais de pobreza, desemprego, violência e desigualdade comparáveis às regiões periféricas do mundo, por exemplo, parecem revelar, não apenas a decadência dos antigos países desenvolvidos, como também e, sobretudo, o deslocamento do centro do mundo do Ocidente para o Oriente. Enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos, por exemplo, foi multiplicado por cinco vezes entre 1960 e 2021, o PIB do conjunto dos demais países cresceu oito vezes. Se comparado à China, o PIB dos Estados Unidos, que era 22 vezes superior em 1960, decresceu para somente 1,3 vezes maior no ano de 2021.
Conforme alertou José Saramago no Ensaio sobre a cegueira, em 1995, a visão cega pode se tornar tortura quando a atenção se concentra fundamentalmente na aparência, distanciando-se de sua essência. Como se fosse prisioneiro na Caverna de Platão1, a convergência das descrições atuais sobre o movimento da desigualdade contemporânea transparece como realidade, embora tenda a ser a própria sombra do movimento maior de aprofundamento do subdesenvolvimento capitalista, sobretudo no Ocidente.
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