07 agosto 2022

Meandros da criação

NACIONALISMO E CULPA

Ronaldo Correia de Brito, em seu site

 

Pouco tempo antes de iniciar o seu trabalho com o Centro Internacional de Pesquisa Teatral, Peter Brook ainda se fazia estas perguntas: Por que fazer teatro? O que é uma palavra escrita? O que é uma palavra falada? Brook havia se determinado, junto com um grupo de atores de diversas nacionalidades, a desaprender tudo o que era certeza no teatro e tatear o caminho de uma nova linguagem. Ele não desconhecia os enganos da palavra “experimental” e sabia que a oposição entre experimental e tradicional era um artifício.

Peter Brook, um autodidata que começou a dirigir cinema e teatro aos dezenove anos, sem nunca antes ter assistido a um ensaio, era inglês, filho de judeus russos, mas com força da cultura britânica. O teatro burguês feito na Inglaterra, o próprio teatro shakespeariano de então, pouco tinha do “questionamento apaixonado sobre a experiência individual e social e seu sentido metafísico de terror e espanto”, característico da era elisabetana.

Mas era possível a Peter Brook, na Europa do pós-guerra, o permanente intercâmbio com os novos experimentos e as tradições. Livre de qualquer censura ou preconceito, aberto às loucuras de Dali e Genet, Brook nunca mencionou o sentimento de traição a esta ou aquela cultura. Não há um único relato em que afirme estar criando o “verdadeiro teatro inglês”. Brook cria para a humanidade, sem ranços de nacionalismo.

Queremos falar de culpa, não no sentido psicanalítico da relação pai-filho, mas a culpa como sentimento de infidelidade na criação. Quando escreve, a quem deve fidelidade o autor? E voltamos a Borges, no seu encontro com Guimarães Rosa, num congresso de literatura. Acho que li esse relato numa entrevista que Guimarães concedeu a seu tradutor alemão. Guimarães não gostou de Borges, que por sua vez nunca relevou a produção literária brasileira. O que o nosso escritor não perdoava ao argentino era o seu desprezo pelos temas sociais. Já Guimarães apontava, na mesma entrevista, como fundamentos da sua criação, a vivência da guerra, a medicina e o convívio com o povo e sua cultura. Basta ler um único dos contos de Sagarana, para saber que isto é verdade.

Guimarães Rosa, que conhecia várias línguas como Borges, inventou um novo idioma para construir a sua obra. Conjeturam que a fala do povo mineiro ou os arcaísmos do português são a base da sua escrita. Não estou negando a grandeza dos contos e do romance de Guimarães, o acabamento perfeito dos seus personagens, como Riobaldo Tatarana, comparável ao Raskólnikov de Dostoievski. Retomo as inquietações de Brook: O que é uma palavra escrita? O autor cria na perspectiva da sua cultura ou dos seus questionamentos pessoais?

A carpintaria da escrita roseana, usando um jargão do teatro, me parece carregada dessa perspectiva de cultura brasileira. Não aceito o pejorativo termo regional para definir sua obra. Invento uma polêmica entre Guimarães e Borges. Ambos foram linguistas e viajantes. Borges tomou o mundo emprestado para falar da Argentina. Guimarães fala do sertão mineiro, quando se refere ao mundo.

Todo este longo preâmbulo, que se inicia com o teatro de Brook, atravessa Borges e deságua em Guimarães é para abordar questões bem particulares da nossa “cultura local”, classificação que abomino. Há algum tempo somos bombardeados por campanhas de “pernambucanidade” e “orgulho de ser nordestino”, gerando uma carreira de artistas em busca de caboclinhos, maracatus, cavalos marinhos e similares. Os jargões políticos são substituídos pelas novas palavras de ordem: raízes da cultura, cultura autêntica, arquétipos culturais, resgate da cultura do povo, manifestações populares. A classificação de popular fica incompreensível diante de tantas significações.

O que é irrecusável, não necessitando de ênfase, é que o lastro da cultura brasileira, sobretudo a nordestina, é de origem popular. É preciso insistir que somos um povo ainda em formação, com altos índices de analfabetismo e miséria, a maior parte das pessoas nunca leu livros (por ignorância e falta de acesso a eles, ou por desprezo pelo conhecimento, como no atual governo, incluindo o presidente da república), nem frequentou teatros e museus. Não deixo de fora o teatro popular de rua e terreiros, fundamental em nossa formação e que muitos ignoram.

A criação é fruto não apenas da memória, mas também do conhecimento. O teatro grego nasce dos mitos, quando Heráclito já havia inaugurado o logos. Do mesmo modo Shakespeare consolida o idioma inglês e reinventa o homem com o seu teatro. Muitos artistas criam as suas obras partindo da memória do popular. Assim foi com a excelente música russa, chamada nacionalista. Borges levanta a seguinte questão: “Que eu me lembre, o problema da literatura popular foi resolvido pouquíssimas vezes e nunca por autores do povo. Esse problema não se reduz (como creem alguns) à correta imitação de uma linguagem rústica. Comporta, antes, um jogo duplo: a correta imitação de uma linguagem oral e a obtenção de efeitos literários que não excedam as possibilidades dessa linguagem e que pareçam espontâneos.”

Será que nos sentimos culpados ao nos apropriarmos de outras culturas, como o fazem Borges e Brook? Falta-nos a convicção do direito a um patrimônio comum a todos os homens? Seria este um sentimento típico de colonizados? Ou a nossa fidelidade ao sonho de criar uma arte “genuinamente” brasileira nos aprisiona ao invés de nos libertar?

Numa entrevista, Antunes Filho fala de sua encenação da Epopeia de Gilgamesh e lamenta ter estado perto de uma ideia de montagem do Mahabharata, feita por Brook, não compreendendo como esse pioneirismo lhe escapou. Brook realizou o que ele, Antunes, poderia ter realizado, adaptar o grande poema épico do povo indiano. Só muito tempo depois, quando a revolucionária encenação de Brook tinha acontecido, Antunes encenou Gilgamesh.

Por que Antunes não se antecipou a Brook, se a ele não faltavam gênio, invenção e arte? Estamos atados a uma fidelidade nacionalista? Curiosamente, a grande criação de Antunes é Macunaíma, o herói brasileiro sem caráter.

Nacionalismo e Culpa

Pouco tempo antes de iniciar o seu trabalho com o Centro Internacional de Pesquisa Teatral, Peter Brook ainda se fazia estas perguntas: Por que fazer teatro? O que é uma palavra escrita? O que é uma palavra falada? Brook havia se determinado, junto com um grupo de atores de diversas nacionalidades, a desaprender tudo o que era certeza no teatro e tatear o caminho de uma nova linguagem. Ele não desconhecia os enganos da palavra “experimental” e sabia que a oposição entre experimental e tradicional era um artifício.

Peter Brook, um autodidata que começou a dirigir cinema e teatro aos dezenove anos, sem nunca antes ter assistido a um ensaio, era inglês, filho de judeus russos, mas com força da cultura britânica. O teatro burguês feito na Inglaterra, o próprio teatro shakespeariano de então, pouco tinha do “questionamento apaixonado sobre a experiência individual e social e seu sentido metafísico de terror e espanto”, característico da era elisabetana.

Mas era possível a Peter Brook, na Europa do pós-guerra, o permanente intercâmbio com os novos experimentos e as tradições. Livre de qualquer censura ou preconceito, aberto às loucuras de Dali e Genet, Brook nunca mencionou o sentimento de traição a esta ou aquela cultura. Não há um único relato em que afirme estar criando o “verdadeiro teatro inglês”. Brook cria para a humanidade, sem ranços de nacionalismo.

Queremos falar de culpa, não no sentido psicanalítico da relação pai-filho, mas a culpa como sentimento de infidelidade na criação. Quando escreve, a quem deve fidelidade o autor? E voltamos a Borges, no seu encontro com Guimarães Rosa, num congresso de literatura. Acho que li esse relato numa entrevista que Guimarães concedeu a seu tradutor alemão. Guimarães não gostou de Borges, que por sua vez nunca relevou a produção literária brasileira. O que o nosso escritor não perdoava ao argentino era o seu desprezo pelos temas sociais. Já Guimarães apontava, na mesma entrevista, como fundamentos da sua criação, a vivência da guerra, a medicina e o convívio com o povo e sua cultura. Basta ler um único dos contos de Sagarana, para saber que isto é verdade.

Guimarães Rosa, que conhecia várias línguas como Borges, inventou um novo idioma para construir a sua obra. Conjeturam que a fala do povo mineiro ou os arcaísmos do português são a base da sua escrita. Não estou negando a grandeza dos contos e do romance de Guimarães, o acabamento perfeito dos seus personagens, como Riobaldo Tatarana, comparável ao Raskólnikov de Dostoievski. Retomo as inquietações de Brook: O que é uma palavra escrita? O autor cria na perspectiva da sua cultura ou dos seus questionamentos pessoais?

A carpintaria da escrita roseana, usando um jargão do teatro, me parece carregada dessa perspectiva de cultura brasileira. Não aceito o pejorativo termo regional para definir sua obra. Invento uma polêmica entre Guimarães e Borges. Ambos foram linguistas e viajantes. Borges tomou o mundo emprestado para falar da Argentina. Guimarães fala do sertão mineiro, quando se refere ao mundo.

Todo este longo preâmbulo, que se inicia com o teatro de Brook, atravessa Borges e deságua em Guimarães é para abordar questões bem particulares da nossa “cultura local”, classificação que abomino. Há algum tempo somos bombardeados por campanhas de “pernambucanidade” e “orgulho de ser nordestino”, gerando uma carreira de artistas em busca de caboclinhos, maracatus, cavalos marinhos e similares. Os jargões políticos são substituídos pelas novas palavras de ordem: raízes da cultura, cultura autêntica, arquétipos culturais, resgate da cultura do povo, manifestações populares. A classificação de popular fica incompreensível diante de tantas significações.

O que é irrecusável, não necessitando de ênfase, é que o lastro da cultura brasileira, sobretudo a nordestina, é de origem popular. É preciso insistir que somos um povo ainda em formação, com altos índices de analfabetismo e miséria, a maior parte das pessoas nunca leu livros (por ignorância e falta de acesso a eles, ou por desprezo pelo conhecimento, como no atual governo, incluindo o presidente da república), nem frequentou teatros e museus. Não deixo de fora o teatro popular de rua e terreiros, fundamental em nossa formação e que muitos ignoram.

A criação é fruto não apenas da memória, mas também do conhecimento. O teatro grego nasce dos mitos, quando Heráclito já havia inaugurado o logos. Do mesmo modo Shakespeare consolida o idioma inglês e reinventa o homem com o seu teatro. Muitos artistas criam as suas obras partindo da memória do popular. Assim foi com a excelente música russa, chamada nacionalista. Borges levanta a seguinte questão: “Que eu me lembre, o problema da literatura popular foi resolvido pouquíssimas vezes e nunca por autores do povo. Esse problema não se reduz (como creem alguns) à correta imitação de uma linguagem rústica. Comporta, antes, um jogo duplo: a correta imitação de uma linguagem oral e a obtenção de efeitos literários que não excedam as possibilidades dessa linguagem e que pareçam espontâneos.”

Será que nos sentimos culpados ao nos apropriarmos de outras culturas, como o fazem Borges e Brook? Falta-nos a convicção do direito a um patrimônio comum a todos os homens? Seria este um sentimento típico de colonizados? Ou a nossa fidelidade ao sonho de criar uma arte “genuinamente” brasileira nos aprisiona ao invés de nos libertar?

Numa entrevista, Antunes Filho fala de sua encenação da Epopeia de Gilgamesh e lamenta ter estado perto de uma ideia de montagem do Mahabharata, feita por Brook, não compreendendo como esse pioneirismo lhe escapou. Brook realizou o que ele, Antunes, poderia ter realizado, adaptar o grande poema épico do povo indiano. Só muito tempo depois, quando a revolucionária encenação de Brook tinha acontecido, Antunes encenou Gilgamesh.

Por que Antunes não se antecipou a Brook, se a ele não faltavam gênio, invenção e arte? Estamos atados a uma fidelidade nacionalista? Curiosamente, a grande criação de Antunes é Macunaíma, o herói brasileiro sem caráter.

Leia também: O caso do robô sensível https://bit.ly/3QkJDMP

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