Por que é preciso questionar o Open Health
Entidades pelo
direito à saúde e à privacidade unem-se contra um dos projetos mais obscuros do
governo Bolsonaro. Documento aponta: além de ameaçar o SUS, ele dá aos planos
privados poder avassalador sobre seus usuários
Gabriela Leite, Outras palavras
A ideia surgiu sorrateiramente, já nos primeiros dias de 2022. O
ministro Marcelo Queiroga denominou-a Open Health e alardeou
que mimetizava a suposta “modernidade” presente no sistema financeiro. O
sentido geral ficou logo claro: trata-se de oferecer, ao conjunto dos entes que
atuam em Saúde, os dados sanitários disponíveis de todos os brasileiros. Mas os
contornos da ideia são muito opacos. É o que denunciam entidades da saúde
coletiva e de direitos digitais, que escreveram carta
aberta para
denunciar os riscos e irregularidades do projeto – divulgada em primeira mão,
hoje, pelo Outra Saúde.
A alegação do
ministro Queiroga, para reunir, numa base de dados única, as informações
médicas dos cidadãos brasileiros, é “ampliar a concorrência no mercado de
planos de saúde”, Isso permitiria às operadoras ter “acesso a perfis dos
usuários e, a partir daí, oferecer propostas adequadas às necessidades de cada
um”. Em agosto, um grupo de trabalho do ministério da Saúde divulgou um relatório que, em teoria, elabora melhor a
proposta. Mas ainda há muitas dúvidas em torno dele.
Leia também: Despercebida durante um dia de trabalho típico
em ambiente remoto https://bit.ly/3Kgmngi
A carta
aberta “Os
perigos do Open Health” é produto de uma parceria inusual
entre o Cebes, a Abrasco, a Frente pela Vida e a Coalizão Direitos na Rede
(CDR), que luta pela proteção de dados pessoais em plataformas digitais. O
documento lista algumas das principais preocupações das entidades em relação ao
Open Health – em especial o fato de que o SUS não está sendo levado em conta
nessas formulações, a não ser como fornecedor de dados para empresas e
operadoras de saúde. O paradoxo é claro. Os planos privados, que hoje atendem a
cerca de 25% da população, podem ter acesso aos prontuários dos pacientes do
SUS, que abrangem, de alguma maneira, 100% dos brasileiros. Esta informação
preciosa lhes permitirá estabelecer estratégicas seletivas de captação de
clientes.
Por isso, o Open Health impõe grandes riscos à população, da maneira
como parece estar sendo desenhado. O primeiro é o de que as empresas de saúde
conhecerão os perfis a fundo – inclusive os riscos de doenças que podem
aparecer no futuro, previstas inclusive por inteligência artificial. Com isso,
podem impor preços diferentes, criar categorias de consumidores ou até mesmo
rejeitar novos clientes com histórico considerado ruim. Essa prática vai contra
as determinações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mas as
entidades que lançam o alerta já percebem aberturas para que as empresas
contornem as restrições.
Outro problema é que esses dados de saúde, por si só, já representam uma
mina de ouro para as empresas. “Qual a garantia de que dados e informações em
saúde da população não serão utilizados exclusivamente para se obter vantagens
comerciais?”, questiona a carta. Há, ainda, a questão da segurança. “Em
dezembro de 2021, por exemplo, o Conecta SUS e as plataformas do Programa
Nacional de Imunização (PNI) sofreram incidentes de vazamento e alteração
irregular de dados pessoais que perduraram por meses sem que fossem resolvidos
e que permanecem sem um desfecho”, relembra a carta.
Segundo o próprio Queiroga, a ideia surgiu a partir do sistema de open
banking, de compartilhamento de dados financeiros entre instituições.
“Contudo, pautar essa iniciativa a partir de uma analogia entre o sistema de
saúde e o sistema financeiro desconsidera as diferenças substanciais entre
ambos”, alerta a carta. “Desse modo, impõe ao direito à saúde uma abordagem
voltada à lógica de mercado, em latente contradição ao seu acesso universal e
igualitário.”
O fato mais crítico parece ser o de que tudo é idealizado às escuras
pelo ministério – bem à maneira do governo Bolsonaro. O projeto é pensado sem
participação popular, não há debate público e nem indícios de que há
preocupação com a governança dos dados de saúde da população brasileira.
Não se trata, segundo as entidades em favor do direito à Saúde e dos
direitos na rede, de querer impedir avanços tecnológicos no SUS. Mas isso só
pode ser feito com participação popular e com governança pública dos dados dos
brasileiros – não a portas fechadas com grandes empresas.
Leia também: Por que a OMS declarou
varíola dos macacos como emergência de saúde pública internacional? https://bit.ly/3cEFFPD
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