20 setembro 2022

Apoiador fake

Fui pago para ser apoiador fake e fazer pergunta ensaiada para Bolsonaro, diz publicitário

Foco do Brasil é citado em armação no cercadinho do Alvorada, quando presidente atacou TV Globo; Planalto não comenta
Gabiela Briló e Ranier Bragon, Folha de S. Paulo

 

No dia 13 de abril de 2020, início da pandemia que já matou mais de 685 mil pessoas no país, o presidente Jair Bolsonaro disse uma frase na saída do Palácio da Alvorada que tinha como alvo a TV Globo e o seu então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que seria demitido três dias depois.

Questionado se teria assistido na véspera à entrevista de Mandetta ao programa Fantástico, Bolsonaro respondeu de pronto: "Eu não assisto a Globo".

A cena —gravada por várias pessoas e imediatamente veiculada nas redes, onde viralizou— foi previamente combinada entre o governo federal e o site bolsonarista Foco do Brasil, afirma o publicitário Beto Viana.

Naquele dia, ele figurava como apoiador do presidente e foi o responsável por fazer a pergunta.

Agora, em entrevista à Folha, Viana diz que havia sido indicado por um amigo e contratado, por telefone, por uma pessoa de nome Anderson, do Foco do Brasil, canal bolsonarista criado por Anderson Azevedo Rossi, com 2,9 milhões de inscritos no Youtube.

Aquela segunda-feira, 13 de abril, era o seu primeiro dia de trabalho.

Ele relata que Anderson o questionou se ele tinha coragem de fazer uma pergunta ao presidente.

"Aí ele falou: 'Eu vou mandar a pergunta aí no WhatsApp e você faz essa pergunta pra ele. Se qualquer outro apoiador for falar com o presidente, você corta porque o presidente está esperando essa pergunta sua. Aí ele mandou o texto do jeitinho que era pra eu falar."

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Mensagens de WhatsApp armazenadas no telefone de Viana mostram que, às 8h26 daquele dia, o contato de nome "Anderson Foco do Brasil" mandou mensagens com o texto literal do questionamento e, posteriormente, orientou-o a sempre se fingir de apoiador e buscar não levantar suspeitas de outros repórteres que fazem a cobertura jornalística no local.

 

Vídeo postado nas redes sociais de Bolsonaro naquele dia mostra a comitiva presidencial parando perto do "cercadinho" —como é chamado esse ponto de entrevistas e conversas com apoiadores—, momento em que o Bolsonaro sai do carro e vai na direção do pequeno grupo que o aguardava.

Viana aparece nas imagens de camisa florida e, assim que vê uma oportunidade, faz a pergunta, repetindo o texto que havia recebido no telefone celular.

"Eu não assisto a Globo", diz Bolsonaro prontamente, sendo ovacionado pelas pessoas no "cercadinho".

Antes de entrar no carro, o presidente repete a frase, "para toda a imprensa", e olha diretamente para o auxiliar que está gravando a cena.

"Eu fiquei até meio sem graça porque imaginei que ele ia falar alguma coisa, falar da entrevista e tal, porque, no meu ponto [de vista], seria uma pergunta de imprensa, mas era uma pergunta para ele poder 'mitar'. Aí ele 'mitou''', diz Viana.

Naquele mesmo dia, às 10h, o fotógrafo recebeu uma TED de R$ 1.100 transferido da conta da "Folha do Brasil Negócios Digitais", antigo nome do Foco do Brasil. Segundo ele, a informação foi a de que era um adiantamento de seu salário mensal, de R$ 2.000.

O publicitário, que hoje trabalha como motorista de aplicativo, afirma que continuou indo ao cercadinho e foi orientado a não fazer mais perguntas e só figurar como apoiador.

Após alguns dias, ele relata que Anderson disse que o vídeo havia viralizado e ele estaria muito visado, razão pela qual ele seria deslocado para fazer imagens de manifestações bolsonaristas na Esplanada dos Ministérios. Cerca de um mês depois, foi dispensado.

Viana diz que nos dias em que ficou no Alvorada, foi abordado algumas vezes por seguranças, mas que outros liberaram seu acesso dizendo frases como "esse é dos nossos".

Em uma das mensagens em seu telefone, o contato em nome do dono do Foco do Brasil diz que uma pessoa de nome Vera, da Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), já havia passado seus dados para os seguranças para que ele tivesse livre acesso.

Em outra mensagem, o contato de Anderson havia lhe prometido ajuda mensal de R$ 500 para que ele alugasse uma moradia na Vila Planalto, que fica bem próxima ao Alvorada.

O publicitário relata ainda que Anderson, ao convidá-lo para o trabalho, o questionou sobre uma filiação ao PC do B. Viana disse que se filiou pouco após ingressar na maioridade, mas que desde então não teve atuação partidária e que era simpático a Bolsonaro.

O sistema de registro de filiação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) mostra que ele se filou ao PC do B em 2007.

Folha enviou perguntas à Presidência da República nesta segunda-feira (19), mas não houve resposta.

Os telefones vinculados a Anderson no aparelho celular de Viana ou estão inativos ou não estão mais com o dono do Foco do Brasil (ao menos um deles foi confirmado como sendo de Anderson em investigação da Polícia Federal).

Folha mandou perguntas ao Foco do Brasil por meio de seus perfis no Instagram, mas também não houve resposta.

Em abril de 2020, Bolsonaro e Mandetta trilhavam caminhos divergentes na condução da pandemia da Covid-19.

O ministro da Saúde defendia posições mais alinhadas às autoridades sanitárias, no sentido de restrição do contato social e pelo uso de máscaras, entre outros pontos.

Bolsonaro já adotava claramente uma posição anticientífica de minimizar a pandemia e de ser contra o isolamento social e o fechamento do comércio.

Naquela entrevista ao Fantástico, ao ser questionado sobre a divergência de opiniões entre ele e o presidente, Mandetta pediu um alinhamento de discurso porque o brasileiro não estava sabendo se escutava o ministro da Saúde ou o presidente.

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Na quinta-feira daquela semana, Mandetta foi demitido e deu lugar a Nelson Teich, que pediu demissão antes de completar um mês no cargo, também em meio a divergências com Bolsonaro.

ENDEREÇOS DE CANAL FORAM ALVOS DE BUSCA DA PF

Endereços do Foco do Brasil foram alvos de busca e apreensão da Polícia Federal cerca de dois meses e meio depois, em julho de 2020, no âmbito da investigação dos atos antidemocráticos organizados por bolsonaristas.

A investigação indicou como era a relação de páginas, sites e perfis bolsonaristas com o governo na tentativa de disseminar notícias de interesse do grupo político do presidente.

Em depoimento dado à PF, Anderson Rossi afirmou que era o fundador e único dono do Foco do Brasil e que seu canal tinha um ganho entre R$ 50 mil a R$ 140 mil ao mês.

Ele afirmou ainda que chegou a receber vídeos de divulgação de atividades de Bolsonaro enviados pelo então assessor especial da Presidência Tércio Arnaud Tomaz. Tércio confirmou a informação à PF, dizendo que enviava esses vídeos a Anderson assim como a diversos jornalistas.

Inicialmente solicitada pela Procuradoria-Geral da República, a investigação teve pedido de arquivamento feito pelo gabinete de Augusto Aras após se aproximar do núcleo mais próximo de Bolsonaro.

Após isso, o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), utilizou o material reunido pela PF para abrir outro inquérito, batizado de milícias digitais. Atualmente, a apuração concentra todos os casos sobre fake news e atos antidemocráticos.

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