29 setembro 2022

Retórica da mentira

Fake news sobre urnas, pesquisas e TSE dominam eleição de 2022

Mentiras de 2018 focavam questões morais, como 'mamadeira de piroca'; agora, sistema eleitoral é um dos principais alvos
Patrícia Campos MelloPaula SopranaRenata Galf, Folha de S. Paulo

 

A "mamadeira de piroca", notícia falsa que marcou a eleição de 2018, deu espaço em 2022 para denúncias infundadas sobre urnas e pesquisas eleitorais, conspirações sobre a TV Globo e a corte eleitoral e o boato de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fechará igrejas caso eleito.

Em 2018, a campanha foi dominada por fake news ligadas a questões morais e de gênero, como a mensagem dizendo que mamadeiras com bico em formato de pênis tinham sido distribuídas
em creches pelo PT e o boato da criação de um "kit gay" pelo então candidato à Presidência Fernando Haddad para doutrinar crianças.

Naquele ano em que a avalanche de notícias falsas surpreendeu os eleitores e as autoridades, montagens mostrando a ex-presidente Dilma Rousseff com o ex-ditador cubano Fidel Castro e acusações de terrorismo contra políticos também inundaram os grupos de WhatsApp, segundo levantamentos feitos pelas agências de checagem Lupa e Aos Fatos, pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e
pela USP na época.

Já em 2022, segundo mapeamento da Palver, empresa de tecnologia que monitora mais de 15 mil grupos públicos de WhatsApp, as mensagens desinformativas que mais viralizaram questionam de algum modo as urnas ou as autoridades eleitorais.

Uma das mais compartilhadas de 15 de agosto, início da campanha, a 15 de setembro dizia que o voto para presidente seria invalidado caso o eleitor não votasse para os outros cargos. Outra narrativa afirmava que o ex-delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz havia investigado as urnas eletrônicas e descoberto que o PT nunca teria vencido às claras no Brasil.

Na reta final para o primeiro turno, entre 5 de setembro e o dia 28, explodiu o volume de mentiras sobre o sistema eleitoral, pesquisas de opinião e ministros do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Um dos conteúdos falsos de maior circulação dizia que as urnas já estavam sendo abertas e fraudadas em um sindicato ligado ao PT, em Itapeva: "Denúncia urgente! Bomba! Urnas eletrônicas sendo modificadas dentro do Sindicato do PT em Itapeva, São Paulo. A fraude sendo revelada antes da eleição".

Segundo a Palver, com base no número de usuários que receberam a mensagem na amostra, ao menos 130 mil pessoas foram expostas a ela.

Na segunda-feira (26), o TSE esclareceu que, desde 2014, um cartório eleitoral de Itapeva realiza o procedimento de carga e lacração das urnas do Sinticom (Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário) por falta de espaço no cartório, e que os funcionários que atuam no procedimento foram contratados por licitação. Mas a ideia continua circulando.

No Facebook, um vídeo da deputada federal Carla Zambelli (PL) sobre o sindicato somou mais de 600 mil visualizações em menos de 24 horas.

No YouTube, foram 84 mil. No Kwai, dezenas de vídeos circulam com as imagens gravadas no local. Alguns deles vêm acompanhados dos termos "golpe das urnas" e "fraude escancarada". O mais viral tinha 194 mil visualizações.

Outro discurso de destaque convoca apoiadores de Bolsonaro a enviar fotos dos comprovantes de voto para determinados grupos de Telegram, um tipo de contagem paralela.

Já um boato, cujas variações atingiram ao menos 20 mil pessoas, diz que a totalização dos votos será fraudada para "apresentar números iguais aos das pesquisas".

Ainda há teorias populares dizendo que as urnas eram entregues na favela e carregadas por garis; que 80% delas têm o código-fonte programado para adulteração; e que o TSE reduziu o número de urnas para brasileiros que vivem no exterior, maioria que seria eleitora de Bolsonaro, e ampliou nos presídios. O texto ainda incita bolsonaristas a seguir o exemplo da invasão do Capitólio nos EUA, em 6 de janeiro.

"Em 2018, a desinformação tinha o objetivo construir a polarização, colocando de forma antagônica temas que não estavam sendo debatidos dessa forma pelas pessoas, causas feministas, questões LGBT", diz Fabrício Benevenuto, professor de ciência da computação da UFMG e coordenador do projeto Eleições
Sem Fake.

"Em 2022, a polarização já está formada e a desinformação está focada em atacar os candidatos e deslegitimar as eleições e as pesquisas."

É o caso da montagem de uma fotografia em que Lula aparece abraçando e beijando Suzane von Richthofen, condenada a 39 anos de prisão pelo assassinato dos pais. Em alguns casos, afirmava-se também, falsamente, que Richthofen seria candidata pelo PT.

Outra diferença entre os dois pleitos é que, em 2018, a maioria das fake news circulava em formato de imagem (59,7%), diante de 19,6% em vídeo, 12,5% em texto e 8,2%, áudio.

Neste ano, segundo a UFMG, a maior parte está em vídeo (37,3%), depois em texto (32,9%), imagem (22,6%) e áudio (7,2%). O monitoramento também mostra vídeos do TikTok e Kwai entre os mais compartilhados.

O cenário ainda conta com amplo uso de redes de nicho, como Gettr, BitChute e Rumble, usadas em especial pela extrema-direita, pontua Tai Nalon, diretora-executiva do Aos Fatos, a partir de dados da organização.

"O ambiente para a desinformação está mais fragmentado, porém muito mais amplo, com mais lugares de distribuição do que em 2018", diz.

Há quatro anos, eram poucos os grupos de esquerda. Agora, dados da UFMG mostram que uma pequena parte dos conteúdos dos grupos desse espectro já aparece entre os mais compartilhados —embora a direita ainda protagonize a disseminação de fake news.

Outra novidade de 2022 é a popularização dos deep fakes e de vídeos manipulados. Entre os mais difundidos de 15 a 26 de setembro em grupos de WhatsApp acompanhados pela UFMG está o
deepfake em que o âncora do Jornal Nacional, William Bonner, anuncia resultados falsos de uma pesquisa Ipec que teria Bolsonaro à frente de Lula.

Segundo Cristina Tardáguila, fundadora da Agência Lupa e diretora do International Center for Journalists, a desinformação de 2018 estava no WhatsApp.

Agora, é cada vez mais comum mensagens com links chamando para assistir a lives, ou com vídeos, de youtubers, podcasts ou veículos de mídia favoráveis ao governo, como Jovem Pan, Gustavo Gayer, RedeTV! e Record.

Nos vídeos, diz Tardáguila, proliferam afirmações falsas sobre o processo eleitoral, as urnas e os candidatos.

"São conteúdos geralmente muito longos, que oferecem dificuldade para os checadores verificarem, e as checagens não aparecem no mesmo espaço", diz. "E é difícil as plataformas derrubarem um vídeo de três horas por causa de duas ou três afirmações falsas."

Os boatos sobre a Globo, o STF e de uma suposta perseguição do PT a cristãos também ganharam tração na reta final. O Monitor de WhatsApp da UFMG apontou que, entre os 10 textos mais compartilhados no aplicativo, 3 diziam que Lula ataca cristãos e que fecharia igreja e prenderia pastores, o associando ao ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, ao demônio e a religiões de matriz africana.

IMAGENS, VÍDEOS E MENSAGENS DE TEXTO DESINFORMATIVOS MAIS COMPARTILHADOS EM 2022

Lista é feita com base em conteúdos que aparecem entre os mais virais dos levantamentos de Palver e UFMG

·         Título de eleitor falso com código de validação e QR-code pró-Lula

Código no documento, que nada tem a ver com o voto, transferiria voto para candidato do PT

·         Imagens de manifestações a favor de Jair Bolsonaro com o texto: #GloboLixo não engana mais –analistas políticos internacionais afirmam que Bolsonaro passará de 100 milhões de votos

·         Foto que mostra suposta fazenda da família do ex-presidente Lula, que, na verdade, é a fazenda Nova Piratininga, que fica em São Miguel do Araguaia, norte de Goiás

A narrativa falsa é de 2019

·         Mensagem sobre bloqueio de bens do ex-presidente Lula: “A Receita Federal está sendo impedida de agir. Lula quer impedir a Receita Federal de avaliar o patrimônio que ele e Lulinha montaram com evidências de mutretas”

·         Suposto esquema de recebimento de recursos Grupo Globo para os ministros do STF Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski

·         Imagem manipulada em que Lula aparece beijando e abraçando Suzanne von Richthofen

·         Vídeo do youtuber Gustavo Gayer dizendo que o IPEC funciona no mesmo endereço que a sede do Instituto Lula

O TSE determinou que Twitter, Facebook e TikTok removam conteúdo do ar

·         Vídeo de Bolsonaro no 7 de Setembro ao lado do empresário Luciano Hang em Brasília

Divulgação foi proibida pelo TSE e enquadrada como propaganda irregular devido ao uso de aparato estatal

·         Vídeo deep fake do presidente Lula em um comício, dizendo que seus eleitores são vagabundos, traficantes e bandidos

·         Vídeo deep fake de William Bonner anunciando falso resultado da pesquisa Ipec com Bolsonaro à frente

·         Montagem com a entrevista de Lula ao Jornal Nacional

·         Mensagens sobre diversos tipos de fraude nas urnas

·         Mensagens dizendo que Lula ataca cristãos, fecharia igrejas e prenderia pastores

Associam o ex-presidente ao ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, ao demônio e a religiões de matriz africana, vistas de modo intolerante

·         Vídeo atribuído à Ursa diz que TSE deixa parte do código com erros propositais para que as urnas das localidades onde Bolsonaro tem mais votos sejam substituídas

A Ursal não existe e virou meme em 2018 ao ser citada por Cabo Daciolo como uma possível organização de esquerda de países latinos

·         Mensagens associando o ministro Alexandre de Moraes e o TSE a conluios com a TV Globo para fraudar a eleição

CONTEÚDOS MAIS DIFUNDIDOS EM 2018

Lista feita a partir de levantamentos da UFMG e da Lupa

·         Montagem de foto mostrando “Dilma e Fidel em Cuba”

·         Suposta ficha criminal de Dilma acusada de terrorismo

·         Foto de parada gay em Nova York dizendo ser de pessoas ligadas à TV Globo, afirmando que não votam em Bolsonaro

·         Montagem mostrando supostas feministas fazendo sexo e defecando em igreja

CONTEÚDOS DESINFORMATIVOS MAIS VIRAIS EM 2018 NO FACEBOOK

Elaborado a partir de levantamento da agência Aos Fatos

·         Urnas eletrônicas que autocompletavam para o PT

·         Kit gay –projeto Escola sem Homofobia idealizado pelo então candidato Fernando Haddad seria usado para doutrinar crianças de 6 anos

O projeto era voltado para o Ensino Médio e não foi adotado em escolas públicas

·         Montagem antiga de uma capa da revista Veja, de 2014, com a foto do ex-ministro do STF Joaquim Barbosa pedindo para que os brasileiros não votassem no PT

·         Áudio falso do Padre Marcelo Rossi declarando apoio a Bolsonaro

·         Postagem falsa dizendo que Haddad teria defendido em livro sexo entre pais e filhos

·         Mamadeira de piroca

Boato dizendo que mamadeiras eróticas teriam sido distribuídas pelo PT em escolas

Para a turma de Lula agora “santinhos” fazem a diferença https://bit.ly/3SeQTdN

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