“Só vi algo parecido com isso na ditadura militar”: o assédio
eleitoral nas igrejas evangélicas
O assédio religioso é uma característica
do segundo turno das eleições de 2022, marcado pelo aumento exponencial no
número de relatos de ameaças de expulsão, perseguição, coerção explícita e propagação de fake
news dentro da igreja evangélica.
Carolina Azevedo, Le Monde
Diplomatic
O assédio religioso é uma característica do
segundo turno das eleições de 2022, marcado pelo aumento exponencial no número
de relatos de ameaças de expulsão, perseguição, coerção
explícita e propagação de fake news dentro da igreja evangélica. Apesar de representarem
parte expressiva do eleitorado de Bolsonaro – de acordo com levantamento do
Datafolha, seis em cada dez evangélicos pretendem votar no presidente no
segundo turno –, aqueles que discordam da posição da maioria frequentemente
encontram problemas ao expressar opiniões.
Eduardo Lima, de 19 anos, faz parte da Igreja Adventista
do Sétimo Dia, vertente protestante histórica que “teoricamente, não é de
direita nem de esquerda, é do alto”. Mas, na prática, os últimos quatro anos
vêm mostrando o contrário: “você pode ser pró-bolsonaro, mas professores de
teologia ou pastores que não concordam com isso acabam sendo isolados,
retirados de seus cargos.”
Foi esse o caso do pastor Edson Nunes, destituído de seu cargo como pastor sênior da
comunidade adventista Nova Semente, em São Paulo, sob alegações de “problemas
teológicos” após envolvimento em polêmicas relacionadas a pautas como feminismo
e direitos LGBT. Criticado pelos setores mais conservadores da comunidade,
ligados à extrema direita e à ideologia olavista, o pastor permanece sem cargo
definido na comunidade.
Eduardo conta também o caso de seu pai, que prega na
igreja em que frequentam. “Ele recentemente fez um sermão falando sobre como
podemos estar tão atrelados às nossas ideias de um messias que nos deixamos
levar pelo mal, usando o exemplo da Alemanha nazista, onde a Igreja Adventista
entregou judeus para o Estado porque Hitler surge como um vegetariano que
defende a família e os valores tradicionais. No intervalo entre o primeiro
culto e o segundo, ele foi advertido de que estava dando um sermão
comunista.”
Fundamentalismo político-religioso e a pauta de costumes
Já tendo considerado se desligar da igreja por
ocorrências do tipo, a família de Eduardo vê a associação de evangélicos com o
bolsonarismo como algo nefasto. “Já em 2018 eu via que o que Bolsonaro fala não
tem nada a ver com a bíblia, é uma coisa hedionda para mim, um pecado enorme.”
Tal utilização da religião na defesa de pautas políticas
e para o convencimento da população representa uma expressão do fundamentalismo
político que ganha força no Brasil desde 2018, explica Magali Cunha,
jornalista, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e
colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas.
“Nós sabemos que a América Latina tem um elo cultural
muito forte com o cristianismo, por conta da colonização e do alinhamento da
Igreja Católica com isso. Então, com o avanço dos evangélicos, essa pauta da
religião vai, com muita força, para a esfera pública, e isso tem sido
instrumentalizado pelos fundamentalismos político-religiosos. É pela religião
que se referenda a pauta conservadora, de costumes.”
Bianca Daebs, assessora da Coordenadoria
Ecumênica de Serviços (Cese)
e membra da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, concorda que as pressões
feitas por membros das igrejas evangélicas têm também como motivação a pauta
moral. “A pauta moral sustenta toda essa discussão. A nossa matriz social é
muito racista, existem as questões de classe e sobretudo as questões
patriarcais. As mulheres são as mais perseguidas dentro desse contexto, a
tentativa de botar a mulher no lugar que a sociedade projetou para ela. Todas
essas questões sustentam esse poder patriarcal instituído sobretudo nas
religiões, que é um domínio privilegiado do poder patriarcal”.
Leia também: O movimento altivo das
lideranças evangélicas que não aceitam papel de gado é um novo cumprimento de
bem-aventurança https://bit.ly/3Sxh3YV
Sônia Mota, diretora executiva da Cese e
pastora na Igreja Presbiteriana Unida – que também pronunciou-se contrariamente
a Bolsonaro em assuntos como a pandemia da Covid-19 e os assassinatos do
jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo – relata desconforto ao
defender pautas relacionadas à defesa de Direitos Humanos.
“Nas igrejas locais, nós pastores percebemos incômodos
crescentes e cada vez mais explícitos por parte de grupos da membresia das
igrejas. Lamentavelmente, a propaganda bolsonarista tem sido mais eficaz do que
as mensagens das igrejas sobre justiça social, direitos e misericórdia.
Grupos fundamentalistas crescem em quase todas as igrejas. Em grupos de
Whatsapp, há apelos, pressões para que grupos progressistas recuem e não se
posicionem, para evitar dissensões. Como pastora, sinto-me muitas vezes sem
apoio, porque há uma ‘chantagem’ em cima da figura pastoral. Sinto que
esperam que você silencie, recue. Parece, no entanto, que sempre somos nós que
temos que ceder.”
Sônia também lembra que silenciamentos e perseguições
dentro das igrejas não são um fenômeno de hoje: “Para ficar na história mais
recente, é só buscar a cumplicidade de muitas igrejas quando, na época da
ditadura militar, grupos cristãos eram perseguidos”. Assim como ela, Magali
Cunha afirma: “Eu, que sou pesquisadora há muitos anos do campo evangélico, só
vi algo parecido com isso nas minhas pesquisas sobre a ditadura militar. Vimos
perseguições, delações, gente que foi presa, morta, torturada, exilada, por
conta de perseguições dentro das igrejas. Não vi nada parecido a não ser agora,
é algo muito semelhante.”
Resistência
“Se, por um lado, há perseguição, por outro, também
existe muita resistência”, finaliza Sônia. Muitos grupos, sobretudo de
mulheres, vêm se organizando nos últimos quatro anos como forma de resistência
ao bolsonarismo dentro das igrejas evangélicas. “Existem dois mitos”, explica
Magali, “primeiro de que os evangélicos são extremistas conservadores.
Historicamente eles têm uma tendência conservadora no campo da religião, assim
como as outras religiões, católicos, judeus, espíritas e islâmicos. Existe o
conservadorismo como predominância mas existem também os grupos que são
progressistas, ideologias mais abertas. O segundo é a falácia de que evangélico
não pode ser de esquerda, que é pecado, algo que também se propaga no interior
das igrejas, e isso não é verdade.”
Segundo Eduardo, “o que a igreja faz mancha o evangelho,
então, para muita gente da minha idade, a primeira associação vai ser: igreja
evangélica é bolsonarismo, porque ela se vendeu. A igreja evangélica não é
historicamente antidemocrática, mas o bolsonarismo consegue ver que esse é um
grupo de pessoas que não está sendo atendido por ninguém e consegue mobilizar
isso.”
É contra isso que surgem grupos como a Cese, a Frente
de Evangélicos pelo Estado de Direito e a Católicas pelo Direito de Decidir.
Esses e outros grupos partem de dentro da igreja para defender o Estado laico,
a democracia, a liberdade de expressão e os direitos de minorias no meio
religioso.
Saiba mais sobre o assunto ouvindo a série especial, “Não bote fé nas fake news”, uma parceria com a Cese que aborda o fenômeno
das fake news e seus impactos entre as comunidades de fé e a democracia
brasileira.
Leia também: Na reta final, dramalhão e
ameaças https://bit.ly/3DDAx9B
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