Um breve ensaio sobre a medicina em devir
“Nas
últimas décadas do século XX, vimos dois avanços marcarem a medicina e as
práticas sanitárias: a crescente incorporação tecnológica e, em aliança a isso,
a saúde como participe decisiva das economias nacionais”
Luiz Vianna Sobrinho e Leandro Modolo,
OutraSaúde
“o que está em jogo
aqui
é um condicionamento do presente pelo futuro,
pelo que ainda não é”
G. Simondon
Comecemos
recontando uma história, mas de uma outra forma que há 10 anos [1]– pois o
futuro parece estar sempre a nossa espreita.
‘Uma bela e jovem
Rainha foi gravemente ferida e encontra-se sobre risco de perder seu bebê e até
mesmo sua própria vida. Resgatada de uma batalha, é rapidamente conduzida para
uma sala branca e envidraçada, de aspecto asséptico e estética futurista –
embora diga o script da ficção, tudo se passou há milhares de séculos atrás,
“numa galáxia distante”. Nesta sala, em uma maca suspensa no ar; seu corpo,
todo envolvido num camisolão branco, é percorrido por um aparelho em forma de
anel que emite um feixe luminoso, ‘scaneando’ toda a sua extensão, dos pés até
a cabeça. Assim, nesse momento, estamos assistindo a uma cena em um hospital.
Mas em uma concepção paradigmática de nosso século e de nossa galáxia. Seus
entes próximos e queridos observam, do lado de fora da sala estéril, através de
um visor de vidro, o desenrolar da propedêutica na mesma expectativa de todos nós:
receber um diagnóstico da situação de saúde da Rainha. Uma cena típica em todos
os filmes de nossa época, onde há atendimento médico de emergência. Ao final do
exame, a porta de vidro se abre e de lá de dentro se aproxima um ‘ser’
levitando, com a aparência aproximada de um liquidificador. Este acompanhava
todo o procedimento no interior da sala e vindo em direção aos familiares,
deixa nestes a mesma expectativa que tem todos os que estão assistindo ao
filme: algo será dito (seja um diagnóstico ou prognóstico) que será
indubitável. Isso é o que sempre se espera da medicina. E ali, naquele ser,
está a/o médica/o da cena.
O pequeno ser se
aproxima e dá um veredito.
Pronto. Foi dado o
diagnóstico da lesão e, logo a seguir, a sua gravidade e o potencial de recuperação.
O ser não titubeia ao falar, sua fala é de certeza absoluta. Os familiares da
jovem rainha não ficam com dúvida, nem tampouco todos nós que assistimos o
desenrolar da novela ficcional.
Mesmo que não tenhamos visto mais nada do
filme em que a cena se encontra, há algo nela que nos interpela a uma urgente
reflexão. Tudo ali representa um “perfeito” hospital, tão preciso, tão
asséptico e tão cientificamente parametrizado que provavelmente a maioria de
nós ficamos satisfeitos e sentimo-nos confiantes e seguros de que nele está
presente tudo que um ato de cuidado médico necessita para sua exatidão. Não é
exatamente isso o que hoje já se espera de uma médica/o e da medicina em
momentos de aflição junto a um familiar ou ente querido? A precisão técnica de
um scanner na leitura de nossa estrutura física; o processamento de informações
em um cérebro digital, onde estão todas as respostas possíveis. A certeza da
fala. A certeza do diagnóstico. A cura indubitável. Não é exatamente o que
sempre buscamos nós mesmos nesses momentos. Não são estes os nossos interesses
e desejos? E não será isso que a medicina hoje nos faz desejar de sua própria
atuação? E não é para isso que aprimoramos métodos de investigação por imagens,
que rastreamos composições químicas, que descemos às profundezas microscópicas
das moléculas de nossos genes e outras proteínas? Na hora da nossa dor, do
nosso medo, do enfrentamento com a morte, não buscamos a certeza das equações?
Se assim for, qual
é o sentimento quando nos vemos experimentar o cuidado com uma médica/o robô,
numa sala totalmente (e friamente) automatizada? Será essa a realização da
precisão científica, da certeza matemática, da ausência de falhas, da total
assepsia, justamente o que esperamos para o cuidado e a cura? Ou não, em
verdade, quando nos transferimos pela imaginação a uma cena de cuidado e cura
ideal, nosso setting de filmagem tem nos cincos sentidos que animam os afetos
da confiança, segurança e esperança um papel central? O olhar, o toque, o
respiro e a fala de quem nos acolhe é decisiva? Ao fim, talvez a interpelação
central da cena da Rainha adoecida seja oriunda do medo ou esperança dos
possíveis futuros convocados pelo médico-robô e daí a pergunta que subjaz o
sentimento tocado na verdade seja “Por que não?”.
Essas perguntas nos
levam a inúmeras questões que nos coloca a experiência do cuidado médico como
um problema a refletir com o paciente – e não
(apenas) como uma solução. E um conjunto delas se refere ao atual cenário da
“transformação digital” da saúde, em particular, da medicina.
Michel Foucault
tratou do nascimento do hospital moderno e, à beira do leito, do nascimento
“não [d]a medicina empírica, […] mas o valor, na medicina, da experiência como
tal” [2]. A experiência é o ponto diferencial da formação e do olhar clínico.
Aos olhos de jovens médica/os, observar os conhecidos e vividos profissionais
era, além de um exemplo de destreza do tirocínio propedêutico, olhar para
formas de saber acumulados na e pela experiência. Num passado recente não era
incomum o comentário: “O Dr. Fulano tem mais de 20 ou 30 mil fichas de
pacientes em seu consultório!”, sentença que anunciava o valor da experiência
como conhecimento confiável e seguro no encontro médico- paciente. Tratava-se,
portanto, de uma forma de saber e agir que não podia prescindir da experiência
individual produzida nestes encontros, pois eram justamente as histórias
experienciadas entre erros e acertos com o paciente que o conferia valor.
Ademais, a experiência individual acumulada e transmitida era o cerne da
autonomia da decisão. Como diria a Jorge L. Bondía “A experiência é o que nos
passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca.” [3]
Nas últimas décadas
do século XX, contudo, vimos dois avanços marcarem a medicina e as práticas
sanitárias: a crescente incorporação tecnológica e, em aliança a isso, a saúde
como participe decisiva das economias nacionais. Se por um lado o poderio das
tecnologias na área médica respondeu às expectativas com ganhos em eficácia
terapêutica nunca vista; do outro, foi justamente o uso desse poderio ao sabor
do mercado que o tornou um dos maiores problemas sanitários nos países
desenvolvidos – o caso estadunidense é paradigmático.
Nesse processo
todo, contudo, o encontro médico-paciente não foi modificado exatamente pela
existência deste ou daquele “objeto técnico”. O uso da ressonância magnética
nuclear não diferiu em quase nada do uso do estetoscópio no encontro clínico.
No entanto, o mesmo não pode ser dito da racionalidade que passou a governar os
saberes e fazeres dos médico/as. O “gerencialismo” [4], conformado pela
abstrata evidência epidemiológica, mudou mais o pensar e fazer médico e sua
autonomia do que os três séculos de descobertas de novos objetos técnicos que
nos separam da medicina medieval.
No período de
restruturação do mercado privado de saúde no país, a partir da década de 1990,
assistimos à chegada da Medicina Baseada em Evidência (MBE) paralelamente à
importação de mecanismos regulatórios de custo – o managed care. As estruturas
de gestão passaram a adotar o referencial teórico da MBE como suporte de
legitimação de mecanismos regulatórios deos custos com interferência direta na
decisão do caso clínico. Dentro do contexto da fundamentação científica para
prática compreendeu-se que estava havendo um aperfeiçoamento, ou maior
aproximação das evidências. No bojo da atuação, esteve a consequente orientação
de tornar o juízo médico/a uma forma menos válida de saber e fazer – uma
experiência menor.
Leia
também: As raízes e os males do tal orçamento secreto https://bit.ly/3S2fFwA
A gestão
corporativa, trazendo para as metas contábeis aquilo que fora antes sedimentado
como princípio [5] – como “valor” –, assume então o controle, com chancela
científica e moral, da condução das decisões e do próprio ethos médico.
A gestão corporativa embaralha-se à clínica; e num processo de simbiose os
valores que passam a orientar na prática – e em última instância – o saber e
fazer se submete ao caráter consequencialista que compõem as metas
clínico-financeiras. Nesse ponto, para que tudo se adeque à liquidez “realista”
do gerencialismo, torna-se fundamental que adotemos então uma única matriz
básica para inteligir e operar a dinâmica dos processos clínico-financeiro em
alta performance. E esse ponto em comum para a gestão financeira e a nova
medicina subordinada à lógica do valor é o dado. São os dados,
digitalmente objetivos e evidentes, que pode então transitar, sem perdas ou
impedimentos, diretamente das raias da gestão corporativa até os processos
correlatos na clínica.
Com efeito,
confirmando essa transformação, Eric Topol, notável professor de cardiologia e
consultor em saúde, já em 2012 nos dava o vaticínio: “A medicina está prestes a
passar pelo seu maior abalo na história. […] É porque, pela primeira vez na
história, podemos digitalizar humanos”.
No centro do esquema
apresentado por Topol está a objetividade total do modelo em que poderá ser
enquadrado o processo saúde-doença com a chegada da transformação digital.
Reforçando as suas críticas de longa data à configuração “maximamente
imprecisa” da MBE em busca de um modelo individualizado com precisão genética;
Topol apresenta o que seria a “disrupção” para as práticas médicas rumo a
futuro: a imensa e exponencial capacidade de armazenamento e processamento de
dados computacionais; a universalização de conexão da população global através
da internet e das redes sociais; e a onipresença de smartphones conectados em
velocidade de banda larga. Tudo isso permitiria a coleta e leitura de dados a
partir de biossensores remotos; o sequenciamento genético individual cada vez
mais barato; o armazenamento e processamento de imagens diagnósticas e um
poderoso sistema de troca de informações. Ao fim, com a transformação digital
teremos uma cobertura ampla que, segundo o autor, estará toda à disposição
em smartphones e cia, dando condições concretas a mais nova
modalidade de encontro de alta precisão entre médico e paciente.
A digitalização do
humano preconizada por Topol, contudo, indica também outros possíveis. Se por
um lado, diversos trabalhos já dispõem de resultados comprovando a acurácia das
tecnologias digitais para o diagnóstico e acompanhamento de doenças, através
por exemplo da análise de bancos de imagens diagnósticas etc. Por outro, a
medicina de dados caminha para se inclinar [6] sobre uma representação
digital da dor na forma de dados digitais, e o paciente em sofrimento como uma
trama complexo de “valores” digitais sobre os quais poderemos ter tanto um
risco quanto uma probabilidade, ou uma tendência, ou, ainda, uma função.
Sob a sombra
bioestatística da MBE já percebíamos a possibilidade de se extinguir de vez o
aspecto subjetivo da clínica, transformando em parâmetros objetivos todo o
encontro clínico – o ato médico tornava-se o operar protocolos. Hoje, a
transformação digital da medicina indica um novo e mais alto vôo: o que dará
unidade (transparente) entre mundo vivido na experiência e o modelo explicativo
será menos a anatomopatologia e mais (muito mais) os dados digitais. Desse
modo, chegaremos ao ponto em que pensar e fazer medicina será pensar e
trabalhar dados científicos e financeiros. E com dados todos podem lidar:
mentes, grupos, processos de trabalhos, gestores, mercados e programas
automatizados.
A medicina de dados
caminha para tornar obsoleto o modelo epistêmico da anatomia-patológica, tal
como o acesso e o processamento desses dados digitais farão da experiência
individual desenvolvida pelo e para o juízo clínico algo descartável. Ao fim,
quando a manipulação de dados, por um sistema autômato de IA, chegar ao
diagnóstico e às decisões necessárias para cada caso, eliminaremos um sujeito
do encontro – a/o médica/o. E, consequentemente, quando o tratamento dos dados
do outro sujeito do encontro, o paciente, pelo algoritmo de machine learning se
consolidar, pouco restará que não seja objeto – mesmo as características
psíquicas, comportamentais ou sociais serão dados digitalizados, e o sofrimento
serão bits descorporificados.
Voltando a cena do
médico-liquidificador, o futuro já nos trouxe a ficção para o real. As tramas
em que transformação digital envolveu a vida contemporânea já nos apresentaram
os variados robôs, cabines e chatbots em funcionamento no atendimento médico ou
‘entrega de serviços de saúde’ [7]. Este serviço de entrega tem forte apelo e
embasamento científico, digamos ser um modelo epistemologicamente potente:
algoritmos de deep learn que processam mais de 20 milhões de artigos
científicos atualizados, inclusive cruzando e balizando seus resultados nas
métricas da MBE. Assim, nosso fictício encontro médico- liquidificador-paciente
acaba de se tornar real e o Xiaoyi enfim é aprovado na prova escrita para
certificação profissional na China…em sua segunda tentativa [8].
Nesse ponto é que
poderemos perceber o que significa a ausência da medicina clínica no que se
apresenta como a medicina de dados. Um modelo de medicina que permanecia por
quase dois séculos, parece chegar ao seu ocaso. E é preciso observá-la e pensar
o que faremos e seremos nós, humanos. Nesse momento de imprevisão sobre o que
será da condição humana, a ciência parece nos apresentar com intenso brilho que
“tudo que é sólido se desmancha… em dados”.
1. Descrição da cena do filme Stars Wars III – Revenge of the Sith.
Parcialmente comentada no livro Medicina
financeira, a ética estilhaçada (Vianna Sobrinho, L.. Garamond,
2013)
2. M. Foucault. Rio de Janeiro:Forense Universitária, 2004.
3. “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, Revista Brasileira de Educação. Campinas,
nº 19, 2002.
4. Para mais veja: Gestão
como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social (São
Paulo. Idéias & Letras, 2007)
5. Medicine
and moral reasoning. (Fulford, K.M.V. Cambridge: Cambridge
University Press, 1994).
6. Creative destruction of medicine: how the digital revolution
will create better health care. (New York: Basic Books, 2012)
7. Lembremos que etimologicamente a palavra clínica, do grego
antigo klinike,
designa uma atividade que se exerce junto ao paciente acamado, como um ato de
inclinar para observar.
8. Ao estilo Amazon da Alexa, autorizada pela agência
norte-americana para prestação de serviços de saúde (FDA).
9. Veja mais em https://www.zmescience.com/science/china-ai-doctor-xiaoyi/
Leia também: Como
a financeirização da saúde se apropria do SUS https://bit.ly/3SX98Vn
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