Como Roberto Jefferson implodiu o PTB e virou o homem-bomba de
Bolsonaro
Ainda que o episódio não tire
votos de Bolsonaro, há pouca margem para que os temas desta reta final da
campanha sejam pautados pelo presidente
André Cintra, Vermelho www.vermelho.org.br
No final da década
de 1970, com a anistia política e a volta do pluripartidarismo ao Brasil, a
corrente trabalhista rachou de vez. De um lado, a ala encabeçada pela deputada
fluminense Ivete Vargas. De outro, o grupo liderado pelo ex-governador gaúcho
Leonel Brizola. Declaravam-se, ambos, herdeiros do histórico PTB, o Partido
Trabalhista Brasileiro, de Getúlio Vargas e João Goulart.
Sem acordo, cada
parte tratou de viabilizar seu próprio partido trabalhista e reivindicar, junto
à Justiça Eleitoral, a histórica sigla PTB. A decisão coube ao general Golbery
do Couto e Silva, chefe da Casa Civil no governo João Batista Figueiredo, que
não tinha o menor interesse em fortalecer um opositor do porte de Brizola.
Assim, em 12 de maio de 1980, por ordem de Golbery, o TSE (Tribunal Superior
Eleitoral) entregou a Ivete, sobrinha-neta de Vargas, a mais simbólica das
marcas trabalhistas.
Com o fim do
bipartidarismo, a ditadura militar visava à divisão das forças oposicionistas,
até então concentradas no MDB. O destino dos trabalhistas seguiu o script do
regime. Enquanto Brizola se credenciou ainda mais como uma referência do campo
democrático e progressista, Ivete logo costurou acordos com o regime e mostrou
que o “novo” PTB tinha pouco em comum com o velho Partido Trabalhista.
Quarenta e dois
anos depois, o PTB, livre de qualquer resquício trabalhista, a não ser pelo
nome e pela sigla, lançou a candidatura do ex-deputado Roberto Jefferson à
Presidência da República. Líder máximo do partido nas últimas décadas,
Jefferson adotou, como Ivete, uma linha mais pragmática e menos ideológica.
Governista por excelência, o PTB foi base das gestões Collor, FHC, Lula, Temer
e Bolsonaro.
Em 2005, no
episódio do “mensalão’, ele rompeu com o governo e usou as tribunas à sua
disposição – na imprensa e no parlamento – para tentar chantagear Lula. Não
teve sucesso. O STF (Supremo Tribunal Federal) o condenou por corrupção passiva
e lavagem de dinheiro, enquanto a Câmara Federal cassou seu mandato. No ano
seguinte, Lula se reelegeu ao Planalto. O ex-deputado, com a condenação, está
inelegível até dezembro de 2023.
Jefferson continuou
a controlar o PTB com mão de ferro, mas parecia condenado ao segundo plano da
política. Cada presidenciável do PSDB a receber seu apoio, nas eleições 2010,
2014 e 2020, não escondia o constrangimento nas cenas e fotos com o aliado de
ocasião. O PTB, oscilando entre 22 e 25 deputados no período, era fonte
significativa de tempo de TV para os candidatos majoritários.
Mas o partido
fundado por Ivete Vargas começou a regredir, passando de dez deputados federais
eleitos em 2018 a apenas um em 2022. Talvez para compensar o encolhimento de
seu capital político, Roberto Jefferson abraçou o bolsonarismo e se tornou
porta-voz de pautas conservadoras, ultraliberais e autoritárias.
Quando atos
antidemocráticos – que se voltavam, acima de tudo, contra o STF – ganharam as
ruas em 2020 e 2021, muitos políticos e empresários procuraram apagar suas
digitais. Não foi o caso de Jefferson, que parecia descontrair-se com a volta
aos holofotes. Em vídeos e postagens nas redes sociais, sem meias palavras, ele
ameaçou abertamente ministros do Supremo.
Em agosto do ano
passado, a pedido da Polícia Federal, Jefferson foi preso. Pesavam contra ele
acusações de nada menos que 13 crimes. Após passar cinco meses encarcerado no
presídio de Bangu 8, o ex-deputado teve a pena flexibilizada para prisão
domiciliar, mediante algumas condições – as chamadas “medidas cautelares”. O
uso das redes sociais, por exemplo, estava vetado.
Por tudo isso, sua
campanha ao Planalto surpreendeu até aliados no PTB. A cassação da candidatura
era questão de tempo – Jefferson nem sequer pôde comparecer a convenção que
aprovou a chapa. Em 1º de setembro, por unanimidade, o TSE barrou a farsa, o
que levou o PTB a indicar o desconhecido Padre Kelmon, vice de Jefferson, para
substituí-lo.
Se no primeiro
turno Kelmon despontou como linha auxiliar da campanha de Bolsonaro à
reeleição, com um discurso ultradireitista e provocações a Lula, foi Jefferson
quem roubou a cena no segundo turno. Ele rompeu o silêncio no sábado (22), ao
divulgar uma gravação nas redes em que, entre outros impropérios, difama a
ministra Carmen Lúcia, do STF. Além de chamar a ministra de “Carmen Lúcifer”,
Jefferson disse que ela “lembra aquelas prostitutas, aquelas vagabundas
arrombadas”.
Ofender ou até
ameaçar membros do Supremo é um dos esportes prediletos dos bolsonaristas. A
convocação do próprio presidente para os atos golpistas de 7 de Setembro, em
2021 e 2022, tinha como eixos “ultimatos” a ministros da Corte. Porém,
Bolsonaro recorreu a um tom moderado e calculado no segundo turno, a fim de
diminuir a rejeição a seu nome e melhorar suas intenções de votos, sobretudo
entre indecisos. A fala de Jefferson destoou não apenas no tom chulo – mas
também no contexto de aparente distensão.
Esses ingredientes
garantiram que no domingo (23), a uma semana do segundo turno, Jefferson se
tornasse o homem-bomba de Bolsonaro nesta eleição. A Polícia Federal solicitou
e o STF autorizou a revogação de sua prisão domiciliar. Quando integrante da PF
tentaram executar a ordem, o ex-deputado lançou tiros de fuzil e granadas
contra policiais. “Não vou me entregar porque acho um absurdo. Chega”, disse
Jefferson.
Em meio a tamanho
pandemônio, a base bolsonarista, em geral unida em momentos de confronto,
cindiu-se. Uns tratavam Jefferson como herói, outros temiam o desgaste para a
campanha de Bolsonaro. Após oito horas, Jefferson acabou por se render.
Indiciado por quatro tentativas de homicídio, ele voltou para Bangu 8. Mas o
escândalo segue vivo – a campanha de Lula já produziu materiais que cotam o
caso.
A crise é
desastrosa para a campanha bolsonarista porque joga o presidente numa espécie
de “escolha de Sofia”, em que qualquer alternativa pressupõe sacrifícios e
perdas. A princípio, ao comentar o fato, Bolsonaro criticou o ex-deputado, mas
cutucou o Judiciário. Ademais, ao dizer não tinha nem mesmo uma foto ao lado do
aliado, ele foi de imediato contestado por jornalistas e internautas, que
inundaram a internet com imagens de encontros entre os dois correligionários.
O presidente ainda
orientou o ministro da Justiça, Anderson Torres, a ir à casa de Jefferson para
mediar as negociações, o que desagradou à Polícia Federal. Membros da
corporação viram na ação presidencial um “teatro” para reduzir danos, não para
resolver efetivamente o problema – tanto que o ministro não se dirigiu ao
local.
Num segundo
momento, o tom de Bolsonaro foi de condenação explícita a Jefferson, a quem o
presidente chegou a chamar de “bandido”, não necessariamente por descumprir
ordem judicial, mas por “atirar em policiais”. A coordenação da campanha à
reeleição detectou um amplo rechaço da população ao atentado contra a Polícia
Federal.
“No Twitter,
60% das manifestações no domingo sobre o caso foram contra a dupla, segundo a
Arquimedes. Nos 15 mil grupos públicos de WhatsApp monitorados pela Palver, o
atentado teve grande repercussão negativa”, registrou o jornalista José Roberto
de Toledo, no UOL. “As palavras mais associadas a Roberto Jefferson
foram ‘Bolsonaro’ e ‘polícia’.”
Em sabatina à TV
Record, na noite de domingo, Bolsonaro tentou, de modo afoito e inútil,
associar Jefferson a Lula e ao PT. Uma gravação do próprio presidente o
desmente. “Tenho uma longa história com o Roberto Jefferson também, já fui do
PTB”, diz ele em vídeo que voltou a circular na tarde de domingo. “Obviamente,
partido que nos apoia estará junto conosco. Ou melhor, continuará junto conosco
ao longo desse ano e de outros anos também.”
Em 2021, Bolsonaro
indultou o ex-deputado Daniel Silveira (PTB), que foi condenado pelo STF. É
possível que o presidente use a mesma cartada com Jefferson – mas não antes da
eleição. Com a busca do voto de eleitores indecisos, essa saída está, por ora,
fora de cogitação.
Ainda que o
episódio não tire votos de Bolsonaro – e o Ipec aponta que suas intenções de
votos seguem estáveis –, há pouca margem para que os temas desta reta final da
campanha sejam pautados pelo presidente. Não se pode sacudir demais um
carro de viagem quando um homem-bomba está a bordo. Pior: é preciso torcer para
que o homem-bomba colabore.
Para duelar com
Lula, Bolsonaro já tentou governadores, cantores sertanejos, jogadores de
futebol, influenciadores e outros atalhos. Nenhuma declaração de voto, por si
só, é tão decisiva. Ainda assim, Roberto Jefferson faz valer o contraponto
entre dois provérbios que revelam o papel do indivíduo nos grandes
acontecimentos: uma andorinha só não faz verão, mas um único inseto é capaz de
destruir a plantação.
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