QATAR: DO MUNDIAL DA VERGONHA AO MUNDIAL
DA MUDANÇA?
Fifa proibiu manifestações dos atletas e colocou mordaça sobre
direitos fundamentais; uso político do esporte não pode ser privilégio da
entidade
Miguel Poiares Maduro, Jamil Chade e Alberto Alemanno,
revista Piauí
Das fortes suspeitas de corrupção às violações dos direitos humanos, a
organização da Copa do Mundo do Qatar tem sido dominada por críticas e
indignação. Ao mesmo tempo, multiplicam-se as acusações de hipocrisia: o Qatar
estaria sendo alvo de uma exigência e escrutínio que não se aplicou no passado,
do Mundial da Rússia às Olimpíadas de Pequim.
Para os autores
deste texto, críticos desses outros eventos e que há muito advogam a necessidade
de profundas reformas na governança esportiva, o problema não são as críticas
de hoje, mas o silêncio do passado. O que falta são mais críticas e, sobretudo,
a transformação dessa indignação numa força reformista da organização esportiva
global.
Foi por isso que,
com outros autores, defendemos sobre o mundial do Qatar:
1º – Não esperamos
(nem exigimos) que a Fifa (ao contrário do que por vezes dá a entender…) seja
capaz de mudar o mundo. Não lhe pedimos que mude regimes políticos, mas
exigimos que garanta que esse Mundial seja organizado de acordo com os valores
e princípios que a própria Fifa proclama;
2º – Não defendemos
boicotes esportivos ao Mundial nem a suspensão das relações diplomáticas com o
Qatar. Mas também não queremos ver os nossos chefes de governo e de Estado a
afiançar o uso desses grandes eventos esportivos para reforçar o poder de
regimes autoritários. Por alguns dias, os líderes desses regimes procuram
ganhar uma chancela de legitimidade, entregam medalhas e sorriem para o mundo.
Gostaríamos que os nossos líderes democráticos não contribuíssem para isso;
3 – Apelamos a que
atletas e federações nacionais usassem essa oportunidade para exprimir a sua
solidariedade com aqueles cujos direitos o Mundial violou, dos trabalhadores
àqueles discriminados em função do gênero ou da orientação sexual.
Os primeiros dias mostraram que o sistema continua vivo, mas também que
alguns atletas e seleções tomaram consciência de que ele se encontra esgotado.
A Fifa começou por
nos demonstrar a sua habitual alienação do mundo: no discurso surreal de seu
presidente, Gianni Infantino, no lançamento do Mundial (comparando a sua
experiência de vida àquela dos que são discriminados em razão da raça, gênero
ou orientação sexual) ou ao ceder, à última hora, ao pedido das autoridades
supremas do Qatar de proibição de bebidas alcoólicas, desde que não fosse
aplicada aos convidados da Fifa.
Ao folclore
seguiu-se a arrogância. A Fifa proibiu o uso da braçadeira com as cores do
arco-íris com que algumas equipes tencionavam demonstrar apoio à diversidade.
Ao proibir, não por motivos esportivos, mas pelo significado que tinha essa
braçadeira, a Fifa colocou uma mordaça sobre os direitos fundamentais,
proibindo os atletas de exprimirem o seu apoio ao princípio da não
discriminação com base na orientação sexual que está inscrito no Artigo 22º do
próprio Código de Ética da Fifa. Para a Fifa, apenas ela e os organizadores têm
direito a usar politicamente o esporte. Um recado de que o monopólio do uso
político da bola está nas mãos dos dirigentes do futebol e dos políticos
cúmplices destes. Para os demais, a lei da Fifa impõe o silêncio.
Mas a atitude de algumas, poucas, seleções revela sinais de que algo pode
estar mudando. Num gesto poderoso, os jogadores da Alemanha têm chance de
entrar para a história dos mundiais. Ao cobrirem as suas bocas no momento de
fazer a foto oficial da estreia, eles expuseram perante o mundo a mordaça da
Fifa. A isto se junta o anúncio, pela Federação alemã, de que tenciona recorrer
legalmente da proibição da Fifa, tendo o apoio, igualmente, da Federação
dinamarquesa.
Isto não deve ser
desvalorizado num mundo onde o poder é tão absoluto e cartelizado que qualquer
dissidência arrisca forte punição. Mas é também por isso que atitudes como
essas são extraordinariamente raras e que, ao mesmo tempo que essas duas
federações exprimiam a sua divergência, 207 das 211 Federações da Fifa
exprimiam o seu apoio à atual liderança.
Entre essas 207
entidades nacionais, existirão outras que têm consciência da necessidade de
mudar. Apenas têm um receio maior de defender a mudança. Isto nos diz que tal
mudança só ocorrerá com pressão externa. Não é por acaso que a federação alemã
anunciou a contestação judicial da decisão da Fifa após o abandono, em protesto
por essa decisão, de um dos seus maiores patrocinadores e a ameaça dos outros fazerem
o mesmo.
Eis o que fazer com
toda a indignação gerada por este mundial: impor às nossas federações que se
aliem às entidades que querem mudanças. Pedir aos nossos atletas que se
libertem da mordaça. Exigir de nossos líderes que reformem o esporte em vez de
o usarem politicamente.
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