Antes de a bola chegar, pelo olhar, Pelé já me dizia o que pretendia fazer
Ele me passava a impressão que o gênio e o ser humano eram um só
Tostão, Folha de S. Paulo
Quando quero me sentir orgulhoso e importante, falo que joguei com Pelé. A primeira vez que o
vi em campo, pelo Santos, foi no estádio Independência, em Belo Horizonte,
antes da Copa de 1958. Ele devia ter 17 anos, e eu,
dez. Fiquei encantado com suas tabelas com Coutinho.
Em 1966, na Copa do Mundo da Inglaterra, eu fui o
reserva dele. No dia da apresentação, em Lambari, no sul de Minas, o encontrei
pela primeira vez fora dos gramados. Ele me recebeu com alegria e com um largo
sorriso. O Cruzeiro fez um jogo-treino contra a Seleção, em Caxambu, e eu atuei
pela Seleção, no lugar de Pelé, que não entrou na partida. Depois do jogo, meu
pai, que estava presente, me pediu para conhecer o Rei. Pelé conversou e
brincou com ele. Meu pai, emocionado, chorou, como um súdito apaixonado pela
realeza.
Pelé estava sempre alegre, sorridente. Atendia a todos com gentileza. Na
época, não havia a distância que há hoje entre os grandes craques, a imprensa e
o público. Pelé me passava a impressão que o gênio e o ser humano eram um só.
Não parecia ter o conflito frequente que há nas celebridades, entre o ser
humano e a personagem, o criador e a criatura.
Pelé foi o melhor de todos os tempos porque tinha, no mais alto nível,
todas as qualidades de um supercraque. Depois, como analista, procurei em
minhas lembranças alguma deficiência de Pelé e não encontrei. O que mais eu
estranhava é que Pelé tinha uma condição física magistral, uma velocidade e uma
impulsão maior que todos os outros, mesmo sendo um menino pobre, que nunca
frequentou uma boa academia, que nunca teve acesso à moderna tecnologia
nutricional e que treinou pouquíssimo, porque, desde muito jovem, jogava pelo
Santos três vezes por semana, pelo Brasil e pelo mundo.
Emocionalmente, Pelé era também muito forte, consciente de que era
superior a todos e que dependia do conjunto para brilhar. Quando o jogo estava
difícil e ele era muito bem marcado, ficava inquieto, possesso. Às vezes, ia
jogar de centroavante, entre os zagueiros. Pedia a bola e, com velocidade e
força física, tirava os zagueiros da jogada para finalizar e fazer o gol.
Antes
da Copa de 1970,
falava-se muito que ele estava decadente, mais lento e e que não tinha a mesma
regularidade de antes. Pelé se preparou muito para o Mundial, para encerrar a
carreira como o maior de todos os tempos.
Logo que comecei a jogar ao lado dele, percebi que, antes de a bola
chegar, ele ficava agitado e me olhava com os olhos salientes, como se dissesse
o que pretendia. Eu tentava acompanhá-lo, pelos movimentos do corpo. É a
comunicação analógica. Se eu tivesse jogado no Santos ou ele no Cruzeiro,
faríamos uma dupla muito melhor. Além disso, na época, a Seleção atuava muito
menos que hoje.
É impressionante como Pelé, mesmo tendo encerrado a carreira há 50 anos,
manteve o prestígio mundial de um Rei. Continuou a ser uma estrela, um
garoto-propaganda, uma celebridade em todo o mundo. Depois que morrerem todas
as pessoas que viram Pelé jogar ao vivo, no gramado e pela televisão, como Pelé
será visto pelas novas e futuras gerações?
Os reis também morrem. É a finitude da vida, a única certeza absoluta.
Já estou com saudade de Pelé, de vê-lo nos gramados, na concentração, com seu
jeito alegre e simples de ser Rei. Parafraseando João Guimarães Rosa, Pelé não
morreu, ficou encantado.
O mosaico da vida que segue https://bit.ly/3Ye45TD
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