Ciao
Carlos Drummond de Andrade
Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar
térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página
de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os
seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem
olhou-o, cético, e perguntou:
- Sobre o que pretende escrever?
- Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana,
moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível.
O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se
dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na
velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de
Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.
Comete é tempo errado de verbo. Melhor dizer:
cometia. Pois chegou o momento deste contumaz rabiscador de letras pendurar as
chuteiras (que na prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao-adeus sem
melancolia, mas oportuno.
Creio que ele pode gabar-se de possuir um título
não disputado por ninguém: o de mais velho cronista brasileiro. Assistiu,
sentado e escrevendo, ao desfile de 11 presidentes da República, mais ou menos
eleitos (sendo um bisado), sem contar as altas patentes militares que se
atribuíram esse título. Viu de longe, mas de coração arfante, a Segunda Guerra
Mundial, acompanhou a industrialização do Brasil, os movimentos populares
frustrados mas renascidos, os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular
para sempre o conceito universal de poesia; anotou as catástrofes, a Lua
visitada, as mulheres lutando a braço para serem entendidas pelos homens; as
pequenas alegrias do cotidiano, abertas a qualquer um, que são certamente as
melhores.
Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a
zanga tem seu lugar mesmo nos temperamentos mais aguados. Procurou extrair de
cada coisa não uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor,
fazendo-o sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que
às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que
outros o façam.
Crônica tem essa vantagem: não obriga ao
paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante
dos grandes problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do
repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece;
dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e
internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que
existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a
crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar
de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou comentários precisos
que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que
desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte em
nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito.
Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se
compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal
ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em
circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais
do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de
atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.
Com esse espírito, a tarefa do croniqueiro estreado
no tempo de Epitácio Pessoa (algum de vocês já teria nascido nos anos a.C. de
1920? duvido) não foi penosa e valeu-lhe algumas doçuras. Uma delas ter
aliviado a amargura de mãe que perdera a filha jovem. Em compensação alguns
anônimos e inominados o desancaram, como a lhe dizerem: “É para você não ficar
metido a besta, julgando que seus comentários passarão à História”. Ele sabe
que não passarão. E daí? Melhor aceitar as louvações e esquecer as
descalçadeiras.
Foi o que esse outrora-rapaz fez ou tentou fazer em
mais de seis décadas. Em certo período, consagrou mais tempo a tarefas
burocráticas do que ao jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal,
leitor implacável de jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das
notícias como as diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma página
bem diagramada causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a reportagem, a
legenda bem feitas, o estilo particular de cada diário ou revista eram para ele
(e são) motivos de alegria profissional. A duas grandes casas do jornalismo
brasileiro ele se orgulha de ter pertencido ― o extinto Correio da Manhã, de
valente memória, e o Jornal do Brasil, por seu conceito humanístico da função
da Imprensa no mundo. Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais,
no segundo, alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista.
E é por admitir esta noção de velho, consciente e
alegremente, que ele hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de
manejar a palavra escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença
vital, já agora sem periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais
novos e vá cultivar o seu jardim, pelo menos imaginário.
Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.
[Esta é tida como a última crônica do autor.]
A realidade é furta-cor https://bit.ly/3Ye45TD
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