Saúde da mulher: a necessária aposta na integralidade
Gabriel Brito/OutraSaúde
Pesquisadora Ana Costa, da Abrasco, defende que ministério abandone políticas verticais, focadas apenas na maternidade. É preciso expandir o cuidado aos múltiplos âmbitos da vida – e as Redes de Atenção Integral podem ser ótimo começo
O ataque do bolsonarismo às mulheres não foi discursivo, e sim real: elas morreram mais eu seu governo. Certamente o discurso antiaborto (e aqui entra a responsabilidade dos líderes religiosos que o apoiaram) tem sua contribuição. Após anunciar a volta de um SUS a serviço de seus parâmetros fundadores e respeitoso dos direitos humanos, a ministra da Saúde Nísia Trindade de Lima publicou o primeiro revogaço de medidas acumuladas no governo Bolsonaro. A mais chamativa, sem dúvidas, foi a portaria 2561/2020, que impunha dificuldades de acesso ao aborto em casos permitidos em lei.
Mas o desmonte sistemático de instrumentos como as Equipes de Saúde da Família, o fim do programa Mais Médicos e o desfinanciamento crônico também são parte da trágica obra. Ao analisar mais criticamente o conjunto, conclui-se que diversos aspectos do direito à saúde foram enfraquecidos. Dessa forma, o debate pela recuperação do SUS passa pelos fundamentos do sistema, desde sua criação, como a universalidade e a integralidade.
“Urge alargar o consenso quanto à complexidade das redes de saúde: não é desejável fortalecer a ideia das redes de atenção primária ou redes temáticas como alguns advogam. Redes, por conceito, envolvem diversos pontos assistenciais com tecnologias e funções distintas e complementares para dar conta de todas as demandas e necessidades das pessoas. Falando mais claramente, nas Redes de Saúde estão dispostos serviços de atenção básica, ambulatórios de especialidades, serviços de pronto atendimento, de pronto socorro, hospitais gerais, hospitais especializados, serviços laboratoriais, outros exames complementares etc. Uma pessoa deve dispor de acesso garantido, sempre que precisar, a todos estes serviços de saúde”, explicou Ana Costa, médica, pesquisadora da Escola Superior de Ciências da Saúde, no Distrito Federal, e da coordenação do Grupo Temático Gênero e Saúde da Abrasco, ao Outra Saúde.
Sobre as políticas voltadas às mulheres, e pelo contexto mencionado no início, a ministra Nísia falou em recuperar a Rede Cegonha. No entanto, na visão de Ana Costa políticas como essa não são bons exemplos. Ela explica que a Rede Cegonha, criada no governo Dilma, pode deixar de lado outras importantes necessidades.
“Particularmente, a Rede Cegonha na sua origem já é uma estratégia criticada porque se distancia do que o Brasil concebeu ainda nos anos 1980 para a saúde da mulher, uma política pautada na integralidade. Veja, essa política criticava os antigos programas verticais de saúde materno-infantil. Porque tais programas reduziam a mulher ao atendimento pré-natal, ao parto e quando muito ao puerpério. Mas as demandas de saúde da mulher, suas necessidades, nas diferentes fases de vida, envolvem várias outras ações”.
Não se trata, obviamente, de negligenciar a maternidade, menos ainda num contexto onde a mortalidade materna cresceu. Mas Ana Costa detalha que a segmentação excessiva tende a concentrar recursos e deixar num segundo plano outras necessidades, afinal, “a maternidade é só uma fase da vida”.
Trata-se de um
grande desafio, pois, sob Bolsonaro, o desmonte foi amplo, geral e irrestrito.
Como explica Ana, também professora e diretora do Cebes (Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde), tudo que pudesse beneficiar o mercado era feito. E isso
reforça a necessidade de se focar nas chamadas Redes de Atenção à Saúde,
desenvolvidas pelo próprio governo Lula, mais notadamente em seu segundo mandato.
Nesse sentido, avançar na relação com estados e municípios será decisivo.
“Devemos
problematizar a transformação do mecanismo de repasse financeiro aos
municípios. Os incentivos financeiros de hoje reproduzem os velhos programas
verticais que impedem a integralidade na ponta, onde encontram o
usuário-cidadão que chega inteiro e é fragmentado pelos serviços de saúde. O
município deve receber recursos suficientes para atender de forma adequada,
oportuna e com qualidade a sua população. E comprometer-se com metas
sanitárias! Ao analisar estes crônicos, incômodos e persistentes problemas,
talvez o momento seja adequado para a implementação de um modelo de políticas
transversais para o SUS”.
Fique com a
entrevista.
Em sua primeira
coletiva, Nísia falou que o SUS voltaria a atender o povo brasileiro de acordo
com seus princípios universalistas e sem agir em desacordo com direitos
humanos. Também falou em recuperar a Rede Cegonha. Dias depois, no chamado
revogaço, chamou atenção a queda da portaria que restringia o direito ao
aborto. Como avalia as sinalizações iniciais da ministra Nísia Trindade em
relação à saúde da mulher?
Eu acho que a
ministra tem sensibilidade suficiente pra escutar os diferentes setores da
sociedade. Esse é um debate corajoso, no qual seria importante o governo
avançar. Lula avançou muito quando criou as Redes de Atenção Integral à Saúde,
a RAS. Toda sua concepção, comandada pelo ministro José Gomes Temporão, teve
uma linha de não favorecer o verticalismo. Movimento que o governo Lula, no seu
primeiro e segundo mandatos, fez pra mudar os mecanismos de financiamento,
pensar a questão da integração e dos serviços, as políticas transversais
criadas, o conjunto de políticas transversais que não eram dotadas de orçamento
próprio, mas se propunham ou se instituíam pela via das metas sanitárias, como
a política nacional de saúde integral da população negra, a política de saúde
da população do campo e das florestas, da população LGBTQIA+, enfim, esse
conjunto que chamamos de política de promoção da equidade.
Tive a honra de
coordenar tais políticas quando dirigia um departamento do Ministério da Saúde
que inaugurava essa forma de políticas transversais, que caíam como um manto
sobre o SUS e não eram exclusivas, um caixotinho no organograma do Ministério da
Saúde. Estavam ali sustentadas por propostas de metas sanitárias, às quais os
estados e municípios deveriam aderir, já que o SUS é um sistema nacional, um
conjunto de instituições estaduais, municipais e federais, cuja coordenação
política é do Ministério da Saúde.
Portanto, as
políticas transversais devem ser objetos de muito respeito e valorização pelo
atual governo, seguindo a linha do próprio governo Lula. Foi ali, em 2008,
2009, que Lula criou a Rede de Atenção Integral. O Lula não criou rede temática,
desse ou daquele grupo de doenças. Nesse sentido, penso que a ministra Nísia
tem se mostrado uma pessoa, e tem este perfil na sua biografia, de escuta,
muito aberta. Ela certamente realizará esse debate e recolocará a política de
organização de serviços e de redes em prática de forma coerente com o segundo
governo Lula e do ministro José Gomes Temporão, quando se criou a RAS.
Esse é o ponto de
partida pra se pensar a organização dos serviços e a RAS da população. Claro
que precisamos certificar a oferta de assistência especializada, intensificar o
pronto atendimento, a hospitalização, qualificar e ampliar, sem dúvida. Mas
tudo isso em um contexto de Rede de Atenção à Saúde. A pessoa que chega no
posto de saúde ou recebe a visita de uma Equipe de Saúde da Família tem de ter
a garantia de todas as necessidades, seja de um especialista, de um pronto
atendimento, de um exame sofisticado, uma internação pra um transplante de
fígado…
É disso que trata a
Rede de Atenção Integral, um rol de complexidades, de diversidade de serviços à
disposição das pessoas. Isso que chamamos de acesso universal. Não é só acesso
a um nível específico. A sociedade precisa de consciência, é importante que os
municípios se ocupem de oferecer serviços atendendo às necessidades das mulheres
e evitem o fatiamento, que normalmente não é só composto de orientações
técnicas, mas também destinação de recursos. Não tem sentido uma determinação
direcionada do ministério, pois criam-se situações artificializadas para
contextos de saúde. Precisamos de uma consolidação da integralidade de todas as
demandas.
A situação
sanitária brasileira, com todas as sequelas da pandemia e a sobrecarga que deve
se manifestar no sistema de saúde, tornam a questão das redes integrais ainda
mais estratégica?
Urge alargar o
consenso quanto a complexidade das redes de saúde: não é desejável fortalecer a
ideia das redes de atenção primária ou redes temáticas como alguns advogam.
Redes, por conceito, envolvem diversos pontos assistenciais com tecnologias e
funções distintas e complementares para dar conta de todas as demandas e
necessidades das pessoas. Falando mais claramente, nas Redes de Saúde estão
dispostos serviços de atenção básica, ambulatórios de especialidades, serviços
de pronto atendimento, de pronto socorro, hospitais gerais, hospitais
especializados, serviços laboratoriais, outros exames complementares etc. Uma
pessoa deve dispor de acesso garantido, sempre que precisar, a todos estes
serviços de saúde.
Uma das questões
que, de forma pertinente, o presidente Lula trouxe no debate eleitoral foi a
redução de filas para “especialistas”. Fazer isso sem uma rede de atenção à
saúde de verdade é perder a perspectiva da integralidade do cuidado de saúde.
Há formas de
fortalecer acesso a especialistas a partir da consolidação das RAS. Sem RAS não
consolidaremos a atenção primária ou básica e corremos o risco de nos desviar
ainda mais do modelo de saúde integral, resolutivo e de qualidade preconizado
para o SUS pela Constituição Federal. E não construiremos redes integrais sem
um comando único de redes assistenciais. Nessa linha, nossa atenção se volta
aos mecanismos de integração necessários entre as secretarias de atenção básica
e a especializada.
No âmbito da saúde
da mulher, como recebeu o discurso da ministra Nísia Trindade de recuperar a
Rede Cegonha, dentre outras políticas públicas ligadas ao SUS desfinanciadas ou
desmanteladas ao longo do governo Bolsonaro?
É importante falar
sobre como, idealmente, seria organizado e orientado o próprio processo de
assistência à saúde dentro do SUS. É muito importante que esse processo de
assistência tenha como referência principal as necessidades e as demandas das
pessoas, e não as concepções tecnocráticas ou corporativas dos profissionais do
serviço de saúde.
Tal demanda não
pode ser compartimentada, porque a doença e a necessidade de assistência médica
têm características que não se podem dividir, porque ora a pessoa precisa de
uma coisa, ora de outra. E o serviço tem que dar conta de todas as demandas. Em
função disso, desde que nós criamos o SUS temos um debate vivo, importante, de
que os programas e as políticas que emergem do ministério da Saúde, órgão
central de coordenação do SUS, não sejam verticalizadas até a base, até os
municípios, pois estes seriam atropelados; atrapalhariam o serviço a se
organizar de acordo com as necessidades da população. Como mostram estudos e
evidências, é incompatível com o próprio princípio da integralidade do sistema.
Inicialmente,
devemos debater a existência de políticas e redes temáticas, que são
orientações exclusivas para funcionamento e atendimento de pessoas de
determinada parcela da população. Tem outros mecanismos de fazer orientação sem
que isso envolva repasses e uma decorrente distribuição desigual de recursos a
um ou outro grupo proporcional. É importante pensar, organizar e propor
políticas e mecanismos de funcionamento do SUS que sejam promotores da
integralidade, da equidade, da universalidade, de sorte que todos os grupos
populacionais tenham chances iguais no sistema de saúde.
Particularmente, a
Rede Cegonha na sua origem já é uma estratégia criticada porque se distancia do
que o Brasil concebeu ainda nos anos 80 para a saúde da mulher, uma política
pautada na integralidade. Veja, essa política criticava os antigos programas
verticais de saúde materno-infantil. Porque esses programas reduziam a mulher
ao atendimento pré-natal, ao parto e quando muito ao puerpério. Mas as demandas
de saúde da mulher, suas necessidades, nas diferentes fases de vida, envolvem
várias outras ações que podemos aqui enumerar: o controle de doenças
infecciosas, saúde mental, violência, planejamento familiar, planejamento
reprodutivo, saúde reprodutiva, câncer, controle de doenças crônicas do tipo
diabete ou hipertensão, atendimento ao parto, doenças relacionadas ao trabalho,
que na mulher assumem uma situação particular…
Portanto, são
múltiplos problemas de saúde. Não tem sentido eleger como prioridade apenas a
função da maternidade, por mais nobre e importante que seja. Mas não é a única
demanda de saúde das mulheres. A maternidade pode ser muito importante em uma
fase da vida, mas não é a única fase da vida. Assim, em função dessa crítica
aos velhos programas materno-infantis surgiu, em 1983, a política de atenção
integral à saúde das mulheres.
Depois do primeiro
governo Lula, ela foi atualizada e incorporou-se um conjunto mais complexo de
demandas, que estavam postas pelas mulheres, com conhecimento e estudos. Essa
política integral tem de ser a grande orientação do Sistema Único de Saúde, que
é a política nacional de saúde integral. Não se pode fatiá-la e colocar uma
prioridade, porque todas as situações de saúde que geram demanda de necessidade
tem de ser prioridade. Não se pode dar prioridade apenas ao combate à gravidez
de risco ou mortalidade materna, e deixar de lado o câncer ginecológico, por
exemplo. Não tem sentido. As mulheres já não podem mais ser fatiadas em
demandas supostamente mais importantes que outras. Todas são importantes e os
serviços têm de se organizar pra dar atenção à saúde e a todas as necessidades.
A Rede Cegonha,
portanto, seria um ponto negativo de inflexão em uma política de saúde integral
mais ampla?
No governo Dilma se
fez a opção por uma priorização do ciclo gravídico-puerperal, e apareceu a
chamada Rede Cegonha, inspirada num programa do Cabral, governador do Rio de
Janeiro na época, que tinha esse mesmo nome e era voltado à redução da
mortalidade materna. Nós queremos que as mulheres não morram de morte materna,
mas também não morram de violência, de câncer, de hipertensão arterial, de
infarto, de diabetes. Queremos que tenham vida plena e isso necessita de
assistência integral. Mas houve o fatiamento da assistência das mulheres
através da chamada Rede Cegonha.
Ela representa uma
intensificação de prioridades e recursos ao atendimento ao pré-natal, parto e
puerpério. Não que não fosse importante, mas não pode ser só isso. Depois,
quando Dilma propôs, nós – médicas, feministas, sociedade civil, estudiosos da
área de saúde da mulher, sanitaristas – fizemos muitas críticas, afirmamos que
significava retrocesso do ponto de vista da organização do serviço de saúde.
Além disso, foi escolhido um nome que nos deixava muito desconfortáveis. Chamar
esse tipo de assistência de Rede Cegonha promovia uma infantilização do nome de
um programa destinado a mulheres, um desconforto enorme às mulheres que
estávamos em franco caminho de produção, ampliação e plenitude de direitos. Na
época, várias de nós, brasileiras de pensamento crítico, tentamos levar à
presidência esse desconforto, até escrevi artigo com Estela Aquino no jornal O
Globo sobre o assunto, por exemplo.
Estivemos muito
ativas, mas Dilma teve uma posição bastante indefectível e manteve o nome. No
máximo, assumiu um compromisso de ampliar um pouco as atividades de assistência
da Rede Cegonha e deu um pouco mais de consequência a essa rede, mas sem
eliminar o gravíssimo fatiamento e uma priorização própria a um conjunto de
demandas, e não à totalidade das demandas das mulheres.
É o pano de fundo
da crítica, num momento de grandes expectativas de avanços e limpeza dos erros
e retrocessos do governo Bolsonaro, o que o governo tem sido muito ativo em
eliminar. Mas também devemos refletir criticamente sobre o que erramos, como
vem fazendo Lula, que de forma muito honesta elege hoje a participação popular
e a democracia como centrais em seu terceiro mandato e reconhece o que foi
fragilizado em relação aos primeiros governos petistas.
Portanto,
espelhando-se no exemplo de Lula, repensar a estratégia da Rede Cegonha seria
muito desejável, daria um significado de avançar rumo à integralidade, a uma
retomada da política nacional de atenção integral à saúde da mulher, construção
de metas sanitárias que pudessem estar associadas a essa política e questões
não mais toleráveis. Não é tolerável, por exemplo, a gravíssima situação de
disponibilidade dos aparelhos de mamografia no Brasil. A chance de uma mulher
do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste realizar uma mamografia é muito menor
do que aquelas das regiões Sudeste e Sul. Isso é intolerável do ponto de vista
da justiça sanitária. É intolerável tantas lacunas de hospitalização de doenças
que requerem internações e cirurgias entre essas regiões. Por isso é importante
definir metas sanitárias urgentes, que o SUS tem de perseguir.
É importante evitar
a morte materna, claro, precisamos de estratégias, construir metas sanitárias a
serem acordadas entre estados e municípios e avançar em relação ao pacto social
do SUS. No entanto, na medida em que nós comecemos a fatiar, a criar
programinha disso, rede temática daquilo, não teremos na ponta – isto é, nos
estados e municípios – o acesso a uma consolidação daquilo que chamamos de
saúde integral das mulheres.
Seria, portanto,
uma limitação do próprio caráter universalista do sistema.
Significa que os
municípios captam recursos que são destinados a esses fragmentos de
assistência, hipertrofiam a sua vocação de oferta de serviços para aquilo que
tem dinheiro e o restante das mulheres ficam descobertas. O próprio serviço de
saúde do município não se consolida dentro dos princípios do Sistema Único de
Saúde, na medida em que abdica de um processo de organizar e obedecer a
integralidade.
São todos os
desafios que estão postos e nesse sentido me parece pertinente abrir o debate
na sociedade, no interior do SUS, entre os gestores do SUS, encabeçado pelo
Ministério da Saúde, com participação dos conselhos, dos movimentos sociais,
pra que a gente possa buscar uma resposta.
O SUS não comporta
mais esse fracionamento de orientações assistenciais. É importante uma
abordagem especial de determinada metodologia e problemas sanitários. Mas
existem outros caminhos, não vamos retomar a verticalização programática, pois
é caminho já superado e já devidamente avaliado, que não se mostrou favorável
ao processo de organização do serviço, coerente com a integralidade, a
universalidade e a justiça sanitária.
Quando você
comentou o revogaço iniciais de Nísia ao Outra Saúde, mencionou que para além
da portaria do aborto, de grande repercussão midiática e social, o governo
Bolsonaro e seus ministros operaram sistematicamente contra o conjunto de
direitos da mulher na saúde. Como foi isso e qual a síntese que você faz sobre
o governo anterior no âmbito da saúde da mulher?
A questão do aborto
é bem dramática. Há alguns casos permissivos no Brasil, como o risco de vida
materna, que dá à mulher direito à realização do chamado aborto terapêutico, o
aborto médico. Outro caso é em relação às mulheres violentadas, o que se
permitia desde o código civil da década de 40 (sabemos que essa concessão se
deveu mais à ideia de proteção da honra do marido do que a uma questão de
liberdade da mulher. De qualquer maneira, abriu-se a concessão). Mas ao longo
dos anos e das décadas, as mulheres não tinham acesso a essa interrupção da
gravidez, apesar da permissão legal. No final dos anos 80, depois de muitas
lutas das feministas, o SUS começa a oferecer serviços de aborto legal.
Inicialmente, em São Paulo sob a prefeitura de Erundina. Já no governo FHC,
chega ao SUS de forma nacional. Quer dizer, havia a permissão legal, mas não
havia acesso real ao serviço. Retrato de uma disputa histórica na qual o Estado
não queria se responsabilizar pelo direito das mulheres.
No final dos anos
90 em diante, começa a presença evangélica na política, cuja pauta principal é
o combate ao aborto e sua legalização. Na cabeça dessas lideranças, Bolsonaro
sempre foi uma liderança, sempre representou no Congresso a luta contra os
direitos das mulheres. Quando Bolsonaro assumiu o poder, eles tiraram
imediatamente as políticas permissivas ao aborto, depois de várias e várias
tentativas, inclusive nos governos chamados populares de Lula e Dilma, e suas
normas técnicas pra orientar a realização de aborto. Nós não podemos esquecer
que essa bancada, pra negociar os seus votos, condenava o uso do termo gênero,
por exemplo. Tínhamos de tirar de documentos oficiais do ministério da Saúde a
palavra gênero porque a bancada evangélica, a bancada antiaborto, exigia, com
sua noção de “ideologia de gênero”, algo que não existe conceitualmente.
Assim, era
previsível que essas políticas fossem varridas do SUS. E foi o que aconteceu.
Quer dizer, um retrocesso em questões que associavam gênero, aborto, direitos
sexuais e reprodutivos, diversidades sexual. Do ponto de vista do direito à
saúde propriamente dito, que a Constituição nos garante, o governo Bolsonaro
atrasou muito também, porque esse bloco não estava só na defesa da pauta de
costumes. Havia também a defesa do mercado. Fortalecimento do SUS, a melhoria
do financiamento, a garantia de qualidade, universalidade, como a Constituição
reza, não eram do interesse deles.
Tudo que pudesse
fragilizar o SUS e ampliar o espaço do mercado era feito. Não podemos esquecer,
é emblemático: quando a crise se abateu sobre o governo Dilma, Eduardo Cunha
colocou um jabuti dentro de um decreto que seria sancionado pela presidenta,
que permitia a entrada de capital estrangeiro na saúde. Isso passou pelo
Congresso Nacional, mesmo com toda uma crítica que fizemos sobre a gravidade em
relação à consolidação do SUS. Hoje nós temos o impacto negativo dentro da
saúde brasileira, um capital financeiro predatório, que já impacta no trabalho
dos profissionais de saúde, já impacta na oferta de planos e serviços privados
de saúde.
Isso foi trazido
por aquele grupo. Eduardo Cunha tem origem no mesmo grupo de Bolsonaro e ambos
visavam favorecer explicitamente o mercado. Ainda no início do governo Temer,
com o ministro Ricardo Barros, se propôs os planos populares de saúde, que
significariam o enfraquecimento completo do SUS, além de iniciativas de criar
mecanismos privados de gestão do SUS. Foi nesse sentido que caminhou o governo
Bolsonaro na saúde, de uma forma mais geral.
É muito emblemático
o caso da saúde da mulher. A política de saúde integral, conquistada desde os
anos 80 pelos movimentos feministas, advoga pela integralidade das demandas e
necessidades em saúde e não apenas o privilegiamento das funções reprodutivas
que acabam reduzidas à maternidade. Bolsonaro fez ressurgir, na sua saga
destrutiva, o velho “materno-infantil”, lamentavelmente. E pior, restrito à
atenção básica, como se o problema do acesso e da qualidade do parto não
tivesse enorme importância!
Quanto aos
militares, fizeram uma mudança na estrutura do ministério da Saúde, inspirada
no passado, quando não havia SUS, quando o ministério apenas fazia prevenção e
a assistência médica ficava no INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica
da Previdência Social). Mais precisamente, plantaram o antigo INAMPS na
Secretaria de Atenção Especializada, e o velho Ministério da Saúde (pré-SUS)
ficou alojado na nova Secretaria de Atenção Básica! Muito emblemático esse
desenho para o Ministério, uma coisa de quando não havia SUS .
Em qual direção
gostaria de ver o ministério da Saúde caminhar nos próximos tempos?
Para ousar, como os
tempos exigem, é necessário mudanças que apontem novas culturas, práticas e
operações transversais demandantes de processos robustos de articulação
intrassetorial, ou seja, de todas as estruturas do Ministério da Saúde.
Por outro lado,
precisamos dar concretude à ação intersetorial, envolver políticas e programas
de saúde dos diversos ministérios responsáveis por real impacto na condição de
saúde. A luta do Movimento Sanitário, que conquistou o direito à saúde, é
apoiada no conceito ampliado de saúde, no processo de determinação social da
saúde.
Devemos
problematizar a transformação de mecanismo de repasse financeiro aos
municípios. Os incentivos financeiros de hoje reproduzem os velhos programas
verticais que impedem a integralidade na ponta, onde encontram o
usuário-cidadão que chega inteiro e é fragmentado pelos serviços de saúde.
O município deve
receber recursos suficientes para atender de forma adequada, oportuna e com
qualidade a sua população. E comprometer-se com metas sanitárias! Somos um
sistema cujas responsabilidades federativas são claras.
Ao analisar estes
crônicos, incômodos e persistentes problemas, talvez o momento seja adequado
para a implementação de um modelo de políticas transversais para o SUS, articulando
responsabilidades e atribuições das diversas áreas e setores do Ministério.
Esse modelo institucional tem potencial de repercutir positivamente nos órgãos
gestores estaduais e municipais e no modus operandi na gestão do SUS.
O futuro exige,
reafirmo, que a saúde das mulheres seja definitivamente desvinculada do
reducionista conceito de materno-infantil, que não seja encarcerada apenas na
atenção primária, já que requer tecnologias assistenciais e de vigilância à
saúde distintas. Requer formação de profissionais e produção de pesquisa e
conhecimento. Requer mecanismos participativos de interlocução com movimentos
sociais, academia…
Reforçando a
abordagem horizontal fundada nas articulações intrassetoriais, tomo como
exemplo a saúde de grupos especiais ou mais vulneráveis, adotando estratégias e
olhares de interseccionais de raça, gênero, classe social etc. Nestes grupos
estariam mulheres, população LGBTQIA+, população negra, população em situação
de rua, ribeirinhos e demais povos do campo e das florestas, ciganos etc. O
processo de articulação deverá mobilizar não apenas os setores internos do
ministério da Saúde (intrassetorial) como também os demais setores do governo
(intersetoriais) que tanto defendemos como estratégia para incidir sobre o
processo da determinação social da saúde.
Espero que isso
tudo que falamos aqui seja refletido pelos gestores de saúde. É uma preocupação
oportuna de todos nós da saúde coletiva.
A
vida a cores e em branco e preto https://bit.ly/3Ye45TD
Nenhum comentário:
Postar um comentário