‘Anistia’ a Bolsonaro
tem poucas chances reais, dizem especialistas
Durante a cerimônia de posse de Luiz Inácio LÇula da Silva (PT) nesse
domingo, o público presente gritava um audível “Sem anistia”
Mariana Alvim, BBC Brasil
A palavra de ordem reflete uma demanda de
apoiadores de Lula para que o agora ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) responda
na Justiça por eventuais suspeitas de crimes. Para especialistas entrevistados
pela BBC News Brasil, entretanto, as chances reais de que ocorra algum tipo de
anistia para Bolsonaro, levando em conta as possibilidades de perdão para
crimes estabelecidos pela legislação brasileira, são hoje baixíssimas.
Ao
deixar o mandato, dando lugar ao novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), Bolsonaro perdeu o foro privilegiado e passará a responder a eventuais
processos na Justiça comum.
Ainda
que Bolsonaro não seja atualmente réu em qualquer processo judicial e nem tenha
sido condenado, as investigaç&o tilde;es que pairam sobre
ele e a tensa rivalidade política no país levaram
personalidades da vida pública a sugerir, desde a campanha eleitoral de 2022,
que fossem levadas em consideração possibilidades de perdão para eventuais
crimes cometidos durante o mandato em nome da "pacificação" do país.
Bolsonaro
enfrenta investigações, autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e
conduzidas pela Polícia Federal (PF), sobre diversas supostas irregularidades,
como por exemplo a de interferência na própria PF e o vazamento de dados
sigilosos. Uma dessas investigações teve movimentação recente: a PF concluiu,
no fim de dezembro, que Bolsonaro atentou contr a a paz pública e incitou a
prática de crimes durante a pandemia — mas deixou a decisão pelo indiciamento
com o STF.
Ainda
não está claro qual deve ser o rito desta investigação, agora que o
ex-presidente não tem mais foro privilegiado.
Em
setembro, o ex-presidente Michel Temer (MDB) havia afirmado em um evento dos
jornais O Globo e Valor que o presidente eleito — naquele momento, o resultado
não havia sido definido ainda — deveria trabalhar pela "pacificação"
do país "em um grande pacto nacional".
"Isso
vai significar, talvez possa significar, a hipótese de anistias do
passado", disse Temer, citando o Pacto de Moncloa, que marcou a redemocratização
da Espanha em 1977. "Quando falo nesse pacto de pacificação, estou
imaginando que seria verificado, se houver anistia, o que é anistiável e o que
não é. Mas seria um gesto de harmonia no pa&i acute;s."
A
reportagem pediu uma entrevista ao ex-presidente Temer sobre o assunto, mas foi
informada que não seria atendida por indisponibilidade de agenda.
Já o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Marco Aurélio Mello afirmou em novembro ao portal de notícias UOL que o
presidente eleito deveria agir pela busca do "entendimento para combater
as mazelas do Brasil" e poderia conceder a graça a Bolsonaro. A graça é
uma das modalidades de perdão a crimes previstas no Brasil, junto com o indulto
e as leis de ani stia (entenda abaixo). Em entrevista à BBC News Brasil
por telefone em 20 de dezembro, Mello ratificou sua posição.
"Seria
pela pacificação do país. E para afastar esse antagonismo reinante que é muito
ruim, é péssimo", afirmou. "É um ato soberano do presidente da
República (a concessão da graça). Que o empossado em 1º de janeiro perceba essa
possibilidade, mas vamos ver. As paixões prevalecem, aí não sei se é
prov&aa cute;vel. A essa altura, não acreditemos em Papai Noel",
brincou o ex-ministro.
A
BBC News Brasil pediu posicionamentos do PL e da assessoria de imprensa de Lula
sobre as propostas de "anistia" a Bolsonaro, mas não recebeu resposta
até a publicação desta reportagem.
Pelo
menos a olhos vistos, nenhum dos dois lados — no entorno do ex-presidente e do
novo presidente — demonstrou até agora estar minimamente mobilizado para seguir
adiante com a aplicação de alguma das modalidades previstas na lei brasileira
em favor de Bolsonaro.
Entenda
abaixo os tipos de perdão a crimes existentes no Brasil e os obstáculos que
eles apresentam no caso de Bolsonaro.
Nas
mãos do presidente: indulto e graça
Segundo
a Constituição, o presidente da República tem o poder perdoar o cumprimento da
pena de alguém que tenha sido condenado judicialmente. O Código Penal tipifica
os dois meios para isso: o indulto e a graça.
"O
indulto e a graça são faces da mesma moeda. A graça presidencial seria o que a
gente chama de indulto individual. O indulto é o termo que nós temos usado para
nos referir ao indulto coletivo, quando o presidente da República, por exemplo
no indulto natalino, libera do cumprimento da pena de prisão em determinadas
condições", explica Wallace Corb o, professor da FGV Direito Rio, doutor
em Direito Público e advogado.
"O
presidente da República não tem o poder de afastar a natureza criminosa. A
pessoa continua tendo sido condenada, continua sendo considerada criminosa, mas
ela não vai cumprir a pena."
Professor
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o advogado e doutor em
Direito Davi Tangerino avalia que a possibilidade de Bolsonaro ser agraciado é
"muito improvável".
"Primeiro,
porque não tem condenação. Depois, porque acho que politicamente é improvável
que o Lula tome uma providência dessa natureza. Exceto, claro, que tivesse um
clima de convulsão social para isso", afirma Tangerino.
Durante
a campanha eleitoral, em setembro, o próprio Lula lembrou que seu oponente não
foi condenado e afirmou que Bolsonaro teria a "presunção de inocência que
eu não tive" em eventuais processos judiciais.
"Outro
dia eu fui em um debate e alguém me perguntou se eu ia anistiar o Bolsonaro. Eu
fiquei com vontade de perguntar para o jornalista: você sabe que crime ele
cometeu? Porque eu não vou tomar posse com espírito de vingança de
ninguém", disse Lula, na ocasião.
Tangerino
explica que desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, havia a tradição do
presidente editar um decreto próximo ao Natal — por isso o apelido
"indulto natalino" — perdoando a pena de detentos sob algumas
condições, por exemplo que uma parte da pena já tivesse sido cumprida e que os
crimes não fossem hediondos.
A
prática foi significativamente alterada no governo Bolsonaro em 2019, 2020 e
2021, que basicamente restringiu o benefício a militares, agentes de segurança
pública e detentos com problemas de saúde. Em seu último ano de mandato, porém,
Bolsonaro publicou um decreto de indulto atípico e surpreendente, como mostrou
a BBC News Brasil. O então presidente beneficiou todos os condenados
à prisão por crimes não violentos com pena máxima inferior a cinco anos de
reclusão ou detenção, o que inclui furtos simples e estelionato.
"O
primeiro caso relevante" da concessão da graça, segundo o professor, foi o
do ex-deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ). Em abril, Bolsonaro
anunciou que concedeu o indulto individual a Silveira,
condenad o pelo STF pelos crimes de coação em processo judicial e tentativa de
impedir o livre exercício dos poderes da União.
Veja: Será aceitável que 9 crimes tão graves fiquem impunes? https://youtu.be/sJ2lSvc193E
Os crimes tinham ocorrido entre 2020 e 2021 quando o então deputado divulgou vídeos em redes sociais atacando o STF, defendendo uma intervenção militar e ofendendo pessoalmente membros da Corte.
Anistia via Congresso
Por
sua vez, a anistia propriamente dita pode ser criada por uma lei ordinária no
Congresso Nacional, segundo prevê a Constituição.
Wallace
Corbo explica que esta modalidade apaga a "possibilidade de sequer punir
um determinado crime" — ou seja, ela se antecipa a eventuais processos e
condenações judiciais, mas pode se aplicar também a condenações já ocorridas.
No
Brasil, o principal exemplo desta modalidade é a lei da anistia de 1979. Apesar
de ser anterior à Constituição de 1988, a lei foi
confirmada em 2010 pelo STF e segue em vigor. Em linhas
gerais, a lei perd oou crimes cometidos por militantes de esquerda e agentes de
Estado durante a ditadura.
Críticos
da legislação dizem que ela deixou impune agentes que cometeram crimes contra a
humanidade, diferente do que ocorreu em países vizinhos, como a Argentina, que
revogou a lei da anistia aprovada por militares e condenou membros do regime
que participaram de homicídios, torturas e sequestros. Enquanto isso, no
Brasil, as Forças Armadas e pessoas contr&aa cute;rias à revisão da lei de
1979 enxergam que ela permitiu uma transição pacífica entre a ditadura e a
democracia. Em seu voto em 2010, o ministro Gilmar Mendes defendeu que a lei
preparou o terreno para a aprovação da Constituição de 1988.
Outros
países tiveram pactos e leis de anistia em transições importantes, como a
Espanha com o Pacto de Moncloa, citado por Temer, e a África do Sul após o
apartheid.
Juliana
Alvim, professora de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
da Central European University (na Áustria), avalia que, no caso de Bolsonaro,
o contexto não justifica uma anistia da mesma forma que experiências anteriores
— que aliás, no caso brasileiro, ela também critica, afirmando que a anistia
pós-ditadura militar foi "mal feita", "incompleta" e mais
focada em "ocultar o passado, do que se reconciliar com o passado".
"Qual
seria a justificativa para se criar algum tipo de anistia nesse caso (de
Bolsonaro)? Não consigo nem ver. Fica ainda mais forçado do que no caso de uma
transição da ditadura militar, em que você teve grupos armados. Fica flagrante
um certo abuso desse tipo de instrumento (a anistia) na situação atual",
afirma Alvim, doutora em Direito P&u acute;blico.
"Em
termos de tensão política, você teve um presidente que foi preso, que cumpriu
pena", lembra, referindo-se a Lula, que ficou preso por 580 dias entre
2018 e 2019, quando estava fora do Planalto. "Ele cumpriu uma pena que
depois veio a ser anulada, e isso não ensejou qualquer tipo de proposta
semelhante. Então fica muito flagrante uma seletividade de querer aplicar esse
argumento da reconciliação para beneficiar um lado específico."
"Além
disso, Bolsonaro está sendo investigado por coisas bastante diferentes: tem a
questão dos atos antidemocráticos, tem a questão da pandemia... O que seria
essa legislação? Que anistia abrange todo esse tipo de conduta?",
questiona a especialista.
Davi
Tangerino recorda outra lei de anistia, fora do âmbito da redemocratização
brasileira, sancionada em 2016: a da repatriação de bens, que permitiu a
regularização de bens não declarados que estavam no exterior antes de 31 de
dezembro de 2014 e extinguiu a possibilidade de punição por crimes fiscais
relativos a esses bens.
"Nesse
caso da repatriação, tinha um sentido econômico óbvio, o tributário, porque
efetivamente o governo recolheu um caminhão de dinheiro com isso.
Em
1979, a gente estava na transição democrática e vários países fizeram leis de
anistia parecidas. Agora, por que anistiar Bolsonaro? Qual é o interesse do
Estado bra sileiro com isso? Anistiam-se todos os crimes cometidos pelo governo
federal nos últimos quatro anos? Ou pelo Bolsonaro especificamente nos últimos
quatro anos? Ou teríamos uma lei de anistia para a família Bolsonaro? É muito
esquisito do ponto de vista jurídico e imagino que o Supremo não manteria uma
decisão dessa natureza", diz Tangerino.
Todos
os especialistas entrevistados afirmaram que a anistia tende a se aplicar a
grupos ou crimes ligados a períodos específicos — por exemplo, regimes
políticos bem delimitados — e não a pessoas.
"Uma
legislação que se volta especificamente a uma ou outra pessoa tem um risco
maior de ser invalidada (por cortes superiores). Mas ainda assim, podemos
imaginar aqui legislações que poderiam surgir no caso de Bolsonaro, como uma
lei que busca anistiar todos os agentes políticos que tenham praticado atos no
contexto da pandemia", exemplifica Wallace Corbo.
Ainda
assim, o presidente da República, neste caso, Lula, também tem participação em
leis de anistia — não com um poder direto como no indulto e na graça, mas com a
sanção presidencial, embora o Congresso também possa derrubar vetos
presidenciais, sob algumas condições.
Tangerino
cita ainda movimentações recentes na política nacional que colocam em dúvida a
disposição do Congresso em levar à frente uma anistia que beneficie Jair
Bolsonaro.
"O
Congresso é onde há alguma chance de se ter aliados para essa proposta. Mas,
agora, o Lira (Arthur Lira, presidente da Câmara) está costurando o apoio do PT
para sua reeleição. Será que ele vai gastar mais capital político para salvar a
pele de Bolsonaro, por um projeto que ele sabe que iria parar no STF, que
geraria desgaste? Tenho muitas dúvidas."
'Senador vitalício' ou anistia
'informal'?
Na
talvez única ocasião em que falou do assunto, Jair Bolsonaro disse que
"não tinha interesse" em uma eventual anistia.
"Não
estou interessado nisso, vão falar que eu estou pedindo arrego, 'peidou na
farofa'. Não quero essa imunidade", afirmou em agosto ao podcast Flow.
Entretanto, alguns colunistas de política, como
Lauro Jardim, do jornal O Globo, têm registrado uma movimentação em Brasília,
capitaneada pelo senador Eduardo Gomes (PL-TO), para criar o cargo de senador
vitalício, que seria assumido por ex-presidentes — mantendo o foro privilegiado
que tiveram durante o mandato. A proposta não foi, até o mo mento, apresentada
oficialmente no Congresso. A BBC News Brasil pediu o posicionamento de Gomes,
mas não foi atendida.
Wallace
Corbo lembra que alguns atores políticos podem estar vislumbrando também uma
espécie de anistia informal ao atual presidente. "A gente não
estaria falando especificamente de uma lei mas, por exemplo, de uma tentativa
dos órgãos de persecução criminal de não investigar o presidente. Seria como se
dissesse: agora que acabou a eleição, juízes e membros do Ministério Público, não
peguem pesado com o presidente, vamos apagar essa história.
Mas
isso é muito mais difícil de coordenar do que uma legislação, porque a gente
está falando de muitos membros, de muitas pessoas diferentes que têm uma
independência", opina o professor da FGV Direito Rio.
"Seria
como aquela famosa ligação do Romero Jucá falando de um 'grande acordo
nacional, com o Supremo, com tudo'", complementa, referindo-se a uma
ligação entre o ex-senador e o empresário Sérgio Machado, < span
style="color:#222222">cuja gravação foi vazada em 2016,
em meio à crise do governo Dilma Rousseff (PT).
O instigante mundo atual https://bit.ly/3Ye45TD
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