O abuso do conceito de “populismo”
Economista marxista
indiano critica a forma como o neoliberalismo utiliza o conceito de
populismo de forma pejorativa.
Artigo publicado originalmente na Monthly Review em
21.01.23. Tradução de Theófilo Rodrigues
Fundação Grabois www.grabois.org.br
Todos os regimes
baseados no antagonismo de classe requerem um discurso para legitimar a
opressão de classe e esse discurso, por sua vez, requer um vocabulário próprio.
O regime neoliberal também desenvolveu seu próprio discurso e vocabulário e um
conceito chave neste vocabulário é o “populismo”. Este conceito é amplamente
divulgado pela mídia, que é povoada por membros da classe média alta que foram
os principais beneficiários do regime neoliberal e, portanto, desenvolveram um
interesse pessoal em sua continuação. O alcance desse conceito é tão difundido
que mesmo membros progressistas e bem-intencionados da literatura foram vítimas
de seu abuso e empregam o termo com a conotação pejorativa tipicamente
transmitida a ele pela mídia corporativa.
O termo “populismo”
obviamente não é uma invenção da intelectualidade neoliberal. Foi usado muito
antes, mas com um significado muito diferente do que lhe é dado agora. Os
narodniks russos, por exemplo, foram chamados de “populistas” pelos marxistas
russos, incluindo Lênin, mas o termo foi usado para denotar o fato de que os
populistas não faziam distinções de classe dentro da massa que eles
indiscriminadamente chamavam de “povo”. A ideia não era desacreditar o uso do
termo “povo”, pois o próprio Lênin usava o termo “povo trabalhador” para
designar trabalhadores e camponeses; era para evitar a obliteração das
distinções entre eles que precisavam ser traçadas teoricamente. No
neoliberalismo, no entanto, o termo é usado para se referir a qualquer apelo
feito a qualquer segmento do povo trabalhador, seja para mobilizá-lo por
motivos de chauvinismo religioso ou por meio de transferências fiscais para
eles.
O termo “populismo”
em seu uso atual, portanto, abrange tanto apelos fascistas quanto semifascistas
ao povo sobre questões que deliberadamente camuflam sua opressão, bem como
todas as tentativas de garantir alguns ganhos para aliviar sua opressão. O
primeiro é às vezes chamado de “populismo de direita”, enquanto o último é
chamado de “populismo de esquerda”. A ofuscação ideológica é óbvia aqui: não
apenas não há perspectiva de classe por trás do uso do termo, mas ao tratar
tanto o populismo de “esquerda” quanto o de “direita” como tendências
prejudiciais, há um privilégio do “meio”, ou seja, uma posição burguesa liberal
como a única “sensata”. Um conceito utilizado em uma crítica teórica rigorosa
em relação à cognição de uma entidade de massa, como foi o caso dos marxistas
russos, agora se converteu em uma apoteose da posição liberal burguesa.
Este não é apenas
um caso de ofuscação; é enganador também. A marca registrada das posições
fascistas, neofascistas e semifascistas rotuladas como populismo de “direita” é
que elas não têm nada a oferecer em termos de benefícios econômicos para as
massas. Em contraste, o chamado populismo de “esquerda” exige medidas de estado
de bem-estar e, no mínimo, transferências econômicas para o povo; ao colocar os
dois em pé de igualdade e desmascarar o “populismo” em geral, o discurso
dominante essencialmente desmascara todas as transferências econômicas para o
povo. Defende, portanto, uma posição segundo a qual quaisquer concessões
econômicas feitas ao povo devem ser evitadas e o foco do governo deve estar
inteiramente no crescimento do PIB; uma vez que as transferências para o povo consomem
recursos que poderiam ter sido usados para fazer investimentos que teriam
acelerado o crescimento, tais transferências são um desperdício, feitas sob
coação apenas por causa de compulsões eleitorais, mas de forma totalmente
imprudente. Uma extensão dessa lógica é o argumento de que qualquer tentativa
por parte do governo de reduzir a desigualdade econômica na sociedade também é
imprudente.
Este discurso está
perfeitamente de acordo com um regime neoliberal. Antes de ser introduzido,
ninguém teria criticado se uma agenda de redução da desigualdade e eliminação
da pobreza avançasse. Na verdade, Indira Gandhi ganhou uma eleição com o slogan
de Garibi Hatao (remover a pobreza); é claro que ela não fez isso,
mas a crítica contra ela não foi que ela usou o slogan, mas que ela não o fez.
Amartya Sen havia argumentado há muito tempo que dedicar apenas 5% do PIB
eliminaria a pobreza na Índia e que o país deveria fazê-lo renunciando ao
consumo total em uma quantia igual ao crescimento do PIB de apenas um ano (que
era então de cerca de 5% ao ano). A redução da desigualdade e a eliminação da
pobreza foram, portanto, consideradas tarefas primordiais perante a economia
durante o período dirigista; mas não agora, embora tenha havido um aumento
maciço na desigualdade de renda e riqueza sob o regime neoliberal. E o recurso
ao uso pejorativo do termo “populismo” é um meio de desmascarar todas essas
demandas por maior igualitarismo, uma arma ideológica nas mãos do capital
corporativo e da crescente classe média alta para derrubar todas as propostas
de transferências econômicas para os pobres.
Priorizar o
crescimento econômico sempre foi uma característica da economia burguesa, mas
com uma diferença. Adam Smith defendeu a remoção da interferência do Estado
que, ele acreditava, impedia o crescimento econômico, embora soubesse
perfeitamente que os benefícios desse crescimento não viriam para a classe
trabalhadora. Em sua opinião, o aumento da riqueza da nação era um objetivo
importante em si; onde ele diferia de seus predecessores era em argumentar que
essa riqueza consistia não na aquisição de ouro e prata, mas na acumulação de
estoque de capital que poderia ser usado para produzir bens. David Ricardo
também era a favor da acumulação de estoque de capital e, portanto, do crescimento
da produção, embora soubesse que havia um limite para tal acumulação. (Na
verdade, Karl Marx elogiou Ricardo por defender a acumulação, embora este
último acreditasse que tal acumulação cairia em um beco sem saída quando o que
foi chamado de estado estacionário fosse alcançado). Ricardo também acreditava
que a classe trabalhadora não seria beneficiada por tal acúmulo.
A razão pela qual
tanto Smith quanto Ricardo pensaram que a classe trabalhadora não seria
beneficiada por tal acumulação é porque qualquer melhoria em sua condição
tendia a produzir um aumento em sua população. A única maneira pela qual os
trabalhadores poderiam se beneficiar da acumulação de capital, portanto, seria
se eles restringissem sua propensão à procriação. Mas essa era uma questão que
só eles podiam influenciar, embora os economistas clássicos defendessem que
eles ficariam melhores por meio da restrição do crescimento populacional. A
defesa clássica do crescimento, entretanto, independe de os trabalhadores se
beneficiarem dele.
A atual defesa do
crescimento é diferente. Ninguém hoje acredita que as condições dos
trabalhadores são miseráveis porque eles procriam demais; ninguém acredita que
suas condições não possam ser melhoradas pelo esforço do Estado, fazendo
transferências de renda a seu favor. E, no entanto, tais transferências são
evitadas por economistas burgueses neoliberais sob a alegação de que
comprometeriam o crescimento econômico. A defesa clássica do crescimento é
assumida pelos neoliberais modernos, mas sem a clássica simpatia dos
economistas pela classe trabalhadora. Assim, a animosidade de classe da
burguesia contra a classe trabalhadora agora se reflete também nas atitudes dos
economistas.
A ênfase no
crescimento excluindo as transferências econômicas para os pobres, que são
rotuladas desdenhosamente como “medidas populistas”, é duplamente ofensiva para
os pobres. Por um lado, impede uma melhoria do seu nível de vida que poderia
ter sido alcançada se as transferências tivessem ocorrido; por outro lado, a
busca pelo crescimento envolve invariavelmente uma série de projetos que
implicam a expulsão de camponeses e trabalhadores das terras que cultivam e de
pessoas em geral de seus habitats, o que os deixa ainda pior do que estavam no
início. É verdade que empregos são criados em tais projetos e também em
atividades criadas por eles; mas os deslocados dificilmente são os
beneficiários de tal geração de emprego, e mesmo o emprego que é criado muitas
vezes fica aquém do emprego que é destruído. E a reabilitação das pessoas deslocadas
que é prometida quando o projeto é realizado quase nunca é realizada. Se o
crescimento estivesse sendo efetuado sob a égide de coletivos do próprio povo,
por exemplo através de coletivos camponeses iniciando projetos industriais,
então as coisas seriam diferentes; mas não é assim que o crescimento ocorre sob
o capitalismo.
O desmascaramento
das medidas do estado de bem-estar, referindo-se a elas pejorativamente como
“populistas”, e enfatizando o crescimento do PIB exclusivamente como o objetivo
da política do Estado, são cinicamente antipovo; mas essa é a marca registrada
do neoliberalismo.
Prabhat Patnaik é
um economista indiano de orientação marxista-leninista. Entre seus livros
estão Accumulation and Stability Under Capitalism (1997), The
Value of Money (2009), e Re-envisioning Socialism (2011).
A realidade é furta-cor https://bit.ly/3Ye45TD
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