23 janeiro 2023

Uma crônica de Cícero Belmar

Viagem para dentro

Cícero Belmar*

 

Se eu tivesse ganho na Mega Sena milionária, passaria a viver do ócio criativo, produzindo e criando de acordo com a aptidão, obedecendo somente ao prazer de criar. Sonhar não custa.  Mas o choro é livre: minhas férias estão acabando e, em poucos dias, vou fazer tudo ao contrário dessas aspirações.

Tenho direito, pelo menos, ao desabafo justo de um revoltado. Um mês passa rápido demais quando a gente não tem as obrigações do trabalho formal. Férias maravilhosas. Hoje, 23 de janeiro de 2023, é dia de organizar mala e mochilas para voltar ao velho normal.

Não sei se estou com preguiça de arrumar as coisas ou se é um desejo inconsciente de travar o calendário. De consolo, só me resta a filosofia barata porque tenho uma quedinha para o dramático. Penso que quando as férias anuais acabam é como se um ciclo da vida findasse para o outro começar. A outra opção seria bem pior.

Esses últimos dias foram, para mim, iguais aos preparativos de um réveillon. Depois das alegrias de um fictício 31, sem ter acertado na Mega, a realidade se nos apresenta com a fatura do cotidiano. Nas férias, muita gente viaja para a Europa. Para terras exóticas do Oriente. Eu fiz uma viagem para o interior do Estado. Para a casa dos meus pais, dois idosos. Viagem para dentro de mim.

Agora, arrumo a bagagem e abro um parêntese pensando no poema Motivo, de Cecília Meirelles. “Não sei se fico ou passo”. O eu-dramático, em certos momentos da minha vida, faz paralelos com canções e poemas. “Sei que canto e a canção é tudo”. Arrumar bagagens é não dar conta de ter uma resposta para todas as dúvidas.

Levarei, numa das mochilas, uma garrafa de mel de uruçu. Ela é uma abelha muito pequena, em extinção, e cada vespa deposita no favo um pingo de mel por dia. Juntar um litro, portanto, é trabalho operário e artesanal. Fico pensando neste tesouro que tenho em mãos. Um litro do mel mais puro, que tem a cor da água com o aroma das florezinhas do campo.

Levarei também uma garrafa de um licor feito de cãmbuí, que é uma frutinha silvestre, da família das azeitonas, redonda e preta. O cãmbuí é típico do Sertão do Araripe, agridoce e tem pouca popa. É tão desvalorizado que ninguém perde tempo em plantá-lo. Os pés nascem, no meio das roças, por resiliência da espécie. Por isso mesmo o licor da fruta é produto raro. Uma tacinha, privilégio, para se beber agradecendo.

Nas férias, revistei uma serra onde você se sente dentro de um cartão postal, a Serra do Araripe, que já foi habitat de dinossauros; e um sítio onde nasceu, a poucos metros de distância um do outro, em pleno Sertão, uma revolucionária, um rei e um barão. O rei foi Luiz Gonzaga, cujo título foi o povão quem lhe deu, para honrar sua genialidade.

O nobre foi o Barão do Exu, homem de terras sem fim, que frequentava a corte no século 19 e recebeu o título das mãos do Imperador Pedro I. A revolucionária, Bárbara de Alencar, mulher valente, determinante na Revolução Pernambucana e na Confederação do Equador. O que tem aquele chão, que deu ao mundo, três ícones?

Bagagens prontas para voltar ao cotidiano. Não há charme algum viver sem ter tempo para nada, estar sempre atarefado, atrasado e aflito, como se o mundo do trabalho fosse o único possível. As alegrias das férias, exatamente por serem alegres e por serem férias, nunca passam. Aos aventureiros: as viagens para dentro são mais transformadoras do que as oferecidas nas agências de turismo.

*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras
O mosaico da vida que segue https://bit.ly/3Ye45TD

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