Mesa posta
Karina Buhr/revista Continente
Furava a água com peixes quando
acordou do clarão na janela. Se agarrava na barbatana fria, queria segurar com
mais força pra não ouvir o sol de manhã, mas não deu. Já ia dar onze e meia,
perdia tempo, especialidade. O mundo desabava como de costume, mas parece que
dessa vez foi um pouco pior. No balcão de alumínio descasca pétalas, espinhos,
boletos, folhas de caderno de receitas, cebola pra maquiagem do choro. Era só
um bife, um fósforo e uma faca mirando no movimento do cardume mergulhado na
água que começa a ferver.
A televisão ligada no alto, como sempre. Um batalhão de
adormecidos avança, afagado por soldados. Multidão estúpida, esculpida pelo
chefe que emporcalhou a cadeira e sumiu, agora destrói, vomita tudo, escarra e
rasga. Costumava almoçar cedo, hoje está mais lenta. Notou a falta do cheiro de
comida da vizinha, que todo dia tem, deve ter viajado ou morrido, carece se
informar pra lidar com o que for preciso. O tomate está péssimo, inchado e sem
gosto, muito veneno nele. Chafurda na preguiça medíocre, meio dia de domingo,
com aquela televisão estridente, vidros estourando, gritos estranhos e o tomate
ruim.
Precisada
de um gole de qualquer coisa que despertasse rápido, feito o que tomou semana
passada, logo ali, estava tudo tão bom que parecia mentira, feito aquela flor linda,
toda no plástico, do lado da planta viva que dá um trabalho da moléstia. Tomar
uma atitude primeiro que as outras do dia, antes mesmo de tirar o uniforme do
molho. Ainda com sono ligar uma música de fossa, o disco arranhado
profundamente, unha cravando esganiçada o reboco da parede, sulco submergindo
no refrão de toda vez, palavra de traição e melodia adocicada, buraco que cava
e não esgota.
Voltou do
comercial. Ameaças de bomba, confusão espalhada como planejado, mas que coisa,
uma mistura de quem diria com todo mundo já sabia. Cada um que puxe sua
sardinha, tente amaciar a onda impossível antes do caldo pra não se afogar por
besteira. Dizem que é pouca gente, mas parece que é quase vinte por cento de
todo mundo. Isso é muito, não é não? A rampa não quebrou, a sorte, engenharia,
arquitetura, paisagismo. Sobrou quase nada, mas o ministro disse que não é só
mármore e cadeira cara não, que eles nem pensem que isso vai ficar assim não,
porque não vai. De parabéns o ministro, já a essa hora.
Tudo certo
na casa do lado, escuta a conversa, se acalma com a prova de vida e descobre
planos do filho da amiga que arruma açúcar quando acaba e ela dá de volta ovo,
fazer rifa pra formatura e fugir. Comeu todinho o bife com peixe, sem arroz,
macarrão, nem batata, devorou com vontade, sobrou só a rodela de tomate
rejeitada na primeira mordida. Arrotou a última garfada e um gole de
refrigerante diluído demais, queria o que, fez raspa-raspa, calor desgraçado. [Ilustração: Karina Buhr]
A vida a cores e em branco e preto https://bit.ly/3Ye45TD
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