Prendam
os perfis!
O futuro
do bolsonarismo depois da quebradeira
Miguel Lago/revista
Piauí
Há quase dez anos, uma
multidão avançou sobre a Praça dos Três Poderes e subiu no teto do Congresso
Nacional. Foi no início da noite. As imagens desse acontecimento ficaram para
sempre registradas. Quando olhamos as fotos, parece que as linhas e formas de
Oscar Niemeyer estavam esperando o momento para compor com a multidão. Naquela
noite, em nenhum momento se manifestou o poder destruidor que acompanha um
volume importante de pessoas organizadas. A mensagem era: poderíamos entrar e
quebrar tudo, poderíamos ocupar, mas estamos apenas demonstrando nosso potencial.
O movimento foi um exercício de potência, não de força. A resposta, no entanto,
não tardou: gás de pimenta, bomba, bala de borracha. Os manifestantes foram
duramente reprimidos pela Polícia Militar de Brasília. Quase dez anos depois,
ocorreu uma imagem parecida: uma multidão sobe no teto do Congresso, mas, dessa
vez, invade um patrimônio da República para destruir tudo o que vê pela frente.
É
tentador comparar Junho de 2013 com o 8 de janeiro de 2023, assim como também é
irresistível traçar paralelos com o 6 de janeiro de 2021, quando militantes
trumpistas invadiram o Capitólio, em Washington, na tentativa de impedir a
diplomação de Joe Biden. Há paralelos importantes – que virão mais adiante
neste texto – mas, desde já, é fundamental registrar que o 8 de janeiro é
único, representa uma nova etapa da gramática bolsonarista e consiste num
aprofundamento da violência política na sociedade brasileira. Daí que muito se
tem falado sobre o enfraquecimento do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas os
episódios de janeiro mais parecem um indício de que o bolsonarismo venceu.
Na segunda-feira, 9 de
janeiro, o país já estava familiarizado com o saldo de um dia extraordinário de
violência política promovida por milhares de militantes de extrema direita na
Praça dos Três Poderes. Nas imagens de vídeo chocantes, eles correm pela rampa
de acesso ao Palácio do Planalto, pelos escritórios presidenciais, percorrem os
corredores do prédio, vandalizam o Supremo Tribunal Federal, cujas janelas
foram quebradas e as cadeiras arrancadas. Nas redes sociais, vídeos mostraram
incêndios dentro do prédio do Congresso. Móveis foram quebrados, jogados de um
lado para o outro, obras de arte foram danificadas, objetos e documentos foram
roubados. Furto, depredação, urina, fezes, uma barbaridade escatológica nunca
antes vista.
Classificando
aqueles que participaram dos ataques de “vândalos”, “fascistas” e “nazistas
fanáticos”, o presidente Lula ordenou uma intervenção federal na capital,
colocando o policiamento local sob o controle do governo central. De Orlando,
na Flórida, Bolsonaro respondeu aos eventos de domingo com uma curta sequência
de postagens nas redes sociais, em que defende seu governo, mas, covardemente,
se distancia da invasão dos prédios públicos. O influencer que presidiu o Brasil por
quatro anos incentivou diariamente todo tipo de violência política, mas quando
ela ocorreu, sequer teve a dignidade de defender seus seguidores. Teve ainda a
petulância de dizer: “Ao longo do meu mandato, sempre me mantive dentro das
quatro linhas da Constituição, respeitando e defendendo as leis, a democracia,
a transparência e nossa sagrada liberdade.”
Mais
do que os eventos em si, os três acontecimentos – o 8 de janeiro de 2023 à luz
das Jornadas de Junho de 2013 e do 6 de janeiro de 2021 – nutrem uma relação
particular com a imprensa tradicional e com as mídias sociais digitais.
Primeiramente, a imprensa brasileira, à imagem da norte-americana, aplicou um
glossário extremamente grave para narrar os atos atuais. Em nenhum momento,
titubeou em chamar os agressores de “golpistas” – em outros tempos, talvez
tivessem sido tratados como “manifestantes” –, dando o tom do nível de
gravidade do que aconteceu.
O
glossário mobilizado pela mídia profissional e pelos agentes políticos chegou a
tipificar o evento como “terrorista” (“ataque terrorista”, “terroristas
golpistas”, e daí por diante), muito embora tenha havido apenas dano material e
nenhuma pessoa tenha morrido. Os “bolsonaristas radicais” – que é um pleonasmo,
pois não existe bolsonarismo moderado, pois, se for moderado, bolsonarista não
é – são objeto das mesmas qualificações atribuídas àqueles que usaram a tática black bloc nas
Jornadas de Junho de 2013, nas quais também houve violência patrimonial.
Talvez
um pouco exagerado, o glossário usado pelo estamento político e midiático é
importante, pois sinaliza uma ruptura da imprensa e da classe política com a
normalização da extrema direita, o que, ao longo de anos, contribuiu para
pavimentar a ascensão resistível de Jair Bolsonaro. Considero mais apropriado
falar em “terrorismo político”, quando há assassinato (ou tentativa de), mas,
certamente, os bolsonaristas estão mais para terroristas do que para
manifestantes. Na falta de uma palavra mais precisa, melhor salientar a
condenação da violência política do que tolerá-la.
Outra
aproximação entre os três eventos é que as redes sociais desempenharam um papel
determinante. Junho de 2013 foi considerado parte de um fenômeno global. Entre
2010 e 2013, vimos a Primavera Árabe, o 15M na Espanha e o Occupy Wall Street
nos Estados Unidos, além de reverberações em Uganda, Reino Unido, Turquia,
entre tantos outros lugares. A novidade é que tais movimentos não resultaram da
convocação de agentes sociais já estabelecidos – sindicatos, ONGs ou partidos
políticos. Ao contrário. Os novos agentes sociais surgiram a partir das
associações que se estabeleceram nas ruas. O ator não precedeu o acontecimento.
Foi o acontecimento que constituiu o ator. E isso se deu graças ao uso das
redes sociais.
Esse
tópico foi objeto de muita pesquisa acadêmica, e conclui-se que a capacidade de
se comunicar de maneira multilateral provocou um enxameamento de pessoas nas
ruas. Algo totalmente novo surgia. Já não se podia mais falar em “ação
coletiva” sem passar pela “ação conectiva”, e parecia possível “organizar os
não organizados”, para usar a expressão do professor de filosofia Rodrigo
Nunes, da PUC do Rio de Janeiro. As redes sociais pareciam ter viabilizado o
sonho utópico de uma sociedade sem intermediações, um devaneio anarquista. Mas,
rapidamente, passamos da “utopia autonomista” à “distopia autoritária”.
As redes sociais são uma criação de empresas
privadas californianas, cuja obrigação é rentabilizar seu produto. Foi ingênuo
acreditar que os meios de produção de comunicação tinham sido distribuídos,
quando, na realidade, o que houve foi um enclausuramento das pessoas nos seus
perfis de rede social. Em vez de propiciar a construção da ação coletiva e o
diálogo, as plataformas promoveram a hiperindividualização e hipersegmentação.
O perfil não é fruto do encontro com o outro, mas a materialização de uma persona
alternativa que opina sobre tudo. Diante da hiperfragmentação, a conexão com o
outro se dá mediante “preferências” comuns preestabelecidas e mediante o ato de
“seguir” algum “influenciador” que gere identificação.
O
pesquisador Paolo Gerbaudo, do King’s College de Londres, estudioso da
interação entre tecnologia e política, defende a tese de que existe uma
afinidade eletiva entre redes sociais e populismo. Os algoritmos de algumas
plataformas estão desenhados de modo a privilegiar a visualização de conteúdos
que tiveram o maior número de interações possível no momento da sua primeira
postagem. Essa curadoria promovida por algoritmos favorece conteúdos
incendiários. Políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro se beneficiaram
disso para aumentar o alcance de suas postagens. Quanto mais absurdos Bolsonaro
publicava, mais reações negativas gerava e, portanto, mais pessoas eram
expostas a esse conteúdo.
A
figura da celebridade não é menos importante na função de agregar e mobilizar
dentro das redes sociais. Num espaço de perfis atomizados, as figuras dos
“influenciadores digitais” é que permitem o engajamento entre eles. Gerbaudo
afirma: “O elemento de personalização e o efeito de celebridade da mídia social
fornecem uma espécie de ponto focal em torno do qual a multidão pode se reunir
e milhões de indivíduos insatisfeitos, e privados de qualquer afiliação
organizacional comum, podem se encontrar para reconhecer seus interesses e
desejos compartilhados.” Bolsonaro, antes de se tornar uma relevante liderança
política, já figurava como um importantíssimo influenciador digital. Se tornar
um poderoso influencer foi
o primeiro passo para subir a rampa do Planalto.
O dia 8 de janeiro de 2023
foi narrado ao vivo por meio das redes sociais – mas agora as redes sociais já
são algo diferente de dez anos atrás. A exposição pública dos atos dos
agressores era mais relevante do que os atos em si. As imagens televisionadas
mostravam cenas características dos tempos de hoje, em que os invasores ora
depredavam, ora registravam a depredação. Uma mão quebrava, a outra filmava.
Narrar se sobrepunha à força do ato.
Dessa
maneira, milhares de narradores contavam para a sua audiência o que estava
sendo feito ali. Não eram pessoas ou terroristas que ali estavam: eram perfis.
Perfis de rede social, produzindo conteúdo em primeira mão para suas timelines em busca de
expandir o número de seguidores, e a interação com os atuais seguidores. Se em
Junho de 2013 o sujeito político era a “multidão”, o sujeito político de 8 de
janeiro de 2023 é o perfil.
Nunca
um evento histórico brasileiro foi registrado a partir de tantos ângulos e
tantas câmeras. Os perfis invasores propiciavam a conexão entre a invasão e
aqueles que estavam de fora, que acompanhavam os acontecimentos via mídias
sociais. Antes mesmo que a imprensa e as autoridades entendessem o que se
passava, milhões de bolsonaristas assistiam ao vivo à invasão por meio dos
celulares de milhares de agressores. É quase como se tudo estivesse sendo feito
pelos perfis apenas com o intuito de criar conteúdo para as redes sociais. A
quebradeira, a destruição da porta do armário do ministro Alexandre de Moraes,
o brasão da República jogado sobre uma cadeira, tudo era produção de imagem
para gerar engajamento nas redes.
Se
em Junho de 2013, as redes foram fundamentais para levar as pessoas às ruas, em
8 de janeiro de 2023, as pessoas foram às ruas para levar mais pessoas aos seus
perfis de rede social. Por isso, essa data entrará para a história brasileira
como o primeiro evento “instagramável” da mobilização política.
Mobilizar, ao contrário
do que muitos imaginam, é das tarefas mais desafiadoras que existem. Como
conseguir que milhares de indivíduos se juntem no mesmo momento, formulem uma
demanda comum e executem um curso de ação coordenado? Como fazer isso sem ter
qualquer poder de coerção, seja de ordem pecuniária ou disciplinar? A resposta:
com métodos e estratégias de engajamento.
Como
qualquer atividade complexa, o ativismo também tem metodologias. Entre elas,
está a “curva de engajamento”. Nela, entende-se que para manter uma pessoa
interessada é necessário sempre mantê-la engajada, como se estivesse em um
constante estado de alerta. A ideia de “curva” implica que passamos de uma ação
com baixo engajamento para ações com cada vez mais engajamento. Por exemplo, o
usuário começa dando like em
uma fala de Bolsonaro, daqui a pouco compartilha uma notícia veiculada por ele,
em seguida vai numa manifestação na orla de Copacabana pedir o impeachment de
algum ministro do STF. A “curva” foi do mais simples (o like) ao mais custoso
(tirar uma tarde de Sol livre, abrir mão da praia e se enfiar com outras
pessoas de verde e amarelo numa marcha).
Portanto,
para mobilizar é preciso criar novas oportunidades de engajamento
constantemente. Se não houver esse moto-contínuo, o usuário perde o interesse e
se desengaja. Não à toa Bolsonaro projetou a imagem de “presidente frágil”, que
não consegue agir porque está cercado de inimigos. Com isso, sempre ofereceu
aos seus seguidores oportunidades de engajamento. Nunca faltava motivo para os
bolsonaristas se unirem e se engajarem na defesa de seu líder. Ao não aceitar a
derrota eleitoral, ao denunciá-la como fraude, Bolsonaro instiga um novo curso
de ação para os seus mobilizados: bloqueio de estradas, acampamentos em frente
aos quartéis e, claro, uma ação mais performática e catártica de violência como
o 8 de janeiro.
Nisso,
o 6 de janeiro nos Estados Unidos foi absolutamente igual: gerou um grande
evento que, apesar da derrota, demonstrou a extraordinária força e resiliência
do movimento – o qual, por conseguinte, tornou-se protagonista da cena pública
e pautou o debate político no país, mesmo sem Trump estar mais com as rédeas do
poder nas mãos. Eis aí o propósito central desse tipo de ação: manter o
movimento engajado e forte. É uma etapa vital, tanto que nem o trumpismo, nem o
bolsonarismo morreram depois da derrota de seus líderes. Tais atos são peças de
uma engrenagem: cada vez mais radicais, cada vez mais violentos.
Assim,
o evento norte-americano e o evento brasileiro não me parecem ter como objetivo
uma tomada do poder, e sim um fortalecimento da máquina de mobilização
revolucionária montada pela extrema direita. Os perfis que invadiram e
depredaram o patrimônio da República não estavam promovendo um golpe e sim mais
uma etapa do processo revolucionário. Além disso, quem promove golpe é quem não
tem capacidade de mobilizar gente: classicamente, o empresariado e as Forças
Armadas. Bolsonaro, como ficou demonstrado no domingo, tem essa capacidade – e
nisso consiste a sugestão de que talvez o bolsonarismo tenha vencido com a
quebradeira no domingo.
Mas
se não leva a um golpe – a uma tomada clássica do poder – para que tudo isso?
Para que um movimento mobilizado? O bolsonarismo, assim como o trumpismo, tem
como único desfecho possível a guerra. Como a curva de engajamento está cada
vez mais intensa e levando a ações cada vez mais radicais, a única maneira de
sustentar esses movimentos será, em algum momento, com a violência contra
pessoas (e não mais contra objetos). Mesmo que Trump e Bolsonaro não considerem
estratégico o ódio que deflagraram e espalharam em suas sociedades, bem como a
dinâmica de engajamento própria de seus movimentos, não tem como dar em outro
desfecho. Será a guerra, ou eles perderão o poder sobre os movimentos que
criaram.
Há uma grande diferença entre o 6 de janeiro
norte-americano e o 8 de janeiro brasileiro: a reação das forças de segurança.
Nos Estados Unidos, houve enfrentamento. No Brasil, assistimos atônitos por
quase três horas a uma depredação sem qualquer intervenção da ordem. Por isso,
o que é chocante não é o ato em si. Sabíamos que cedo ou tarde isso
aconteceria, dado que o bolsonarismo tem como único desfecho a violência. O
que chamou a atenção foi a demora e a lenta reação das “forças da ordem”.
Brasília
é uma cidade cujo urbanismo convida ao controle de aglomerações do tipo da que
ocorreu no domingo. Ao contrário do que acontece em outras cidades brasileiras,
é fácil e rápido conter uma multidão na capital. É surpreendente que as
agências de inteligência do Estado – o Gabinete de Segurança Institucional, o
setor de inteligência da Polícia Militar, a Agência Brasileira de Inteligência
– não tenham mapeado o risco que se avizinhava. A incompetência é tão clamorosa
que, se acontecesse no setor privado, resultaria em demissão massiva. Ou, como
começa a ficar nítido nas investigações, mapearam exatamente o que se tramava e
– por motivos ideológicos – nada fizeram.
A
quebra de hierarquia foi clara. Até que se prove o contrário, a Polícia Militar
não obedeceu ao governador e não se sabe quanto o Exército ainda obedece ao
presidente da República. A decisão de evitar a decretação de uma GLO (Garantia
da Lei e da Ordem, na qual o presidente autoriza o uso das Forças Armadas) para
furtar-se a um golpe traduz bem o nível de insubordinação dos militares ao
poder civil. Na prática, quando precisar contar com a proteção da ação militar,
a Presidência da República poderá convocar o Exército ou terá que temer uma
rebelião? A pergunta central é: o poder militar ainda está subordinado ao poder
civil? Do contrário, não há estado de direito possível. O ministro da Justiça,
Flávio Dino, e o presidente da República parecem ter medo de se fazer essa
pergunta, e optaram por evitar o conflito.
Pouco
se sabe sobre como pensam e agem os militares. Estão todos eles do lado de
Bolsonaro? Se fosse o caso, já teriam dado o golpe, dizem alguns. Seria apenas
uma parcela? Não temos a resposta precisa. Sabemos, sim, que alguns militares
impediram o trabalho de repressão no dia 8 de janeiro de 2023. Isso significa
que agentes públicos agiram como perfis e não como militares. A dinâmica de
redes sociais é tão perversa que destrói até mesmo a hierarquia militar. Alguns
militares hoje são perfis antes de serem militares.
Sabe-se
que o Comando-Geral do Exército não cumpriu com suas atribuições entre 1º de
novembro e 9 de janeiro. O Setor Militar Urbano de Brasília é uma área sensível
para a segurança nacional. Ali, está o Quartel-General do Exército. Ali,
residem os generais. Em nenhuma circunstância seria tolerado que sequer uma
pessoa em situação de rua passasse uma noite por lá. Como explicar centenas
aglomerados por dois meses, trazendo um risco contínuo à segurança física de
generais e do Q.G. do Exército? Portanto, o Exército descumpriu ativamente o
seu compromisso mínimo de proteger uma área de segurança nacional. Da mesma
maneira, o Batalhão da Guarda Presidencial descumpriu sua função de proteger o
Palácio do Planalto.
A
situação de confusão sobre a subordinação do poder militar ao poder civil,
associada ao caos em que as cidades brasileiras se encontram, sem que o
Exército precise fazer nada, cria um quadro muito confortável para a
corporação. Para que fazer um golpe, se já não temos certeza se vivemos em um
estado de direito? Golpe dá muito trabalho, requer, na sequência, que se
governe, que se entregue políticas públicas.
O golpe é um dispositivo
tradicional do Estado clássico – centralizado, com uma burocracia
profissionalizada, que detém a soberania sobre um território e uma população.
Para que haja golpe, é necessário que exista UM soberano. A partir do momento
em que a burocracia se comporta de maneira fragmentada e insubordinada, que
vários atores sociais podem desrespeitar regras de segurança, e que uma parcela
da população já não acredita e não obedece às instituições, em que as figuras de
autoridade já quase não existem, como é possível dar um golpe? A extrema
direita destruiu o Estado como o entendemos. Bolsonaro conseguiu fragmentar o
poder, permitindo a existência não de UM, mas de vários soberanos – seguindo um
pouco a lógica do tráfico de drogas e da milícia.
Nesse
contexto, os militares podem fazer o que lhes der na telha. Nessas
circunstâncias, não é necessário um golpe para que a força se sobreponha à lei.
É de se perguntar se o novo tipo de intervenção militar, mais atual para o século
XXI, não seria o da insubordinação, do “deixa acontecer”, de permitir o caos.
Nisso consiste a vitória de Bolsonaro: o total esfacelamento das autoridades no
Brasil que deixa livre caminho para que a força possa se exercer.
O
desafio do novo governo é, portanto, imenso, pois mesmo sem um golpe, os
militares estão dissolvendo o estado de direito no país. O problema da
insubordinação imediata poderá talvez ser resolvido com a nomeação do general
Tomás Paiva, o novo comandante do Exército, cuja biografia indica um perfil
institucionalista e republicano. A pergunta que se coloca é: será que os
soldados-perfis obedecerão aos seus generais? Depois de quatro anos de
bolsonarismo, será que a hierarquia militar sobrevive intacta? Se o general
Tomás Paiva conseguir garantir circunstancialmente que o Exército vai obedecer
à Presidência da República quando for solicitado, já terá feito um trabalho
extraordinário.
Muito
se fala da necessidade de democratização das Forças Armadas, mas essa tarefa é
de partida quase impossível. Todo o esforço no sentido de qualificar a formação
militar, enquadrar as posições públicas, o comportamento nas redes sociais,
tudo isso será bem-vindo. Mas nenhum empenho será suficiente para alterar uma
das nossas mais antigas instituições. Na ciência política, existe vasta
literatura sobre a dificuldade de se reformar instituições de modo radical,
pois seu passado condiciona o presente e as possibilidades de futuro. O
Exército Brasileiro tem uma tradição antidemocrática que vem desde 1889, quando
derrubaram uma monarquia constitucional para instaurar uma ditadura militar e,
subsequentemente, uma república oligárquica. Desde então, nunca saíram da vida
política do país, ora participando das eleições, ora dando golpes. À exceção do
único período de democracia de massas anterior à Constituição de 1988, a
chamada República Populista (1945-64), tivemos mais golpes do que eleições
neste país.
Por
isso, a questão não é se conseguimos convencer os militares de que a democracia
é uma dádiva e sim como faremos com que eles temam o poder civil, eleito
democraticamente. Mas, para isso, é preciso parar de temê-los. A questão
militar não deve se circunscrever ao Ministério da Defesa, cuja boa relação com
as Forças Armadas é bem-vinda. Deve ser transferida para o eixo central do
governo – Fazenda e Planejamento. Cabe ao Estado brasileiro tratar os militares
como o que são: funcionários públicos concursados iguais aos outros, sem
qualquer privilégio. É sabido que o Exército se pauta pelo corporativismo,
assegurando sempre o incremento do orçamento para a defesa (que já é maior que
o da educação e quase equivalente ao da saúde) e arrancando benesses para seus
membros. A resposta de todos os governos democráticos foi sempre dar mais
dinheiro, poder e espaço para os militares, com a honrosa exceção na gestão de
Fernando Henrique Cardoso. É preciso interromper esse ciclo.
O
Ministério da Fazenda precisa cortar gastos para abrir espaço fiscal aos
programas sociais e demais políticas públicas. Que priorize os cortes no
Ministério da Defesa. Existe espaço para cortar uma série de benefícios dos
militares. Não há qualquer razão para a compra de mais material bélico. Não há
qualquer necessidade de expansão da tropa: já temos quase 350 mil militares
contra apenas cerca de 400 mil policiais militares. Fazer um ajuste fiscal
radical na pasta da Defesa é a única maneira de mudar o tom da conversa.
Podemos deixar de lado a conversa de que o Exército vai se rebelar contra o
presidente, contra o Supremo, contra o resultado das eleições. Ou contra o
corte de privilégios. Os militares, claro, vão chiar. Mas não darão o golpe. E,
se derem, ficará o recado de que uma corporação sequestrou o Estado para
enriquecer seus membros. Em outras palavras, colocar a questão militar na
esfera da Fazenda e do Planejamento significa jogar no ataque para aplacar a
deterioração institucional. O Exército pode ter armas. A democracia tem duas
coisas mais poderosas: as leis e o orçamento público.
A
conversa sobre golpe interessa aos militares para que possam seguir pautando o
novo governo. Reforçando o que já foi dito: para subordinar o poder militar
novamente ao poder civil, é preciso parar de temer um golpe. Os Estados Unidos
historicamente cumpriram a etapa de enquadrar os militares. Por lá, os fardados
estão perfeitamente subordinados ao poder civil. São militares, não são perfis.
Se conseguir fazer algo semelhante, neutralizando a contaminação dos militares
na vida nacional, o Brasil então terá um problema a menos. Assim, poderá
concentrar a atenção no mesmo problema que aflige o gigante do Norte: como
enfrentar a máquina revolucionária da extrema direita e seus líderes inflamados
– só que, pelo menos, sem o apoio das baionetas.
Lula faz muita política? Ótimo! Está
cumprindo o seu dever https://bit.ly/3Iy1pdy