Somos
todos iguais
Cícero
Belmar*
Oh, meu santo Galo da Madrugada! Meu
divino Homem da Meia Noite! Andei dizendo umas bobagens sobre o Carnaval. Falei
que parecia uma idiotice sair por aí dando cambalhotas no ar só porque as
orquestras rasgam frevos nas ruas. Afirmei que era risível subir e descer
aquelas ladeiras de Olinda, traçando uns passos, pagando de multicultural,
atrás de um boneco gigante.
Sim, eu falei mesmo. Mas eu estou
aqui para fazer uma revisão. Em primeiro lugar, olha o tempo do verbo:
pretérito perfeito. Numa hora tipo bossa nova eu questionei o que há de bom e
engraçado em sair por aí fantasiado de pierrô, diabinho ou de anjo, beber
cerveja quente de litrão, não ter onde se sentar para descansar depois do
oitavo bloco, debaixo de um sol escaldante?
E disse mais que era um exercício
cansativo de alegria obrigatória ficar no meio de uma multidão que não tem fim,
enfrentando empurra-empurra, e otras cositas más,
com um sorriso na cara, e quando chegar a hora de voltar para casa, andar
léguas para pegar um transporte.
Mas, quando eu pensei e disse toda
essa heresia é porque estava fazendo um comparativo com aquilo que seria o
contrário disso. Assegurei que bom mesmo era ficar tomando a cervejinha na mesa
de um bar, sendo atendido por um garçom, que lhe serve bebida gelada, e você
ouve música ambiente, tendo um banheiro à sua disposição.
Quem me refrescou a memória foi o
escritor e crítico de literatura Ney Anderson, que também é meu amigo e me
mandou um whatsapp um dia desses para lembrar a minha eventual
antipernambucanidade. Baco e Dionísio que me perdoem. Mas eu juro, meus santos
Capiba, Levino e Antônio Maria, que eu falei isso num momento ruim, sem levar
em conta a função existencial da galhofa e da folia.
Sabe essas frases que a criatura diz
sem nenhuma reflexão filosófica? Querido amigo Ney, o fim dessas poucas
palavras é para desdizer o que eu disse antes. Mudei de ideia. Fui
antropofágico demais. Você, como bom escritor, sabe muito bem o quanto é importante
essa capacidade de uma personagem reajustar o pensamento. De desdizer as
palavras, que não voltam à boca. Sem essas reviravoltas, o que seriam das
tramas?
Na minha cabeça de pernambucano da
gema, acho agora que o carnaval da minha terra é uma celebração linda e
maravilhosa, que combina cores e ritmos; irreverência e lirismo; alegria e
história; cultura e espontaneidade; sagrado e profano. E vamos deixar de
conversa porque agora só restam dois dias dessa pândega com permissão legal.
Acho que eu tinha um certo ranço com
carnaval porque fui repórter de jornal e só fazia trabalhar nesse período. Era
muito trabalho enquanto o resto do todo mundo estava atrás das orquestras.
Naquele jornal, inclusive, havia um Manual de Redação que proibia usar a
expressão “irreverência” para adjetivar os blocos de frevo que tomam contam das
ruas do Recife e de Olinda.
As matérias jornalísticas de carnaval
não poderiam citar esse clichê. Mas o que seria das tradições se não fossem os
clichês? Além dessa, as expressões cores e ritmos também estavam proibidas por
serem lugares-comuns. Mas hoje eu me pergunto como dizer que uma festa é
popular sem ver que são feitas de cores e ritmos?
Com certeza o que me fez mudar de
percepção foi a pandemia do novo coronavírus. Nos anos de 2021 e 2022 a folia
foi suspensa pelas autoridades sanitárias, para evitar as aglomerações. Juro
que me deu saudade até de uma mãozada que levei de um boneco gigante, quando
fazia evoluções.
No sábado do ano passado, me peguei
lamentando que aquele seria o dia do Galo da Madrugada que, para o bem e para o
mal, merece mesmo esse título de maior bloco de carnaval do mundo. Senti
saudade sim. Hoje, para mim, Carnaval é o contrário de pandemia. Enquanto
houver alegria na rua, este mundo ainda tem jeito.
Então, viva a diversidade e a
popularidade, o riso frouxo e magia, o pluralismo e a fantasia, o dionisíaco e
o antropológico, a contemporaneidade e a tradição do Carnaval de Pernambuco.
Evoé nações africanas, maracatus de orquestras, tribos de índios, caboclinhos,
cavalos marinhos, bois, papangus, caretas, troças, ursos, clubes de alegorias e
de máscaras, escolas de samba e bonecos gigantes.
É o frevo,
meu bem https://bit.ly/3Ye45TD
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