13 fevereiro 2023

Golpe frustrado

Quatro anos em quatro horas
A apoteose do bolsonarismo e um conto de fadas
Fernando de Barros e Silva/revista Piauí

 

Todos conhecemos o slogan da era JK – “50 anos em 5”. Foi com esse bordão que Juscelino Kubitschek se elegeu presidente em 1955, foi com ele também que anunciou seu Plano de Metas, do qual a síntese era justamente a construção de Brasília. Inaugurada em 1960, a capital encarnava já em sua concepção as aspirações do país à modernidade, ao mesmo tempo que apontava para a interiorização do desenvolvimento e a integração do nosso imenso território. Mais do que uma cidade projetada, e para além do marco que representou na arquitetura do século XX, Brasília prometia ser a materialização de uma sociedade nacional finalmente integrada.

Como sabemos, não deu muito certo. O Brasil jamais superou seus abismos e não vingou como país decente. A própria capital frustrou suas promessas, sitiada desde muito cedo por cidades-satélites que foram se multiplicando e passaram a reproduzir a tragédia urbana e social disponível por toda parte. A criação de Brasília, de qualquer forma, pertence a um capítulo da história brasileira cheio de esperanças e novidades, que os “50 anos em 5” de JK souberam capturar numa fórmula feliz.

De maneira um pouco bruta e por contraste, poderíamos resumir o que aconteceu no último dia 8 de janeiro através do slogan “Quatro anos em quatro horas”. O ataque ao coração de Brasília não foi apenas uma tentativa de golpe de Estado, mas, antes disso, um ato de destruição que precisa ser pensado em seus próprios termos, como um fim em si mesmo. O que vimos naquele domingo foi a expressão apoteótica do bolsonarismo, a materialização da síntese do Plano de Demolição levado a cabo diuturnamente pelo governo que foi a duras penas derrotado nas urnas, mas que segue nas ruas como um zumbi.

É bastante significativo que a depredação tenha ocorrido simultaneamente no Congresso Nacional, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal. Além de ter como alvo os três poderes – entendidos todos como usurpadores do verdadeiro poder que emana do povo (ou emena, como li numa faixa patriótica nas ruas de São Paulo) –, o ataque indiscriminado aos edifícios seguiu uma lógica muito peculiar, que inverte a relação entre causa e efeito mais comum nesse tipo de situação. Em geral, quando se trata de um golpe de Estado, a violência é um instrumento para a tomada do poder. No 8 de janeiro bolsonarista deu-­se o contrário: tomou-se o poder para exercitar a violência. Não seria essa, aliás, uma boa definição do governo Bolsonaro? Tudo o que passamos nos últimos anos pode, afinal, se resumir a isso: o direito de ser bárbaro. E – como ele gosta de dizer – ponto final.

Ao se apossar das instalações do poder, a turba em nenhum momento sinalizou que aquilo seria uma invasão recreativa. Estavam ali para barbarizar. Como não havia ninguém dentro dos prédios para ser eventualmente linchado, trataram de chutar, bater, rasgar, furar, estilhaçar, arremessar, quebrar, sujar, mijar, cagar, pilhar, incendiar, inutilizar tudo que encontraram pela frente. E registraram ao mesmo tempo a transformação de objetos em escombros para disseminar nas redes as imagens da devastação em tempo real.

A transmissão da depredação por Instagram ou WhatsApp tinha certamente uma finalidade política, podendo desencadear ondas de fúria país afora, o que até se esboçou timidamente em alguns estados, sem maiores consequências. A motivação do que ocorreu, no entanto, parece extrapolar o cálculo estratégico. Quando se olha mais atentamente para a ação dos criminosos, dois tipos de comportamento se destacam. Parte deles age com automatismo e até com certa displicência, executando tarefas como se fossem funcionários de uma empresa de demolição. Outra parte atua de forma visivelmente amadora, alternando acessos de fúria e momentos de desorientação, como quem não sabe o que fazer ou para onde ir. São comuns expressões de deleite e gritos de euforia com o celular nas mãos.

O ar triunfante e o exibicionismo desses patriotas diante dos destroços lembram a cena de Daniel Silveira e Rodrigo Amorim – então aspirantes à Câmara dos Deputados e ao Legislativo fluminense – empunhando a placa de rua com o nome de Marielle Franco partido ao meio. A energia mobilizada nos dois casos é a mesma, brutal e covarde, de gozo associado à aniquilação do outro.

Ao tratar do episódio ocorrido em 2018, em texto publicado na piauí_166, quase dois anos depois, em julho de 2020, João Moreira Salles escreveu o seguinte:

Não existe bolsonarista sem pulsão de morte. Rodrigo Amorim, o então candidato a deputado estadual que partiu a placa de Marielle Franco no alto de um palanque, é bolsonarista por causa da placa, não por causa de suas teses sobre a organização do Estado. Ou por outra: a violência contra a placa é propriamente a sua ideia, exibida em público como programa político.

A violência – contra a placa ou contra os prédios da Praça dos Três Poderes – é propriamente a ideia do bolsonarismo. E ponto final.

Intitulado A morte e a morte, o artigo foi escrito meses depois do início da pandemia, quando já estava claro como Bolsonaro lidaria com o problema. Moreira Salles identifica dois padrões de comportamento do então presidente diante da morte ou do sofrimento alheio: o júbilo ou a indiferença. Esta última, fartamente documentada, podia ser sintetizada no “E daí?” com que Bolsonaro reagiu ao ser apresentado a números alarmantes de mortes pela Covid. Quanto ao júbilo, basta dizer que nada o excita tanto como uma pistola – sua tara por armas é tão escancarada, tão pornográfica que sentimos receio de baratear demais a noção de inconsciente ao invocar o inevitável “Freud explica”. Não é necessário muito treino psicanalítico para identificar a fusão entre júbilo e indiferença – um amálgama de “bota pra foder” com “foda-se tudo” – na dinâmica do 8 de janeiro.

O que me faz voltar ao texto neste momento, porém, é sobretudo a passagem em que Moreira Salles vê na atividade do garimpo uma chave para decifrar o modo de ser bolsonarista. Eu cito:

O cartão-postal da visão de mundo bolsonarista é o garimpo, no qual todas as dimensões da existência estão aviltadas: saúde, meio ambiente, relações de trabalho, norma jurídica. Não por acaso, nas raras vezes em que esboçou uma perspectiva de futuro para a Amazônia, Bolsonaro lhe atribuiu um papel central. Ao Globo, declarou que pretendia criar “pequenas Serras Peladas” Brasil afora.

A terra devastada que o garimpo deixa para trás é a materialização da estética bolsonarista e do que seus adeptos apreciam: destruição, ruína, bruteza.

O 8 de janeiro transformou a Praça dos Três Poderes numa espécie de Serra Pelada. Os patriotas seriam, na verdade, garimpeiros da política – destruindo tudo e produzindo ruínas em busca de alguma salvação.

A rigor, a lógica do garimpo já havia se alastrado muito antes pelo país. Não me refiro ao extrativismo criminoso que invadiu as reservas indígenas com o patrocínio do governo Bolsonaro e tem relação direta com a tragédia humanitária que se abateu sobre o povo Yanomami.

Penso aqui nos acampamentos desses outros “garimpeiros de bem” que proliferaram por toda parte para clamar por intervenção militar desde a derrota de Bolsonaro nas urnas.

Contemporâneas de bloqueios de estradas, saques e incêndios, as aglomerações na entrada dos quartéis sobreviveram às formas de protesto abertamente violentas e foram ficando lá, como se fossem inofensivas. As afinidades desses grupos com seitas de fanáticos imersos em seus delírios particulares certamente contribuíram para que fossem tratados quase como uma curiosidade antropológica, e não como um problema político, uma ameaça à ordem democrática.

Assim, como se fizessem parte da paisagem, ou como se fossem presépios e devessem ser de alguma forma admirados, os acampamentos receberam abundantes recursos privados ao longo de dois meses e se fortaleceram à luz do dia como chocadeiras do golpe. Nada disso seria possível sem a omissão das polícias estaduais. Mas, sobretudo, nada disso prosperaria sem a cumplicidade criminosa do Exército. Tudo que hoje parece óbvio foi subestimado.

Há pelo menos dois vídeos na internet que registram a interação da mulher do general Eduardo Villas Bôas com golpistas que acamparam em frente ao Q.G. do Exército em Brasília. Villas Bôas é o autor do famoso tuíte disparado em abril de 2018, na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula no STF, que poderia livrá-lo da prisão. Pressionando o Judiciário, o então comandante do Exército dizia o seguinte:

“Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões constitucionais.”

No dia seguinte, os ministros rejeitaram o habeas corpus do petista por 6 votos a 5.

O primeiro registro de Maria Aparecida Villas Bôas entre os golpistas de Brasília é do dia 20 de novembro do ano passado. Identificada por um dos acampados como uma “celebridade” e a seguir “esposa de celebridade”, ela sorri ao ser filmada de camiseta amarela e se despede no vídeo com a conhecida saudação militar – “Selva!”.

No segundo vídeo, Maria Aparecida passa por duas vezes na frente do acampamento, sentada no banco do passageiro de uma van que trafega lentamente. Enquanto o motorista buzina sem cessar, a mulher do general acena aos manifestantes pela janela e, a seguir, aponta com o indicador para a parte de trás do veículo, adaptado para cadeirantes, sugerindo que ali está seu marido. Não é possível identificar Villas Bôas pela imagem, mas seu nome é gritado pelos acampados. A cena de confraternização se dá em 28 de dezembro, a poucos dias da posse de Lula.

Entre a primeira e a segunda visita de Maria Aparecida, o acampamento teve ligação com dois episódios bastante graves. O primeiro deles foi a depredação de Brasília na noite de 12 de dezembro, horas depois da diplomação de Lula pela Justiça Eleitoral. Um grupo de vândalos tentou invadir a sede da Polícia Federal, espalhou botijões de gás pelas ruas, arrancou postes, quebrou lojas, incendiou carros e ônibus, e por muito pouco não conseguiu atirar um desses veículos de cima de um viaduto – o ônibus ficou pendurado. As investigações comprovaram que os responsáveis pela noite de terror estavam acampados no recanto dos patriotas frequentado pela sra. Villas Bôas.

No dia 24 de dezembro, véspera de Natal, uma bomba foi encontrada em um caminhão-tanque nas proximidades do Aeroporto de Brasília. Ao ser preso e depor, em 19 de janeiro, um dos criminosos admitiu ter recebido a bomba de outro comparsa, também preso, dentro do acampamento em frente ao Q.G. do Exército. O terceiro terrorista envolvido na tentativa de atentado trabalhou com Damares Alves no antigo Ministério da Mulher e estava foragido até o fechamento desta edição.

Não se tem notícia de que a sra. Villas Bôas conhecesse esses rapazes todos. Nem, tampouco, que soubesse da surpresa de Natal que os patriotas reservavam ao povo brasileiro na forma de BUM! Mas Maria Aparecida certamente conhece a história do Riocentro, quando setores de extrema direita do Exército planejavam atentados para melar a redemocratização do país. É possível até que tenha se lembrado daqueles tempos difíceis ao ouvir que andam por aí detonando torres de transmissão de energia para instalar o caos no país. Até a sra. Villas Bôas sabe que ninguém estava acampado em frente à sede do Exército em Brasília para jogar dominó.

Asujeira se precipitou depois de 8 de janeiro. Quando, naquela noite, o general Júlio Cesar de Arruda, no comando do Exército Brasileiro, impediu a prisão imediata da turba que tinha voltado para o aconchego das barracas depois de ir até ali brincar de fim do mundo, ele já não sabia se estava protegendo conhecidos da sra. Villas Bôas, fanáticos olavistas, vândalos de ocasião ou terroristas profissionais. Muitos deles, antes camuflados, vestiam mais de uma fantasia. Não havia mais como sustentar que eram “todos patriotas”.

Ao trocar o comando do Exército, Lula de certa forma responde politicamente, com anos de atraso, ao tuíte de Villas Bôas. Não se trata de revanchismo, não se trata de caça às bruxas. Isso se chama estado de direito e democracia. Funciona um pouco como aquela máxima de Damares: militares na caserna, civis nas ruas. Ainda estamos muito longe desse conto de fadas.

O que mais se espera, acontece https://bit.ly/3Ye45TD

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