06 fevereiro 2023

Radicais ensandecidos

Radicalização da direita passa por influenciadores considerados moderados, diz pesquisadora
Michele Prado, que pesquisa extremismo online, diz que atores digitais que não são considerados ligados a essa mobilização estão entre principais introdutores de teorias conspiratórias
Uirá Machado/Folha de S. Paulo

 

Fazia mais de dez anos que Michele Prado havia mergulhado no ambiente online da direita quando decidiu mudar de vida. Não foi fácil. Ela precisava largar o emprego na área de decoração e romper com pessoas que, àquela altura, respondiam pela quase totalidade de suas amizades.

"Eu tinha duas opções: ficar calada e manter a amizade com as pessoas, fingindo que nada estava acontecendo, ou ser honesta intelectualmente e ficar com as consequências", diz Prado, 44.

Ela escolheu a segunda opção. Mudou-se para o interior da Bahia e começou a pesquisar. Queria entender o que estava por trás das mensagens que pipocavam num grupo de WhatsApp do qual ela começou a participar após a eleição de Jair Bolsonaro (PL), em 2018.

"Eu via gente dizendo que Bolsonaro deveria dar um golpe, que teria adesão popular", conta.

"Vi que não era uma direita democrata, moderada. Eram pessoas com rejeição à democracia liberal, com muitas coisas de desrespeito à dignidade humana."

Durante seus estudos, entendeu que muitas das teorias conspiratórias que circulavam no WhatsApp eram teorias antissemitas disfarçadas com outras palavras. Ficou chocada, porque vinham de pessoas que ela considerava intelectuais e suas amigas.

Chamado "Internet livre", o grupo agregava diversos influenciadores da direita. "Só os grandões. Tinha deputado, jornalista, gente de organizações de direita etc.", afirma Prado, que em 2021 publicou o livro "Tempestade Ideológica" (Lux) e se prepara para lançar "Red Pill – Radicalização e Extremismo".

"Esses influenciadores da direita, principalmente esses que o pessoal acha moderados, são os principais introdutores desse tipo de teoria conspiratória", diz a pesquisadora. "E isso continua radicalizando as pessoas."

No ano passado, após o ex-deputado federal Roberto Jefferson (PTB) atacar policiais, a sra. disse que não se tratava de episódio isolado. Eventos como a tentativa de ato terrorista no aeroporto de Brasília e a intentona golpista de 8 de janeiro estavam no seu radar? A gente está vendo no Brasil um processo de radicalização em massa que ocorre essencialmente online, especialmente quando a gente está se referindo às várias correntes da extrema direita. O próprio bolsonarismo é um movimento que surgiu online.

Dentro desse ecossistema da direita, os conceitos, as teorias conspiratórias, as pautas e os métodos são copiados da alt-right, dos Estados Unidos [movimento de extrema direita], e da far-right internacional como um todo [junta direita radical e extrema direita]. Então era óbvio que, se estávamos passando por um processo de mais ou menos 15 anos de radicalização online, e se lá nos Estados Unidos teve a invasão do Capitólio, aqui não seria diferente.

Lá no meu livro, "Tempestade Ideológica", eu falei que a gente teria algo similar aqui, porque são as mesmas ideias que estão radicalizando e mobilizando essas pessoas. E essas pessoas estão sendo capturadas dentro de um sistema de crenças que rejeita a democracia liberal de forma extrema, inclusive com adoção da violência.

Aqui no Brasil, vimos exemplos de pessoas em acampamentos golpistas acreditando em teorias conspiratórias sem nenhum lastro na realidade. Por que que isso acontece? A nova direita do Brasil é toda baseada em teorias conspiratórias de extrema direita. Todo o universo imaginário dessas pessoas já está contaminado com a mentalidade conspiratória.

Recentemente, Renan Santos, que é o coordenador do MBL [Movimento Brasil Livre], compartilhou uma teoria conspiratória de cunho antissemita, racista, que tem alto potencial para violência, que é a teoria da grande substituição [segundo a qual as elites estão substituindo a população europeia branca por povos não europeus]. Só que ele compartilhou com o nome de "transplante populacional".

Esses influenciadores da direita, principalmente esses que o pessoal acha moderados, são os principais introdutores desse tipo de teoria conspiratória. E as pessoas que começam a ser capturadas por isso ficam presas nessas câmaras de eco e formam uma identidade coletiva.

m que sentido? Se você olhar as imagens que foram disponibilizadas da invasão [em Brasília], você observa que a maioria das pessoas está gravando, fazendo selfie. Isso é um recurso de identidade para as pessoas que estão ali. Elas põem na câmara de eco, onde elas se acham pertencentes a algo muito maior. Elas saem do anonimato. Elas têm uma identidade coletiva construída à base de teorias conspiratórias que desumanizam outros grupos e que têm total rejeição à democracia liberal.

Não é só extrema direita que está capturada pela mentalidade conspiratória. É a direita em si. Porque são os influenciadores, talvez por desinformação de muita gente, que continuam até agora a disseminar teorias conspiratórias, mas com outras palavras, com eufemismos, como no caso do "transplante populacional". E isso continua radicalizando as pessoas.

No 8 de janeiro, as pessoas de fato achavam que iriam derrubar o governo? Não era um grupo homogêneo. Ali tinha muitos oportunistas, pessoas que viram a confusão e aproveitaram para tirar algum proveito. Mas a maior parte realmente acreditava que aquele ato de violência iria provocar a interrupção da ordem democrática.

Aqueles manifestantes que estavam acampados em frente a quartéis potencializaram o extremismo violento. Quando você está dentro da radicalização online, você não tem todos os meios para cometer o ato. No acampamento, os manifestantes tiveram uma radicalização híbrida, online e offline. Isso aumenta o investimento emocional no extremismo violento.

Como se fosse realmente uma incubadora para a ação violenta. E quando aquilo foi permitido pelas Forças Armadas e pelas demais instituições, as pessoas se sentiram mais empoderadas para considerar a solução da violência como legítima.

Logo após os ataques, a sra. afirmou que a ação não se restringiria a Brasília. No entanto, não houve mais nada tão expressivo. Por quê? Eu acho que é momentâneo, porque a mobilização continua. As pessoas ainda não estão desengajadas, não estão desligadas. O volume de pessoas presas dá uma atenuada no ímpeto de quem eventualmente poderia querer continuar com esse tipo de ataque. Mas pode esperar que vai continuar. Não vai parar.

A atuação do Bolsonaro no fim do mandato foi criticada por bolsonaristas. Isso vai fazer com que o bolsonarismo fique mais fraco? Houve uma decepção com Bolsonaro. Para muitas dessas pessoas, ele não foi extremista o suficiente, não estava representando o que eles acreditam ser uma direita. Então elas vão buscar outro ídolo, outro avatar, outro candidato para suprir essa necessidade. A extrema direita no Brasil não se resume ao Bolsonaro ou ao bolsonarismo. É maior. Eles vão se reagrupar, como já está acontecendo.

Qual é a sua avaliação sobre a reação institucional ao extremismo, sobretudo a do Supremo Tribunal FederalSó chegamos a essa situação porque as outras instituições foram muito omissas. Foram muito improdutivas, inconsequentes e irresponsáveis. Porque houve muitos alertas a respeito do processo de radicalização.

Cabe aos parlamentares exigir das agências de inteligência relatórios de monitoramento do extremismo violento no Brasil, por exemplo. Pedir relatórios a respeito da infiltração de extremistas em forças militares. Nada disso foi feito nos últimos anos. Então sobrou para uma corte [o STF] tomar conta desse problema sozinho, o que a torna um alvo.

O que o Brasil deveria fazer para combater o crescimento da violência extremista? A gente tem que pensar em formas como os programas de PCVE [prevenção e combate ao extremismo violento, na sigla em inglês], que existem em outros países. O Brasil está uns 15 anos atrasado nisso. Mas uma coisa importante de dizer é que não abarca só a extrema direita. Precisa ter disposição de abordar todos os extremismos, da direita à esquerda. Não pode pensar com a perspectiva político-eleitoral.

Antes de olhar para a extrema direita como um objeto de pesquisa, quanto tempo a sra. frequentou esses grupos como uma participante regular, por assim dizer? Era um ecossistema, um ambiente. Não era um grupo específico. Eu sempre fui de direita, minha vida inteira. Hoje não sou mais. Muita coisa aconteceu e eu acho que estou bem ao centro. Mas em 2004, por exemplo, eu já estava no Orkut olhando esses influenciadores.

Eu não tinha ainda a visão "direita X esquerda". Eu era só uma pessoa que não votava no PT. Ou melhor, poderia votar no PT se eu achasse que as propostas eram boas, mas eu preferia o PSDB. Passei a primeira década dos anos 2000 online, conversando com pessoas que também não votavam no PT. Não eram pessoas de extrema direita, pelo menos não que eu soubesse na época. Só depois que eu fui recordar algumas coisas.

Depois, ali por volta de 2010, o boom da nova direita, Olavo de Carvalho, os novos livros, tudo isso eu acompanhei como espectadora. Em 2018, votei no Bolsonaro no segundo turno, porque eu era antipetista radical.

E no primeiro turno? Acabei votando no João Amoêdo [então no Partido Novo]. Bolsonarista mesmo eu nunca fui. Logo depois, uma moça que conheci no Facebook, totalmente radicalizada na extrema direita, me colocou num grupo de WhatsApp chamado "Internet livre". Era um grupo só com influenciadores, só com os grandões. Tinha deputado, jornalista, gente de organizações de direita etc.

E eu fiquei observando. Eu via gente dizendo que Bolsonaro deveria dar um golpe, que teria adesão popular. Fiquei observando aqueles comentários internos e vi que tinha alguma coisa muito sinistra. Percebi que o grupo estava radicalizando as pessoas.

Por isso a sra. decidiu romper? Eu discuti com essas pessoas, fiz barraco. Então decidi estudar, pesquisar, porque eu já via muito sinais acontecendo e eu tentava entender o que era aquilo. Quando eu cheguei nesses influenciadores dentro desse grupo, ficou tudo muito claro para mim. E eu vi que não era uma direita democrata, moderada, nada disso.

Eram pessoas com rejeição à democracia liberal, com muitas coisas de desrespeito à dignidade humana. Eu chutei o pau na barraca, foram discussões homéricas, que sempre acabavam em misoginia.

A gente conta nos dedos quem a gente pode falar que é direita moderada no Brasil, democrata. Em quem você pensar de influenciadores digitais de direita que você acha moderados, você pode colocar todos dentro de um balaio da far-right, porque todos eles trazem conceitos da direita radical e da extrema direita transnacional.

Durante suas pesquisas, qual foi sua maior surpresa? A primeira coisa que me deixou chocada foi ver como eles protegem os erros uns dos outros. Por exemplo, quando alguém aponta algo que está errado, nenhum deles analisa o argumento. Se um deles falar que a pessoa está errada, todos passam a atacar aquela pessoa.

Outra coisa chocante foi entender que as teorias disseminadas por eles eram teorias antissemitas. Porque eram pessoas que eu considerava minhas amigas. Eu tentava alertar uma pessoa no grupo, mas ela dizia: "Não, você está viajando". Aí eu chamava outro influenciador, e ele dizia que eu estava maluca, que eu não entendia bem o que estava acontecendo.

Então eu tinha duas opções: ou ficar calada e manter a amizade com as pessoas, fingindo que nada estava acontecendo, ou ser honesta intelectualmente e ficar com as consequências. Eu optei pela segunda opção, que foi mais difícil, porém mais necessária.

Michele Prado é pesquisadora da extrema direita, é autora dos livros "Tempestade Ideológica" (Lux) e "Red Pill – Radicalização e Extremismo" (lançamento em breve)

Águas passadas às vezes movem moinho https://bit.ly/3Ye45TD

Nenhum comentário:

Postar um comentário