16 fevereiro 2023

Teatro

BERTOLT BRECHT

Os 125 anos de nascimento do (re)criador do teatro épico
Zeca Viana/revista Continente

 

Entre narrativas fragmentadas, perseguições políticas, ataques à cultura, fake news e a trágica romaria dos terroristas “patriotas” que vandalizaram os prédios dos três poderes numa tentativa de golpe de estado, vez ou outra sou levado pela imaginação entre tantos delírios neoliberais e me pergunto: o que Brecht pensaria sobre tudo isso? O que diriam seus poemas sobre o atual momento histórico? Qual seria o papel da montagem e as novas funções estéticas, técnicas e sociais que poderiam revelar o papel da arte contra a barbárie na era digital? Qual seria a sua relação com as redes sociais? Enfim, o que pensaria Bertolt Brecht hoje?

Revisitar o pensamento de Brecht é, antes de tudo, um exercício imanente à sua própria obra; novos cenários, novos personagens, novos figurinos, novas ontologias, novos objetos, músicas, gestos, técnicas, emoções, ações... E, principalmente: novas funções sociais para as artes motivando novas visões de mundo; disruptivas, friccionais, dialéticas… Brecht é um marco para a construção de uma forma emancipatória, crítica e pedagógica do fazer artístico e – como uma pedra filosofal jogada no profundo lago da História – ainda reverbera ondas de inspiração nos dias de hoje. 

Eugen Bertholt Friedrich Brecht nasceu na cidade alemã de Augsburg, localizada ao extremo sul do estado alemão da Baviera, no dia 10 de fevereiro de 1898. Neste 2023, comemoramos os 125 anos do seu nascimento. Brecht está cada vez mais presente no teatro contemporâneo e nas artes; a contemporaneidade do seu pensamento atualiza-se pela versatilidade e sofisticação de uma percepção aguda das engrenagens sociais que compõem a cultura e, consequentemente, a arte e a política que marcaram o século XX. Se – parafraseando o filósofo e poeta espanhol George Santayana – é preciso conhecer o passado para não repeti-lo; Brecht também fala de nós – e para nós – ao vivenciarmos o atual flerte entre o fascismo, chauvinismo, culto ao militarismo e as fake news com repercussões sem precedentes na democracia contemporânea. 

Assim, como em sua própria produção – que é marcada por vários pontos de partida, multifacetadas aberturas, mas nunca fechamentos –, podemos pensar sobre o impacto de Brecht no nosso momento histórico, político e cultural, através das formas críticas de sua montagem teatral épica e do “estranhamento” como método. Na transversalidade da sua trajetória é possível construir novos olhares sobre o nosso papel social – como cidadãos, artistas, educadores, trabalhadores – na (re)construção cultural constante com foco na solidariedade e justiça social. Precisamos renascer das cinzas todos os dias. E esse renascimento deve, necessariamente, ser intermediado por uma questão fundamental: quais as funções que a arte pode adquirir contra a barbárie? Aqui, vamos passear como um flâneur pelas encruzilhadas, rizomas, praças e palcos da vida e do pensamento de Brecht; pensaremos com ele as relações entre vida, arte, política e barbárie. E, fundamentalmente, desvelaremos um dos conceitos-chave do teatro épico brechtiano: a refuncionalização técnica dos meios de produção para uma arte, antes de tudo, emancipatória.

O JOVEM BRECHT
Sua biografia – assim como sua obra – revela uma forma bastante particular de encarar o papel da arte. Sua trajetória é marcada por idiossincrasias multifacetadas; percursos abertos, itinerários singulares, trilhas que revelam diversas influências, divergências e confluências estéticas, políticas e intelectuais. Filho de uma família aristocrata alemã, teve apenas um irmão; Walter Brecht, que se tornaria professor na Institut für Papierfabrikation na Technische Universität Darmstadt. Brecht diria, anos mais tarde, que ele mesmo era um “traidor da sua classe de origem”. Seu pai, Berthold Friedrich Brecht, era um homem religioso, conservador e exigente com a formação do jovem Brecht. Sua mãe, Sophie Wilhelmine Friederike Brezing Brecht, era católica protestante, vertente cristã em que o filho foi batizado. Vivia num ambiente altamente protegido, controlado e com caminhos bem definidos para a construção do seu futuro; algo que mudaria drasticamente no decorrer da sua vida, marcada por inúmeras mudanças, rupturas, exílios e reencontros. 

Apesar da aparente calmaria e previsibilidade características de uma vida pequeno-burguesa alemã na virada para o século XX, o pequeno Bertolt era uma criança nervosa e bastante inquieta. Ainda pequeno foi diagnosticado com uma condição cardíaca que o impedia de realizar atividades de alto impacto físico, como esportes e corridas. Inclinou-se para atividades intelectuais, como jogos de tabuleiro – a exemplo do xadrez, paixão que está registrada em um momento icônico ao lado do futuro amigo Walter Benjamin – além de atividades de leitura e escrita, produzindo, desta forma, o seu primeiro texto ainda em 1914, aos 15 anos de idade. Achava a escola pública entediante, sendo transferido para um instituto de ensino protestante, onde se impressionou com a leitura da Bíblia, da qual diria anos mais tarde: “este é um livro incomparavelmente lindo, forte, mas, cheio de fúria”. Apesar de ateu, as imagens, personagens, símbolos e cenas narradas na Bíblia tiveram um grande impacto intelectual sobre o jovem Brecht, resultando em um dos seus primeiros textos, intitulado A Bíblia. 

Outra influência notável em sua trajetória escolar é a Feira Anual de Artes de Augsburg, onde teve contato com peças de teatro ao ar livre com dançarinos, mágicos, palhaços, música etc. Tudo o que alguém da sua idade gostava. Ainda nos anos colegiais revela o desejo de ser um poeta reconhecido; então funda o jornal escolar colaborativo Die Ente, tornando-se, cada vez mais, o centro incontestável do seu ciclo de amizades. Este, claramente, é o primeiro indicativo do seu futuro senso de trabalho coletivo; Brecht buscava colaboradores que, depois, se tornariam, também, amigos íntimos ou amantes. Elisabeth Hauptmann (escritora), Helene Weigel (atriz), Kurt Weill (músico), Hanns Eisler (músico), Erich Engel (diretor de cinema e teatro), Carl Zuckmayer (escritor), Caspar Neher (cenógrafo) são alguns dos muitos nomes que colaboraram com Brecht. Assim foi durante toda a sua vida; de Hamlet a Zaratustra, do teatro popular das cervejarias alemãs à música dos cabarés, seus caminhos intelectuais se construíram por várias trilhas estéticas, coletivas, amorosas e políticas.

SOLDADO MORTO
Em 1919, Brecht vivencia a primeira de muitas experiências traumáticas; e que revelaria as engrenagens sociais da barbárie produzida por potências econômicas que marcariam a primeira metade do século XX: é convocado pelo exército alemão para atuar como enfermeiro psiquiátrico em um hospital de campanha durante a Primeira Guerra Mundial (1914–1918). Apesar de não servir diretamente no campo de batalha, viu de perto o resultado da máquina ideológica trucidando indivíduos; tanto fisicamente, quanto mentalmente. Corpos mutilados, violência normalizada, ideologias totalitárias e estupidez... Guardou retratos, personagens, cenas e cicatrizes da barbárie na memória. Estabelecido na cidade de Munique, escreve o poema Lenda do soldado morto, uma sátira ao patriotismo exacerbado e a todos os falsos moralismos que estão na base do fascismo. O texto fala sobre um soldado morto que é desenterrado para lutar novamente na guerra e morrer, novamente, como “herói”.

Denunciar a deformação ideológica, a perversidade econômica e política da sociedade burguesa se tornaram um dos seus principais temas. No teatro recebe influências diversas de nomes como Friederich Hebbel (poeta e dramaturgo), Erwin Piscator (diretor teatral), Mei Lan-Fang (ator), Benjamin Franklin Wedekind (ator e dramaturgo), Constantin Stanislavski (ator e diretor teatral), Vsevolod Emilevitch Meyerhold (diretor teatral), Viktor Chklovski (formalista russo, conceituou o termo estranhamento), entre outros. Nesse período, Brecht vive as agitadas movimentações sociais da República de Weimer, aproximando-se, assim, de ideais de esquerda. Revela-se um leitor de obras que expõem a luta de classes e a exploração da classe proletária como Das Kapital (O capital), de Karl Marx. Mesmo assim – pela sua leitura idiossincrática e pelo teor particular de algumas de suas peças –, torna-se, ele mesmo, suspeito para alguns grupos comunistas.

De fato, as contradições imanentes do sistema produtivo capitalista se abriam aos olhos de Brecht em seu caráter coercitivo, violento e predatório: afinal, aliado ao chauvinismo reacionário, estes foram os combustíveis substanciais que inflamaram – e ainda inflamam – a chama do fascismo que incinerou a Alemanha e vem se engendrando como uma serpente na era digital.

TEATRO ÉPICO
Após o fim da Primeira Guerra Mundial, aos 26 anos, Brecht já era pai de três filhos – fruto de três relacionamentos diferentes –, mas ainda não tinha se estabelecido em nenhuma profissão regular. Passou por constantes problemas financeiros, porém, como diziam os amigos mais próximos, parecia não ter nenhum medo do futuro. Brecht continua trabalhando com teatro e, no fim dos anos 1920, alcança um enorme sucesso de público com a Ópera dos três vinténs. Com o feito, compra uma casa em Uttinh, no Lago Ammer, onde passa a viver, trabalhar e ganhar notoriedade no cenário artístico alemão.

Em Berlim, Brecht reconhece o amadurecimento do que Theodor Adorno chamaria de “indústria cultural” – a obra artística tomada como mercadoria em suas novas configurações de fruição – e se aproveita das leis do mercado para a própria subsistência. Trabalha com todos os gêneros; escreve espetáculos, canções, publica em revistas de moda, compõe textos para discos e poemas publicitários. Curiosamente, descobre nos centros esportivos, como o boxe, o modelo para um novo teatro: regras claras ao estilo dos jogos coletivos e um público treinado que reage ativamente ao espetáculo; seja xingando, gritando, aplaudindo, dando opiniões, torcendo... Enfim: um público que se posiciona ativamente e acaba fazendo parte do espetáculo.

Porém, no dia 1º de maio de 1929 – o famigerado “maio de sangue” –, com a quebra da bolsa de Nova York, inicia-se o período da Grande Depressão e, quase que do dia para a noite, seis milhões de pessoas ficam desempregadas na Alemanha. Já nas semanas e meses seguintes as ruas são tomadas por desempregados, famílias inteiras sem abrigo, revirando lixo em busca de comida. Os impactos e contradições mais visíveis do sistema de produção capitalista se tornam embates centrais em suas peças, que narram a miséria, a fome, a vulnerabilidade social e a sobrevivência do proletariado frente às crises inerentes ao capitalismo. A transformação social – e não simplesmente a interpretação da sociedade – se torna um objetivo de vida para Brecht. Em 1929, escrevia O futuro do teatro está na filosofia e afirmaria ainda anos depois: “as mudanças que introduzi no teatro dependem da minha vontade filosófica. Essa filosofia é resumida por Marx na célebre XI Tese sobre Feuerbach: os filósofos se contentaram em interpretar o mundo, é preciso transformá-lo”.

Seguindo essa perspectiva, o teatro épico – ou teatro narrativo – é (re)criado por Brecht através de uma leitura marxista da realidade social; ele não buscava um público passivo que “acreditasse” no espetáculo como uma forma de ilusão, hipnose ou anestesia. Ao contrário: era preciso transformar os espectadores em agentes críticos da sociedade e, para isso, propõe novas funções para técnicas teatrais na tentativa de superar uma forma dramática que já não dava conta das questões e temas da sua época. Em suas palavras, o teatro épico deveria ser um “experimento sociológico”.

Segundo Louis Althusser, no texto Sobre Brecht e Marx (1968), Brecht não quis suprimir o teatro, “o que ele traz de novo, é uma nova prática do teatro”. Assim, a rigor, Brecht não é o criador do teatro épico, mas o seu (re)criador; ele estabelece em sua prática elementos narrativos que já estão presentes em manifestações artísticas de diversas culturas ao redor do mundo. Por exemplo, o teatro japonês ( e kabuki), o teatro russo de Vsevolod Meyerhold, o teatro elisabetano, o teatro de Piscator (com quem trabalhou pessoalmente), entre outros. Porém, podemos dizer que Brecht cria – de fato – o teatro épico brechtiano, marcando os anos 1920 com um novo olhar através de novas funções técnicas sensíveis aos temas sociais. 

NAZISMO, EXÍLIO E HOLLYWOOD
Na década seguinte, no início dos anos 1930, surgem os primeiros motins capitaneados pelos nazistas – para os quais Brecht é um inimigo declarado – e, em 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler é nomeado chanceler da Alemanha por Paul von Hindenburg, tornando-se perigosa a permanência de Brecht no país. Após a noite marcada pelo fatídico incêndio no Reichstag, Brecht decide não mais voltar para casa. Iniciava-se o seu período de exílio. Em sua canção Lied vom SA-Mann (Canção do homem da SA), Brecht revela sua intuição mais aguda sobre os destinos da Alemanha: “Dormi de fome, com o estômago roncando. Pegando no sono ouvi gritarem: ‘Acorda Alemanha’. E vi muitos marcharem gritando ‘Vamos ao Terceiro Reich!’ Eu não tinha nada a perder e fui com eles, sem me importar para onde”. 

Como diria anos mais tarde, através do personagem Galileu Galilei, na peça A vida de Galileu (1938): “infeliz do povo que precisa de heróis”. Hitler era a representação desse “herói da pátria”, o Führer, o ungido que tinha como “missão divina” reerguer a Alemanha do caos econômico e marchar para um destino glorioso. O fascismo é caracterizado por esse líder supremo que precisa ser idolatrado como uma espécie de “messias”. Assim, Brecht foge da Alemanha em 28 de fevereiro de 1933. O exílio seria longo, passando por vários países, contrariando sua expectativa inicial; viaja pela Áustria, Suíça, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Inglaterra, Rússia e finalmente chega aos Estados Unidos da América, onde se estabelece durante seis anos. Na Califórnia trabalhou em mais de 50 roteiros, entre os anos de 1941 e 1947. 

Nesse novo ambiente era tido como uma pessoa irritada, impetuosa, obscura, pessimista e autoritária. Provavelmente, consequências das diversas experiências traumatizantes durante o exílio. Não fez muitos amigos norte-americanos. Nessa época, segundo o filósofo Theodor Adorno: “Brecht passava duas horas por dia sujando as próprias unhas, tentando fazer com que adquirissem uma aparência proletária”. Brecht retrucava se referindo aos intelectuais da Escola de Frankfurt como: “mandarins, elitistas culturais e intelectuais prostituídos”. Brecht era o retrato de um anticapitalista, propagador do anti-ilusionismo em Hollywood; justamente em Los Angeles, a fábrica de sonhos do cinema, acusada por ele de ser um “amortecimento social”. “Todo dia, para ganhar meu pão, vou para o mercado onde se vendem mentiras”, escrevia Brecht em 1941.

Observado cada vez mais pelos seus pares como um inimigo comunista dentro dos EUA, é convocado pelo FBI para depor em 19 de setembro de 1947 ao Comitê de Atividades Antiamericanas formado para combater a “subversão” no cinema e no teatro. É interrogado por John McDowell (político), Robert E. Stripling (investigador), entre outros. Novamente, com medo de perseguições políticas e temendo pela própria vida, viaja para Zurique, na Suíça, onde escreve uma de suas obras fundamentais: Um pequeno organon para o teatro (1948), retornando para a então Alemanha Oriental. Em janeiro de 1949 funda, ao lado da sua esposa, a atriz Helene Weigel, a companhia de teatro Berliner Ensemble. Brecht morre vítima de um ataque cardíaco em 14 de agosto de 1956. Seguindo o seu desejo, não houve discursos no funeral. O corpo de Brecht está enterrado em Berlim, no cemitério Dorotheenstädtischer Friedhof. 

Sua obra é vasta; instaura múltiplos pontos de partidas e novas funções técnicas, sociais e críticas para o teatro. Como quem segue pegadas de um gigante, abrem-se os pavimentos, camadas e trilhas através do seu inventário dialético; são diversas as áreas exploradas por Brecht: romance, ensaio, poesia, prosa, política, mas também ética, filosofia, música, cinema etc. Em 44 anos de atividade intelectual escreveu aproximadamente 2.300 poemas, 48 peças de teatro, 50 fragmentos dramatúrgicos, três romances, 230 contos, roteiros e argumentos de filmes, cerca de 800 páginas de diários, anotações autobiográficas, uma vasta correspondência e cerca de 1.200 de artigos sobre teatro, música, rádio e filosofia. Entre essa vasta produção, podemos destacar as peças: Tambores da noite (1922), Baal (1922), Vida de Eduardo II da Inglaterra (1923), Na selva da cidade (1924), O homem é um homem (1927), Ópera dos três vinténs (1928), Terror e miséria do Terceiro Reich (1935), Os fuzis da Senhora Carrar (1937), A vida de Galileu (1937), Mãe Coragem e seus filhos (1941), entre muitas outras.

A partir dessa multiplicidade, qual síntese possível podemos fazer do teatro épico brechtiano? Ou melhor, como compreender a refuncionalização técnica que caracteriza o seu teatro como – em suas próprias palavras – um teatro “não aristotélico”?

ARISTÓTELES VERSUS BRECHT
O surgimento da tragédia teatral está vinculado aos festejos helênicos de Dionísio, deus do vinho. Em grego arcaico τραγῳδία (tragédia), composto de τράγος, «bode» e ᾠδή, “ode”, «canto», significa literalmente uma “ode ao bode”. Os sátiros – figuras míticas representadas como a mistura entre homem e bode – eram os acompanhantes no coro do cortejo dionisíaco. O teatro grego, na antiguidade clássica – assim como já era analisado por Aristóteles por volta do ano 335 a.C. –, guarda seu aspecto ritualístico e metafísico: a encenação dos mitos e a crença em mundos suprassensíveis onde deuses controlam o destino do herói trágico. Assim, a experiência do teatro grego é catártica, hipnótica, e se apoia em uma base milenar de cânones como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes.

Aristóteles escreve na obra Poética: “A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões”. O herói trágico não transforma sua realidade social; ele cumpre um destino inexorável, gerando um sentimento de identificação – o público “esquece” que está diante de uma peça de teatro – e criando o efeito de catarse na plateia.

Por outro lado, o “herói” brechtiano tem características opostas: é cheio de contradições, sujeito a uma série de deslizes, escolhas, caminhos, fraquezas e portador dos mais variados humores e temores. Por isso mesmo, seu destino não está traçado previamente; ele é um agente ativo em um processo dialético com a sua própria realidade social. O personagem é um sujeito ativo da própria História; modifica a si mesmo e o seu contexto social. Assim, Brecht desenvolve uma série de técnicas onde procura “despertar” o espectador para uma atitude reflexiva sobre o que está sendo representado no palco; o público deve ter a noção clara de estar assistindo a uma peça.

Nesse sentido, o teatro brechtiano é uma denúncia das engrenagens sociais reveladas através das aparências e interesses políticos diversos: nada é natural, nada é absoluto, nada é trivial. Assim, a experiência do mundo é – fundamentalmente – possível através da cultura e em diversas perspectivas. Para isso se utiliza de cenários, narrativas, placas, projeções, figurinos, interrupções e o chamado “estranhamento”, ou Efeito V.

REFUNCIONALIZAÇÃO TÉCNICA
As suas “peças didáticas” – ou pedagógicas – trazem essa dimensão da ação humana como uma relação: nada é em absoluto. Não existe o “sim” e o “não” absoluto. Os deuses não decidem o destino dos personagens. Esse “teatro dialético” propõe a diversidade do pensamento através de um “público-ator”; um teatro reflexivo, político-pedagógico, com foco no engajamento e ação. Assim também é com os atores em outras montagens de Brecht: não “encarnam” a personagem; guardam distância, são porosos, antagônicos, críticos, não vestem integralmente sua personalidade.

Esse posicionamento cria o efeito de “estranhamento”. Conhecido como “Efeito V” (do alemão Verfremdungseffekt); é o efeito da desilusão, do afastamento, é o “despertar” do público através do que Walter Benjamin chamaria de “efeito de choque”. Assim, Brecht – através de novas técnicas de montagem –, cria novas funções (críticas, sociais, disruptivas) para o teatro; é um chamado à reflexão política.

Benjamin, como um grande parceiro de Brecht, aponta o amigo como o precursor de um conceito bastante interessante e desenvolvido por ele no ensaio O autor como produtor, fruto de uma conferência proferida em Paris no Instituto para Estudo do Fascismo, em 27 de abril de 1934; trata-se da refuncionalização técnica. O termo tenta qualificar as transformações dos meios de produção do teatro com foco no “despertar” do público com possibilidades de replicação para qualquer área de criação: fotografia, cinema, música etc.

Ou seja, os autores deveriam criar novas técnicas de produção com um caráter pedagógico que transformasse os espectadores em autores. Algo que seria resgatado anos depois como lema do movimento punk “DIY”, “do-it-yourself” ou “faça-você-mesmo”. Assim, segundo Benjamin, “Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho de produção, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista”.

Nesse sentido, a grande contribuição de Brecht para as artes está nessa fusão entre forma e conteúdo, com foco na autonomia do autor e na crítica da sua própria realidade social. O modo de fazer – já é, ele mesmo – uma parte fundamental do conteúdo. Essa é uma revolução, inclusive, no que diz respeito a uma ontologia das artes: a escolha do local, do público, das ferramentas, da montagem e – finalmente – o bater do prego que possibilita a exposição de uma obra faz parte da sua própria fruição. Essa nova função ou refuncionalização é um meio de democratizar o acesso à produção: torne-se um diretor, torne-se um músico, torne-se um escritor, não espere por ninguém, modifique o seu mundo com o que tiver em mãos. É um caráter inspirador para novos artistas; como já apontava Nietzsche em sua antropologia imanente da vida como arte: “torna-te quem tu és”. E, de fato, a vida de Brecht foi uma grande obra de arte; pedagógica e política, um chamado constante à ação contra a barbárie; afinal, como profetiza uma de suas mais célebres frases: “a cadela do fascismo está sempre no cio”. [Ilustração: Filipa Aca]

ZECA VIANA, doutorando e mestre em Sociologia (UFPE), bacharel e licenciado em Filosofia (UFPE). Professor, pesquisador, músico, produtor e apresentador do programa Recife Lo-Fi, na Frei Caneca 101.5 FM.

FILIPE ACAdesigner e ilustrador.

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