06 março 2023

Juros altos para quem?

Por que o Brasil tem os juros mais altos do mundo?

Dados confirmaram que, no Brasil, uma coalizão financeira usa seu poder político e econômico para elevar juros e garantir altíssimas receitas em dois importantes mercados, o obrigacionista, no qual se negociam títulos públicos, e o de crédito
Bruno Mäder Lins/Le Monde Diplomatique



Em carta enviada a Lula em novembro de 2022, cinco grandes economistas comentaram sobre o principal conflito político e econômico que o país vive atualmente: “No Brasil, a verdadeira luta de classes não é entre capital e trabalho, mas entre capital financeiro, de um lado, e os trabalhadores e o capital produtivo, do outro. Esse é o conflito de classe que Vossa Excelência [Lula] deverá arbitrar a partir do dia 01 de janeiro de 2023.”[1]
Compreender esse conflito é essencial, e é papel do mundo científico elucidar todos sobre como ele se desdobra em temas geralmente complexos do mundo econômico, como a política monetária. A notícia boa é que, recentemente, a heterodoxia econômica brasileira parece ter alcançado uma interpretação fidedigna, que finalmente desvenda os principais mecanismos rentistas operados pelo mercado financeiro nacional.
Mais especificamente, dados confirmaram que, no Brasil, uma coalizão financeira usa seu poder político e econômico para elevar juros e garantir altíssimas receitas em dois importantes mercados, o obrigacionista, no qual se negociam títulos públicos, e o de crédito. Por meio da criação de canais-rentistas, a coalizão controla os mercados e expropria a renda de empresários e trabalhadores para si.

A coalizão de classe financeiro-rentista

A interpretação foi proposta pelo economista Bresser-Pereira em 2018, quem cunhou o termo “coalizão de classe financeiro-rentista” para abarcar as estranhas jabuticabas que só acontecem no Brasil. A primeira pergunta a ser respondida era: como explicar a altíssima taxa Selic? Para dar noção de como destoamos da realidade internacional, a taxa Selic não é apenas a mais alta do mundo, na média, mas frequentemente é disparadamente a mais alta. Em agosto de 2022, por exemplo, a Selic estava, em termos reais, mais de duas vezes acima da taxa de juros praticada pelo segundo colocado, o México, de acordo com o ranking que inclui os principais países desenvolvidos e em desenvolvimento. Já não bastasse a altíssima taxa Selic fazer do Brasil uma exceção mundial no mercado obrigacionista, o país também é líder mundial de juros no mercado de crédito.
A verdade é que os altíssimos juros brasileiros, e os exorbitantes lucros bancários decorrente deles, não provêm de mercados competitivos. Quem investiga crítica e empiricamente o que acontece no sistema financeiro br asileiro logo percebe que corrupções institucionais e preços monopolistas são a regra: no mercado obrigacionista, a coalizão corrompeu o Estado para manter a taxa Selic desproporcionalmente alta; já no mercado de crédito, cobra caro usando seu poder monopolista. Importante apontar aqui, portanto, a hipocrisia entre prática e discurso das instituições financeiras brasileiras: defendem “menos Estado na economia e responsabilidade fiscal”, porém, crescem a dívida pública em prol de receitas rentistas; afirmam ser a favor da “competição de mercado”, mas beneficiam-se de precificações e estruturas monopolistas.
Ao colocar o Brasil na primeira posição dos juros reais mundiais, o mercado financeiro criou o maior esquema de transferência de renda da história do país. De acordo com estudo do economista Miguel Bruno, entre 1995 e 2005, os fluxos de juros recebidos anualmente pelo sistema bancário-financeiro foi de cerca de 29,4% do PIB. Desse valor, 22,2% foi a parcela retirada pelos detentores de capital, tais como famílias e empresas não financeiras, enquanto 7,2% correspondem à parcela efetivamente retida pelo sistema bancário-financeiro.
 

Como a coalizão apropri a tamanho montante da renda nacional?

São ao todo seis canais-rentistas que, juntos, institucionalizaram no Brasil um bolsa-rentismo. Dos seis canais-rentistas, destacam-se quatro operados de maneira mais direta pela coalizão: três que operam no mercado obrigacionista, e um n o mercado de crédito. Importante acrescentar que os canais são jabuticabas nacionais, ou seja, uma particularidade brasileira, que transformaram o país num atípico caso de financeirização usurária.
O primeiro canal opera influenciando a emissão de títulos pelo Tesouro Nacional, garantindo que as emissões sejam feitas segundo o objetivo de proteger o setor financeiro de riscos econômicos. Mais especificamente, no Brasil, a imp ressão dos três principais títulos (indexados à Selic, indexados ao IPCA e prefixados) protege o sistema financeiro dos diversos contextos macroeconômicos: em momento de crise inflacionária, aumenta a emissão de títulos indexados ao IPCA; em momentos de instabilidade econômica, aumenta os indexados à Selic; e apenas em momentos de forte estabilidade econômica emite-se mais títulos prefixados.
O segundo canal oportuniza a influência do sistema financeiro na taxa Selic, buscando mantê-la elevada. Estudos confirmam que o relatório Focus, o qual apura as previsões do mercado financeiro sobre diversos indicadores econôm icos, é um bom preditor da taxa de juros decidida pelo Banco Central do Brasil (BCB). Ou seja, por meio do relatório Focus, instituições financeiras estão influenciando a decisão do BCB, desvirtuando-o de seu papel democrático.
O terceiro canal é a indexação financeira. Diferentemente de outros países, a maior parte dos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional são indexados ao invés de prefixados, o que, por sua vez, obstrui a condu&cc edil;ão da política monetária nacional, deixando-a disfuncional. Esse é um problema reconhecido, inclusive, pela ortodoxia econômica. Faltou, porém, que o debate econômico escancarasse que o agente responsável pela obstrução da transmissão da política monetária foi a coalizão financeiro-rentista, que tinha por objetivo crescer retornos, independentemente se à custa do bom funcionamento da política monetária. Em sentido histórico-institucional, grande parte da dívida pública atrelada à taxa de juros de curtíssimo prazo é uma herança do período de alta inflação, que graças à pressão de nossa elite, continua salvaguardando agentes superavitários.
O quarto canal opera no mercado de crédito e sustenta as receitas das instituições bancárias quando a taxa Selic cai, ou seja, quando os três primeiros canais se tornam incapazes de manter altos os retornos relacionados aos títulos da dívida pública no mercado obrigacionista. Mais especificamente, estudos confirmam que, no Brasil, a receita provinda do spread de crédito cresce compensando a queda da Selic e das receitas relacionadas aos Títulos de Valores Mobiliários (TVM), corroborando a interpretação de que bancos estão usando seu poder monopolista no mercado de crédito para compensar as perdas no mercado obrigacionista em momentos de Selic baixa.
O período entre 2016 e 2020 é paradigmático nesse sentido: a taxa Selic alcançou seu menor valor histórico (-2,5%, em termos reais, no ano de 2020) e, diferentemente do esperado, os menores custos de captação não foram repassados pelas instituições bancárias brasileiras. Pelo contrário, dados confirmam que a receita de spread de crédito cresceu drasticamente e segundo uma lógica rentista de “compensação de receitas”. Em outras palavras, bancos simplesmente usaram o quarto canal para manter os lucros elevados, direcionando o ônus da crise econômica nos consumidores de crédito.
 

Lições do < /span>framework para a formulações de políticas públicas: o que os canais-rentistas nos ensinam?

Primeiro, que a batalha de Lula em prol de uma taxa Selic mais baixa é extremamente importante e legítima: são interesses rentistas que explicam os altos juros praticados no Brasil. Como visto, por meio de quatro canais, a coalizã o financeiro-rentista criou a maior política de transferência de renda do Brasil. Um verdadeiro bolsa-rentismo, que transfere a renda de empresários e trabalhadores para a parcela rentista da sociedade, que nada produziu.
Segundo, que a autonomia do BCB deve ser pensada em dois termos: o BCB precisa ser autônomo em relação ao governo e em relação ao mercado financeiro. No caso brasileiro, a captura regulatória foi feita pelo últ imo, o mercado financeiro, como corretamente aponta o economista André Roncaglia em artigo publicado no dia 9 de fevereiro de 2023 na Folha de SP, intitulado “A abusiva autonomia do banco central”.[2]
Terceiro, que apenas reduzir a taxa Selic não resolve o problema: a existência do quarto canal, que aumenta a receita do spread  de crédito para compensar a queda da taxa Selic, demonstra que é preciso fazer uma intervenção dupla, nos mercados obrigacionista e de crédito, simultaneamente. É preciso reduzir a Selic e, ao mesmo tempo, usar os bancos públicos para trazer os juros praticados no mercado de crédito brasileiro a patamares semelhantes aos de outros países em desenvolvimento.
Quarto, que o dilema é estrutural: a formação histórica de uma hegemonia financeira reforça a necessidade de repensar as instituições monetárias a partir de uma lente democrática. Impedir retroce ssos requer a criação de um órgão regulador dos juros brasileiros. Um órgão que, em linhas gerais:
i-garanta a dupla independência do BCB, impedindo que a taxa Selic fique estruturalmente fora da realidade internacional, comparando-a e mantendo-a próxima à de outros países que apresentam realidade macroeconômica e risco-pa ís semelhantes aos do Brasil;
ii-se responsabilize por criar limites tarifários no mercado de crédito. Como faz, por exemplo, a Financial Conduct Authority& nbsp;(FCA) na Inglaterra, ao não permitir que diversos tipos de linhas de crédito ultrapassem uma cobrança total acima de 100% do valor inicialmente emprestado, impedindo que dívidas aumentem de maneira descontrolada.
iii-tenha o direito legal de fazer intervenção via bancos públicos, ampliando e corrigindo quaisquer linhas de crédito que continuem apresentando precificações monopolistas.< /span>
Bruno Mäder Lins é cientista social formado na USP, mestre em Política Econômica pela Universidade de Genebra, e doutorando em economia pela UFRJ.
[1] https://jlcoreiro.wordpress.com/2022/11/18/carta-aberta-ao-presidente-lula/
[2] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/andre-roncaglia/2023/02/a-abusiva-autonomia-do-banco-central.shtml
Cobrança de impostos desigual e injusta https://bit.ly/3YZIHkt

Nenhum comentário:

Postar um comentário