05 março 2023

Poesia & luta

No show de Chico, o reencontro com o país que já foi

Momento mais intenso foi quando Chico e Mônica interpretaram “Maninha”, a música que melhor antecipou o Brasil de Bolsonaro
Luís Nassif/Jornal GGN

 

Foi o maior show de Chico Buarque que assisti, com a participação majestosa de Mônica Salmaso. Foi um reencontro amoroso com o Brasil, através da seleção de composições de várias fases de Chico, cada qual impregnando a história de um público sedento de Brasil, que lotou o teatro.

Eram milhares de pessoas, órfãs não propriamente de Chico, mas de Brasil, que reagiam entusiasticamente a cada música, como para espantar os demônios que já apossaram do país conspurcando o verde e amarelo com suas caras de zumbis abobados, saindo dos porões do inferno.

Passou pelo show grande parte do repertório intemporal de Chico. Mas o momento mais intenso foi quando Chico e Mônica interpretaram “Maninha”, a música que melhor antecipou o que se passaria com o Brasil.

A letra narra a história de dois irmãos, após o abusador ter entrado em suas vidas, a saudade da vida perdida, a esperança de um dia ele ir embora.

Se lembra da fogueira
Se lembra dos balões
Se lembra dos luares dos sertões
A roupa no varal, feriado nacional
E as estrelas salpicadas nas canções

Se lembra quando toda modinha falava de amor
Pois nunca mais cantei, oh maninha
Depois que ele chegou

Se lembra da jaqueira
A fruta no capim
Dos sonhos que você contou pra mim

Os passos no porão, lembra da assombração
E das almas com perfume de jasmim

Se lembra do jardim, oh maninha
Coberto de flor
Pois hoje só dá erva daninha
No chão que ele pisou

Se lembra do futuro
Que a gente combinou
Eu era tão criança e ainda sou
Querendo acreditar que o dia vai raiar
Só porque uma cantiga anunciou

Mas não me deixe assim, tão sozinho
A me torturar
Que um dia ele vai embora, maninha
Prá nunca mais voltar

Estava ali, o Brasil que começou a ser ensaiado a partir do “mensalão”, que se consolidou com a Lava Jato, o país do ódio, da destruição do adversário, tratado como inimigo. Até que o abusador tomou conta de tudo, as milícias conquistaram o poder, exterminando doentes, índios e abandonando crianças, destruindo sistemas de ensino, redes de proteção social.

 música aumentou em vários graus a emoção que já cobria a plateia. Não foi necessária nenhuma explicação, nenhum grito de guerra, mas apenas a solidariedade silenciosa de irmãos que se vêem libertados do abusador. E, na saída, a dura realidade batendo de volta. Se um dia ele vai embora, prá nunca mais voltar, não será por agora.

O abusador não é a figura caricata, pornográfica de Bolsonaro e seus filhos, da fada madrinha Michele, com suas maçãs envenenadas de manipulações religiosas, nem a bruxa Damares medindo o dedo de curumins enjaulados.

O abusador, agora, está em cada esquina, depois que uma campanha odiosa de mídia abriu os túmulos, permitindo que os zumbis escapassem das profundezas e invadissem definitivamente a vida brasileira.

É pior que nos tempos da ditadura. Na ditadura você encontrava alguns delatores no seu entorno, mas era como se os porões fossem segregados da sociedade, permitindo a honestos pais de família fingir que não ouviam os gritos dos torturados pelos amigos de Bolsonaro.

Agora, não. O espectro do abusador entrou na cabeça da velhinha rezadeira, do ruralista alucinado, normalizou a atuação dos assassinos reunidos em Clubes de Atiradores e Caçadores, transformou jornalistas em delatores – alguns deles, agora, tentando refazer o caminho de volta à civilização. Fez com que a sobrinha pia, que ia todos os domingos na missa, passasse a desejar a morte de esquerdistas, petistas, comunistas ou qualquer ista injetado em sua cabeça. Jogou no mesmo ambiente médicos imbecilizados, arruaceiros de periferia, vocações  assassinas esperando a primeira oportunidade para cumprir a sua sina.

Definitivamente, o abusador não foi embora. Será um árduo trabalho empurrá-los de volta ao túmulo, porque não tem cara, não tem RG, é um sentimento amargo, pútrido, plantado por anos na cabeça do país, como um ectoplasma de Freddy Krueger.

Será uma dura caminhada, mas, pelo menos, sabemos o caminho. E as migalhas de pão jogadas pela estrada, para encontrar o caminho da volta, são as canções de Chico, Milton, Caetano, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Angelino de Oliveira, Adoniran.

Afinal, um país que construiu a mais bela música do planeta, haverá de encontrar forças para recuperar as lembranças das fogueiras, dos balões, dos luares dos sertões, e, em um ponto qualquer do futuro, voltar a ter orgulho de si.

A vida a cores e em branco e preto https://bit.ly/3Ye45TD

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