22 março 2023

Tudo pela usura?

Terrorismo fiscal e totalitarismo financeiro

Com o apoio da mídia, o mercado tenta colocar o Estado em xeque, através do “teto de gastos”. Querem bloquear políticas mínimas de vida e liberdade aos cidadãos — e sustentar o recreio nababesco do 0,1%. Democracia real exigirá enfrentá-los
Paulo Kliass, Maria Abreu, Fabiano A. S. Dalto
 e Daniel Negreiros Conceição/A Terra é redonda

 

No último 14 de março, completaram-se cinco anos do assassinato de Marielle Franco, sem que se tenham descoberto os mandantes do crime. Em discurso incisivo, o Ministro da Justiça afirmou que vivemos tempos parecidos com os europeus de um século atrás, em que sentimentos eram mobilizados para criar uma unidade em torno do ódio.

Tomando como ao menos parcialmente coerente esta avaliação de Flávio Dino, temos a apontar que, se o diagnóstico a respeito das relações sociais mobilizadas em torno de afetos está correto, já a solução institucional estatal vem sendo outra. Nos últimos anos, ao invés de um Estado totalitário, tivemos uma realidade em que o ódio e o medo foram mobilizados para criar um véu do abandono genocida nas relações entre Estado e sociedade.

Se examinarmos bem, com a desorganização sistemática das políticas sociais em plena pandemia, a eliminação de restrições que impediam a dizimação de povos indígenas, o estímulo ao armamento da população e exclusivamente ao empreendedorismo individual, somadas à ausência de políticas de promoção e garantia de empregos formais, vivemos um tempo bastante peculiar. Talvez algo muito mais próximo ao estado de natureza formulado por Thomas Hobbes, em meados do século XVII, do que aos Estados autoritários, fascistas ou nazistas da primeira metade do século XX.

No caso brasileiro, se sobrevivemos aos últimos anos, foi graças a uma estrutura estatal, composta por servidores públicos, que teimou em funcionar, a despeito de todo projeto de desmonte a ela aplicado. Tal projeto tentou derrubar as pilastras vivas e institucionais de uma mínima estrutura democrática, que institucionalmente se traduz na separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e na realização de eleições periódicas consideradas legítimas, com a inclusão de toda a população a partir de uma certa idade.

Este é o pacto democrático mínimo alcançado por diversos países na primeira metade do século 20, que foi ameaçado nos últimos anos em alguns lugares no mundo e, de forma contundente, no Brasil. Conseguimos, com muito esforço e de forma bastante disputada, salvar esse arranjo. Para que nossa sociedade se organizasse em torno da defesa dessa democracia mínima, uma ilusão teve de ser duramente perdida: a de que as instituições democráticas estariam garantidas.

Afastado, ao menos temporariamente, o perigo de perda de nossa democracia formal, temos agora de dar um segundo passo. Em artigo anterior, inspirados em uma entrevista de Ernesto Raúl Zaffaroni,[i] invocamos o conceito de totalitarismo financeiro, relacionando-o com o medo mobilizado pelo mercado. Pois agora vamos analisar o papel que o terrorismo fiscal tem nesse totalitarismo. No texto anterior, destacamos que, para haver totalitarismo, não é necessária uma economia planificada. Neste texto, vamos sugerir que um Estado fraco é palco propício para um terrorismo fiscal e, em consequência, uma espécie de totalitarismo de mercado.

Os debates envolvendo a política econômica brasileira atual giram em torno da estrutura legal de finanças públicas – o arcabouço fiscal – que substituirá o chamado “teto de gastos” instituído ainda no governo Temer e desrespeitado sem problemas – ainda bem – pelo governo Bolsonaro. Apesar dos fins eleitoreiros, precisamos ter a coragem de dizer que foi a desobediência de Jair Bolsonaro ao teto de gastos que impediu que a população brasileira vivesse uma situação ainda mais famélica e desesperadora do que aquela pela qual passou. O orçamento secreto e o Auxílio Brasil foram práticas espúrias do ponto de vista da transparência e da impessoalidade dos gastos públicos, mas ao menos contribuíram para que houvesse algum grau de despesa pública para atenuar as dificuldades vividas pela grande maioria da população.

Após a aprovação da PEC da Transição pelo Congresso Nacional, o governo está obrigado a apresentar até agosto próximo uma lei complementar tratando do chamado “arcabouço fiscal”. Esta é, aliás, a condição prevista na Emenda Constitucional nº 126 para que se torne efetivo o fim do novo regime fiscal e o teto de gastos. Não sabemos ao certo o que será proposto depois de negociado internamente na equipe liderada por Lula. Mas de acordo com as indicações do ministro Fernando Haddad, teremos algum tipo de combinação de responsabilidade social com a responsabilidade fiscal.

A julgar pelas manifestações de representantes do financismo nos grandes meios de comunicação, qualquer proposta que não mantenha a essência do teto de gastos será considerada insuficiente e “irresponsável” fiscalmente. O clima de chantagem e ameaça deve ser retomado a partir da divulgação da proposta do governo e assim será também ao longo de sua tramitação nas duas casas do Parlamento. Alguns “especialistas” já tratam a matéria pelo apelido de “âncora” fiscal e não de arcabouço fiscal, pois a ideia é realmente a de segurar a possibilidade de elevação de gastos no fundo do oceano com fortes cabos de aço.

Buscando contribuir para o debate, o Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD) lançou, em nota pública,[ii] contribuição para o desenho de um novo arcabouço fiscal. Nela, estão valorizados os instrumentos de planejamento previstos na Constituição brasileira de 1988 – o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei de Orçamento Anual – com a defesa do estabelecimento de “metas” de gastos em vez de teto de gastos.

Para assimilar essa contribuição, é necessário que se perca uma segunda ilusão em torno da relação entre Estado e democracia. A memória imediata de nossa história republicana associa planejamento com períodos autoritários – Estado Novo e ditadura militar –, fazendo às vezes parecer que instrumentos de planejamento governamental sejam amarras em face da espontaneidade social. Afirmamos que não o são. Ao contrário, o estabelecimento de metas planejadas cria transparência e pontos de debate democrático em torno dos quais agentes estatais e sociais possam dialogar, discordar, reivindicar e, no limite, rejeitar.

Sem planejamento, tem-se a possibilidade do oportunismo contingencial que dá aos mais fortes economicamente possibilidades mais amplas de negociarem, chantagearem e, no limite, ameaçarem. Não é a estabilidade do mercado que o governo deveria almejar, mas a segurança do cotidiano da vida dos cidadãos. E, para isso, vêm as metas de gastos, de acordo com as capacidades estatais dos governos e, como já indicou o economista André Lara Resende,[iii] até alcançar o pleno emprego.

Não se trata de defender um Estado que joga dinheiro de um helicóptero, em cenas que remontam a filmes em que o Batman – defensor da ordem – tem de defender Gotham City do cruel – e inconsequente – Coringa. Ao contrário. Embora não haja limites financeiros para a realização de pagamentos por um Estado criador de moeda, certamente deve haver limites funcionais para que as consequências dos gastos não sejam indesejáveis.

Porém, se é aceitável que bancos e empresas privadas “grandes demais para quebrar” sejam resgatadas pelo Estado sempre que estão ameaçadas de insolvência para evitar que suas quebras tenham consequências desestabilizadoras para a economia como um todo, como não pode ser muito mais justificável que o governo gaste o suficiente para prover direitos fundamentais da população com bens e serviços públicos e guiar a economia ao pleno emprego, com respeito ao limite inflacionário da economia?

O resgate às pressas de bancos e empresas privadas que quebram financeiramente e ameaçam a estabilidade do mercado é que não deveria ser feito com a frequência com que acontece. Se há pressão para que recursos públicos sejam garantidos para pagamentos de dívidas a juros altos, esse verdadeiro terror praticado contra cidadãos e cidadãs é que deve ser evitado. Neste sentido, o Estado não pode ser conivente ou agente auxiliar de quem efetivamente pratica o terror.

A defesa seletiva dos porta-vozes do mercado financeiro do gasto público irrestrito apenas para remunerar a riqueza aplicada em títulos públicos revela a natureza mesquinha e desonesta de suas recomendações para o governo. Para tais agentes, a estrutura democrática mínima, com mecanismos fiscais severos de controle dos gastos públicos do Estado é o cenário ideal. É o caminho para a garantia de que eles, na condição de especuladores e rentistas nacionais e estrangeiros, continuem dormindo tranquilamente.

Mas nós sabemos aonde isso pode levar. Se a estrutura política não for capaz de promover economicamente aquilo que ela promete na inclusão pelo voto, não há abstração democrática que sustente valores humanitários. Se economicamente predominar o “cada um por si”, por que alguém expropriado/a continuamente pelas dívidas impagáveis – de acordo com as próprias regras dessa estrutura financeira estatal – se comprometeria com a mesma estrutura, que é mantida por eles próprios?

O terrorismo fiscal reside justamente na ameaça ao Estado com o objetivo de impedi-lo de dar condições mínimas de liberdade – a de não ser expropriado financeiramente de modo contínuo – para seus cidadãos e suas cidadãs. Garantir essa liberdade, para além do direito à vida, é o que dá a mínima legitimidade a um Estado que se pretende democrático.

Notas

[i] https://aterraeredonda.com.br/mercado-e-totalitarismo-financeiro/

[ii] https://iffdbrasil.org/index.php/2023/03/13/nota-publica-n-1-em-defesa-de-um-regime-de-planejamento-fiscal/

[iii] https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2022/02/11/andre-lara-resende-a-camisa-de-forca-ideologica-da-macroeconomia.ghtml

Autores

Paulo Kliass é doutor em economia pela UFR, Sciences Économiques, Université de Paris X (Nanterre) e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Maria Abreu é professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fabiano A. S. Dalto é diretor de pesquisa do IFFD e Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Daniel Negreiros Conceição é diretor presidente do IFFD e professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ.

Informar-se e formar opinião própria, eis o desafio https://bit.ly/3Ye45TD

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