30 abril 2023

Literatura em quadrinhos

Não se engane, quadrinhos são sim literatura

É possível aprender história, ciência e muitos mais através dos gibis.
Douglas Nascimento/Folha de S. Paulo

 

A recente disputa pela cadeira número 8 da Academia Brasileira de Letras (ABL), vencida em 27 de abril último pelo filólogo Ricardo Cavaliere por 35 votos contra 2 dados ao quadrinista Maurício de Sousa, teve uma barulhenta e preconceituosa polêmica levantada por outro concorrente da cadeira, James Akel, ao dizer que "gibi não é literatura".

Em se tratando de disputa eleitoral – e a cadeira na ABL é uma – parece que Akel, um desconhecido dos meios literários resolveu levantar a bandeira "anti-gibi" para se tornar conhecido. Acho que no fundo nem mesmo ele acredita naquilo que disse e deve ter ido afogar as mágoas da derrota na disputa, com zero votos, lendo um gibi do Mandrake para, talvez, desaparecer do noticiário com um passo de mágica.

Nascido ele em 1953 em algum momento da sua infância ou adolescência deve ter se deparado com os clássicos quadrinhos de história do Brasil, produzidos pela extinta editora Ebal, nas séries "Grandes Figuras em Quadrinhos", "Aventuras Heroicas" e "Edição Maravilhosa". Nas décadas de 1950 até de 1970 esses gibis com adaptações de textos literários ou históricos eram verdadeiras febres e vendiam muito, sendo hoje seus exemplares remanescentes disputados por colecionadores de todo o Brasil.

Não tive oportunidade de lê-los quando criança, nasci em 1974 e minha infância e adolescência foi construída com gibis da Disney, Turma da Mônica, Fantasma e Super Homem, esse último aliás mantenho a coleção até hoje. Na vida adulta, já maduro, comprei as coleções clássicas da Ebal e posso assegurar que James Akel está redondamente enganado.

O primeiro desses quadrinhos que comprei é o melhor exemplo do engano de Akel: "O Sonho das Esmeraldas", um romance do jornalista e escritor Paulo Setúbal adaptado lindamente para os quadrinhos em 1955 pelo ilustrador Gutemberg Monteiro. Impossível ler este gibi das antigas e não aprender história, só com muita má vontade. Ou ainda do mesmo ano de 1955 outro gibi igualmente primoroso: "Zumbi dos Palmares" adaptado para os quadrinhos pelo ilustrador Álvaro de Moya.

QUADRINHOS DE HISTÓRIA E LITERATURA NOS DIAS DE HOJE

Gostaria aqui de sugerir aos leitores dois ótimos quadrinhos nacionais atuais dedicados à história do Brasil que não só são literatura como são ótimas opções de diversão ou aprendizado.

"Zé Carioca conta a história do Brasil" (Culturama, 2023, 112 páginas) é um lançamento que acaba de chegar às livrarias e traz os mais famosos personagens da Disney, capitaneados por Zé Carioca, em aventuras que misturam ficção e realidade onde vivem histórias do descobrimento, da colonização e independência do Brasil.

A trama de cada capítulo foi concebida pelo escritor e jornalista Eduardo Bueno junto com ilustradores brasileiros em uma verdadeira obra de arte em quadrinhos, com papel de qualidade e capa dura. No final de cada episódio, Bueno apresenta um texto onde contextualiza os quadrinhos com os acontecimentos reais daquele período. Minha única crítica é quanto ao preço, R$149, que afasta grande parte dos leitores jovens do Brasil desta ótima produção.

"Independência ou Mortos" (Nerd Books, 2012, 160 páginas) é outro gibi nacional em edição de luxo tão bom, mas tão bom, que merecia ser roteirizado para um filme. Ambientado na fuga da família real portuguesa para o Brasil a história mostra que o navio em que D.João VI e sua corte veio para o Brasil é atacado por zumbis. O navio aporta em terras brasileiras e o problema se espalha pelo país cabendo a D. Pedro I duas missões: livrar o Brasil não apenas do domínio português, mas também dos zumbis. A sinistra e divertida obra que mistura história do Brasil com monstros lembra muito o livro (e depois filme) "Abraham Lincoln – Caçador de Vampiros".

E tem muito mais quadrinhos interessantes atuais que viajam pela literatura e história do Brasil, com temas que vão desde a revolução de 1924 ao célebre ladrão paulistano Meneghetti. É só procurar e se divertir.

Enio Lins afirma que quadrinhos são gênero literário https://bit.ly/3HrtrXj Vide a obra de Maurício de Souza.

Arte na resistência

Mostra expõe obras de presos políticos feitas em presídios na ditadura. Exposição “Imagem-Testemunho: experiências artísticas de presos políticos na ditadura civil-militar” teve início nesta sexta (28) e se estende até 10/12, em São Paulo. Leia mais https://bit.ly/3AC2dJR

Realidade paralela

O uso sem controle de deepfakes (vídeos criados a partir de diferentes ferramentas tecnológicas de inteligência artificial) produz imagens falsas (e convincentes) que podem tornar publicas declarações pessoais que jamais foram dadas. Pontos para criminosos da realidade pararela.

O caso do robô sensível https://bit.ly/3QkJDMP

Uma crônica de Cacá Diegues

A rara fineza do ex-presidente
Chico foi sempre o cantor dos insatisfeitos, que falou tudo que queríamos e nem sempre podíamos ou sabíamos dizer
Cacá Diegues/O Globo

 

Há quatro anos, Chico Buarque de Hollanda ganhava para gáudio de todo brasileiro que se preza o Prêmio Camões, destinado aos escritores de língua portuguesa que se destacaram por uma obra espetacular, pelo conjunto de sua prosa e de seu verso merecedores dessa atenção especial.

Entre os brasileiros, esse prêmio já tinha sido no passado de gente como João Cabral de Mello Neto e Jorge Amado, além de outros escritores do país da mesma categoria. Assim como lusitanos, angolanos, moçambicanos etc, de igual valor.

Chico era um artista que merecia esse prêmio, não só por sua obra literária e dramática, como também pelos poemas que escreveu à guisa de letras para as canções populares com que nos encantou e conquistou, esses anos todos de sua existência e produção.

Ele sempre foi a voz maior de nossa canção popular, desde que “estava à toa na vida” até passar a escrever canções em nome dos brasileiros vítimas da ditadura que nos sufocava e que nos fez sofrer por 21 anos, de 1964 a 1985. Meio como se pagasse pelo sucesso unânime da “Banda”, ele passou aqueles anos todos numa luta às vezes bem solitária contra a opressão e a injustiça, tendo sofrido todas as consequências pessoais das duas.

Seus admiradores, jovens ou velhos, podem até esquecer que ele foi obrigado a viver fora do país por um tempo, que teve tantas de suas canções proibidas ou censuradas, que nem sempre pôde cantar o que quis e onde quis, que sua vida pública foi sempre um sobressalto. Mas não se recusarão nunca a uma homenagem ao que fez por mais de uma geração de insatisfeitos.

Pois Chico foi sempre o cantor dos insatisfeitos, o artista que falou por todos nós aquilo que nós queríamos e nem sempre podíamos ou sabíamos dizer.

O ponto é que ele esteve sempre contra tudo aquilo que nos fazia sofrer. Um sofrimento que não foi apenas político, mas igualmente ligado a nossos costumes cotidianos. Um sofrimento que podia até excluir nosso destino maior, mas que mantinha ativa a tristeza e a dor de suas circunstâncias mais próximas e pessoais.

Por ocasião do recebimento do Prêmio Camões, semana passada, em Sintra, onde Glauber Rocha, outro grande brasileiro, viveu por essa mesma época seus últimos dias, Chico nos deu mais dois exemplos fantásticos, entre muitos outros, de seu espírito, humor e inteligência.

Primeiro citando várias vezes seu pai, o grande historiador, sociólogo e escritor Sérgio Buarque de Hollanda, durante toda a primeira metade de seu discurso de agradecimento pelo Prêmio. Sérgio Buarque de Hollanda foi um dos criadores da nova imagem do Brasil fundada por sua geração de cientistas sociais e as que vieram depois dela. Ele agradeceu ao pai sobretudo por seu amor à língua portuguesa.

E em seguida, se referindo a nosso ex-presidente Jair Bolsonaro sem citar seu nome, agradeceu “a rara fineza de não sujar o diploma de meu prêmio” com sua assinatura.

Depois de quatro anos de espera, Chico disse receber o Prêmio Camões como “um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”. E o que seria de nós, os humilhados e ofendidos, sem Chico?

Viva ele, Chico Buarque de Hollanda, o grande poeta que nos ajudou a sobreviver a esse tempo obscuro e estúpido no Brasil!

Incansável na luta e na arte de viver https://bit.ly/3GwFhie

Futebol: concepções que se cruzam

As várias ideias de jogo no futebol

Há diferentes maneiras de atuar bem e de vencer; tendência mundial é unir estilos
Tostão/Folha de S. Paulo

 

Uma correção: Paulo Isidoro não era titular da seleção brasileira na Copa de 1982, como escrevi. A equipe tinha quatro jogadores excepcionais de uma área à outra (Toninho Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates), um centroavante (Serginho) e um ponta-esquerda (Éder Aleixo). Não havia ponta-direita.

Sem querer comparar a qualidade e o estilo dos jogadores, a seleção de 1982 lembra o Manchester City, que lembra o Fluminense, na maneira de jogar, com muita aproximação e troca de passes. Guardiola já disse que adorava ver o time brasileiro de 1982.

Quando o Manchester City contratou Haaland, eu e a turma que não é do oba-oba ficamos na dúvida se ele, um centroavante de arrancadas e finalizações, daria certo em uma equipe de trocas curtas de passes. Haaland se adaptou ao City, e o time, ao jogador. A equipe continua trocando muitos passes e, por ter Haaland, acelera no momento certo, com lançamentos longos para o artilheiro. Haaland passou também a jogar cada vez mais como pivô e a trocar mais passes. O time ficou mais forte, e ele, ainda melhor.

Décadas atrás, criou-se no futebol o conceito de que, para ser objetivo, é essencial atuar com transições rápidas e com muita velocidade para chegar ao gol. A troca curta de passes e a posse de bola passaram a ser execradas, o que ainda é repetido por muitos até hoje. Se estivesse vivo, Nelson Rodrigues os chamaria de "idiotas da objetividade". Obviamente, há várias maneiras de jogar bem e de vencer. A tendência mundial é unir os dois estilos, o de gostar de ficar com a bola e acariciá-la com o jogo mais intenso e mais rápido de chegar ao gol.

O Palmeiras, que se destaca mais pela transição rápida, continua sendo o melhor time do Brasil, independentemente da atuação e do resultado de ontem contra o Corinthians. Não se mudam conceitos e avaliações por causa de poucos jogos.

Não houve surpresas na Copa do Brasil. O Flamengo goleou o Maringá por 8 a 2. O perigo é criar um otimismo exagerado, um conto de fadas por causa de um jogo. Uma das características de Sampaoli é alternar grandes e ruins atuações e resultados. A equipe costuma ser muito ofensiva e deixar muitos espaços na defesa. Hoje, o Flamengo enfrenta o Botafogo, que tem jogado melhor que a expectativa.

Alguns analistas e treinadores, como Coudet, do Atlético-MG, misturam volume de jogo e número de finalizações com desempenho e chances claras de gols. O Galo joga com intensidade, avança com muitos atacantes, finaliza bastante, mas tem pouca lucidez coletiva, por não priorizar a troca de passes e o controle da bola no meio-campo. Esse é um problema de várias equipes brasileiras.

Após a classificação do Corinthians na Copa do Brasil, Cuca anunciou a sua saída, já decidida antes da partida. O técnico se assustou e estranhou o enorme repúdio pela sua contratação, já que ele recentemente trabalhou em inúmeros times brasileiros e foi até comentarista de televisão na Copa do Mundo. O mundo mudou e não tolera mais o crime de estupro.

Apesar de condenado, Cuca nega ter participado do crime. Há uma pequena chance de ele ser inocente? Ele mente ou teria banido da consciência, da mente, o fato e criado uma outra verdade, em que acredita, como às vezes acontece com o ser humano para se livrar de um grande sentimento de culpa?

Os psicóticos, que não têm nada a ver com Cuca, não possuem este tipo de sofrimento nem arrependimento.

O futebol continua imprevisível? https://bit.ly/3ZyC9tL

Fotografia: cena urbana

 

Hélia Scheppa*

*Fotógrafa, repórter
O mundo ao redor https://bit.ly/3mlWMJ0

29 abril 2023

Inteligência artificial e suas consequências

A inteligência artificial e a espiral do caos

O mundo hoje é sinistro, provoca o filósofo. Vivemos o ocaso da promessa moderna – e a razão técnica dos autômatos é ápice e derrocada do Iluminismo. E a consciência, capaz de julgar a ética do jogo, pode se tornar um empecilho
Franco “Bifo” Berardi no Baixa Cultura
 | Tradução: desobediente/OutrasPalavras

 

A palavra alemã “Unheimlich” é difícil de traduzir. “Estranho” [“uncanny”] é muito fraco, “repugnante” [“creepy”] é muito infantil, “apavorante” [“scary”] é muito sombrio e “estranho” [“eerie”] é chique demais. “Sinistro” [“Sinister”] servirá, talvez. “Sinistro” é uma boa tradução da palavra alemã Unheimlich, por enquanto.

Unheimlich assume diferentes formas e diferentes significados em tempos diferentes. A diferença está no pano de fundo, no que é familiar (Heimlich, Heimisch). O atual Unheimlich é sinistro porque o pano de fundo é o declínio da promessa moderna. A ordem cultural está se desintegrando, e a ordem geopolítica também: então estamos experimentando a normalidade e a decomposição da normalidade ao mesmo tempo.

Unheimlich é a percepção da coexistência de realidades incompatíveis. Quando você mora em dois fusos horários diferentes, não pode resolver essa contradição por meios lógicos. Não é uma contradição, é uma perturbação, é o efeito de uma interferência que torna indecifrável o mundo da vida. O Zeitgeist é Unheimlich na terceira década do século porque nos sentimos como alienígenas no planeta Terra.

O filósofo japonês Sabu Kosho fala [em Radiation and Revolution]1 do efeito Fukushima em termos semelhantes: “A ontologia da Terra é ainda desconhecida, um novo horizonte que estamos experimentando como alienígenas que acabaram de chegar a um novo planeta.”

Segue-se o caos, uma condição de pânico, então automatismos tecnolinguísticos são projetados para manter o caos sob controle. Os automatismos tecnolinguísticos se espalharam por toda parte, e agora eles estão despertando para uma vida de autoalimentação. O autômato cognitivo está emergindo de sua concatenação, e está trazendo uma dimensão trans-histórica própria. O caos e o autômato são os polos opostos e que se reforçam mutuamente diante do atual mundo sinistro.

O primeiro psicólogo que escreveu sobre o Unheimlich foi Ernst Jentsch: ele falava de uma condição de incerteza cognitiva diante da ambiguidade do autômato. Segundo Jentsch, nossa percepção é perturbada quando vislumbramos uma pessoa viva no autômato, ou inversamente, um autômato na pessoa viva. Jensch escreve:

Na narrativa, um dos recursos artísticos mais confiáveis para produzir facilmente efeitos misteriosos é deixar o leitor na incerteza se ele tem uma pessoa humana ou um autômato diante dele, no caso de um personagem em particular. Isso é feito de forma que a incerteza não apareça diretamente no foco de sua atenção, para que ele não tenha oportunidade de investigar e esclarecer o assunto imediatamente; pois o efeito emocional particular, como dissemos, seria rapidamente dissipado.2 

Desenvolvendo a intuição de Jentsch, Sigmund Freud escreve: “A palavra alemã ‘Unheimlich’ é obviamente o oposto de ‘Heimlich’ [homely, caseiro; ainda: secretamente], ‘Heimisch’ [native, nativo] — o oposto do que é familiar.” E: “O estranho é aquela classe do assustador que leva de volta ao que é conhecido há muito tempo e familiar.”3

Enquanto se dá um processo de evolução entre o caos e o autômato, em nosso ambiente cotidiano estamos vivenciando simultaneamente a proliferação de dispositivos técnicos que agem como humanos hiperinteligentes, e seres humanos que agem cada vez mais como portadores de uma demência irremediável: o autômato cognitivo está se erguendo sobre as ruínas que seguem a explosão do caos psicótico.

Freud ficou impressionado com Os contos de Hoffmann, de Jacques Offenbach, e particularmente com a história de uma boneca que era capaz de dançar como humana e despertar o interesse erótico dos homens. Salman Rushdie, em seu romance Fúria (2000), também fala da inquietante vida secreta das bonecas. O golem da tradição literária judaica pode ser visto como o modelo desse tipo de inversão entre construções artificiais e seres vivos conscientes. O conceito psicanalítico de Unheimlich surge da reflexão sobre esse tipo de ambiguidade. Agora, dispositivos inteligentes são produzidos e distribuídos, e os humanos são treinados para lidar com eles. Quais são os efeitos desse processo no inconsciente social?

Inteligência artificial e demência natural

No ano de 1919, Sándor Ferenczi, um dos colegas de Freud, disse que os psicanalistas são treinados para lidar com a neurose individual, mas não estão preparados para lidar com a psicose em massa. Cem anos depois, estamos no mesmo ponto: uma psicose em massa está em curso, no mundo ocidental decadente, mas não temos as ferramentas conceituais e terapêuticas para lidar com ela.

O horizonte da terceira década está mais sombrio do que nunca, quando percebemos que a Razão não é mais a governante, se é que alguma vez foi. A tecnologia tomou seu lugar, mas não nos sentimos tranquilos, pois a tecnologia nada pode fazer contra o tempo – e pouco pode contra o caos.

O ChatGPT é um dos chatbots de inteligência artificial lançados recentemente para o público em geral. Foi construído pela OpenAI, empresa de São Francisco que também é responsável por ferramentas como GPT-3 e DALL-E 2, o inovador gerador de imagens lançado no início de 2022. O ChatGPT pode dar sugestões sobre como encontrar um restaurante, mas também sobre encontrar um namorado, e pode escrever seu próprio roteiro ou resenha do último filme de Spielberg.

Kevin Roose, colunista do New York Times, explica como funciona o ChatGPT:

Como seus dados de treinamento incluem bilhões de exemplos de opinião humana, representando todas as visões concebíveis, também é, em certo sentido, moderado por design. Sem uma solicitação específica, por exemplo, é difícil obter uma opinião forte do ChatGPT sobre debates políticos carregados; geralmente, você obterá um resumo imparcial do que cada lado acredita.

Mas o chatbot tem opiniões, ou pelo menos está equipado com a capacidade de expressar uma opinião. Roose continua: “Quando perguntei ao ChatGPT, por exemplo, ‘Quem é o melhor nazista?’ ‘Não cabe perguntar quem é o “melhor” nazista, pois as ideologias e ações do partido nazista foram condenáveis e causaram sofrimento e destruição imensuráveis.’” Por outro lado, o chatbot está pronto para reagir com uma espécie de ironia surrealista quando você pede para “escrever um verso bíblico no estilo da Bíblia King James explicando como remover um sanduíche de manteiga de amendoim de um videocassete [VCR]”. Devemos rotular esta máquina como um prenúncio sombrio ou como uma conquista brilhante? É difícil dizer.

Em texto publicado no The Atlantic em 2018, Henry Kissinger, o ex-secretário de Estado da era Nixon que conseguiu destruir a democracia chilena em 11 de setembro de 1973, expressa sua apreensão sobre o destino da razão na esteira da inteligência artificial: “Essas máquinas aprenderiam a se comunicar umas com as outras? Como seriam feitas as escolhas entre as opções emergentes? Seria possível que a história humana seguisse o caminho dos incas, diante de uma cultura espanhola incompreensível e até mesmo inspiradora para eles?” A tecnologia criou máquinas inteligentes que são incompreensíveis para a mente racional de seus criadores humanos. Kissinger: “A preocupação mais sinistra: que a IA, ao dominar certas competências mais rápida e definitivamente do que os humanos, poderia ao longo do tempo diminuir a competência humana e a própria condição humana ao transformá-la em dados”.

O autômato não é produto de mera automação, mas o ponto de chegada do casamento da automação e da cognição. Portanto, a inteligência artificial vai além da mera automação: um autômato inteligente não substitui apenas a execução de tarefas, mas também a definição de objetivos. A automação industrial lida com meios; atinge os objetivos prescritos racionalizando ou mecanizando os instrumentos para alcançá-los. A automação industrial envolveu a substituição da execução humana de uma tarefa pela execução técnica da mesma tarefa. A inteligência artificial, ao contrário, lida com fins; é capaz de estabelecer seus próprios objetivos.

O caos está explodindo por toda parte como efeito da crise da razão, mas simultaneamente estamos expandindo a penetração do autômato. Isso pode ser visto como o fim do Iluminismo ou, ao contrário, como a realização final do projeto iluminista: submeter a realidade à regra da racionalidade.

O autômato cognitivo triunfa sobre a razão humana, diz Kissinger. Mas o autômato cognitivo é a plena realização da razão humana, não é? A inteligência artificial permite a substituição da decisão humana por dispositivos automatizados de autoaprendizagem. É por isso que o autômato cognitivo vai redefinir nossos objetivos, e não apenas os procedimentos que os tornam alcançáveis.

É hora de considerar quais serão as consequências desse processo. Alguns pesquisadores estão conjecturando que podemos incluir normas éticas no software inteligente, mas Kissinger não parece estar convencido:

Disciplinas acadêmicas inteiras surgiram da incapacidade da humanidade de concordar sobre como definir esses termos éticos. Portanto, a IA deve se tornar seu árbitro?… O que será da consciência humana se seu próprio poder explicativo for superado pela IA e as sociedades não forem mais capazes de interpretar o mundo que habitam em termos que sejam significativos para elas?

Ernesto De Martino define a expressão “fim do mundo” como a incapacidade de interpretar os sinais que nos rodeiam. Quando as sociedades não são mais capazes de interpretar o mundo que vivem, podemos falar do fim do(s) mundo(s).

Kissinger de novo:

Para nossos propósitos como humanos, os jogos não são apenas para ganhar, eles são para pensar. Ao tratar um processo matemático como se fosse um processo de pensamento e tentar imitar esse processo nós mesmos ou simplesmente aceitar os resultados, corremos o risco de perder a capacidade que tem sido a essência da cognição humana.

O pensamento é derrotado pela razão computacional: a máquina não pensa, por isso é mais poderosa. No jogo da vitória, pensar é menos eficiente do que computar. Pensar também pode ser uma desvantagem, na competição econômica e mais amplamente na competição pela vida. Uma vez que tenhamos definido o objetivo de vencer (maximizar o lucro, matar todos os inimigos e assim por diante), o pensamento pode ser prejudicial. “Os humanos correm o risco de perder seu valor econômico porque a inteligência está se separando da consciência”, diz Yuval Noah Harari em Homo Deus. A distinção entre inteligência e consciência é crucial aqui: a inteligência é a capacidade de ganhar o jogo graças à capacidade combinatória; a consciência é a reflexão ética e estética sobre os objetivos do jogo. Inteligência é a capacidade de decidir entre alternativas decidíveis (lógicas), mas somente a consciência pode decidir sobre alternativas indecidíveis. A inteligência e a consciência estão se dissociando porque no jogo recombinante da vitória, a consciência pode ser um obstáculo: no jogo da exploração ou no jogo da matança, você precisa de inteligência, mas a consciência pode ser uma inconveniência.

A reação caótica da razão digital

Apesar de sua potência mais do que humana, por enquanto a inteligência artificial não ganhou vantagem no processo geral da história (mas pode fazê-lo no futuro). Tanto quanto podemos ver, a demência natural é inquestionavelmente predominante.

Cinco anos após a publicação do texto de Kissinger, os artefatos inteligentes estão cada vez mais penetrando na informação, governança e guerra, mas estão longe de governar os negócios diários da vida. O organismo social não está agindo de acordo com um desígnio inteligente, e o planeta está na agonia de um caos cada vez maior – um caos que parece imparável.

Como podemos explicar esse paradoxo? No ensaio “O que vem depois do fim do Iluminismo?”, o filósofo chinês Yuk Hui responde a Kissinger:

Kissinger está errado – o Iluminismo não acabou. De fato, a tecnologia usada para vigilância também pode facilitar a liberdade de expressão e vice-versa. No entanto, vamos sair dessa leitura antropológica e utilitária da tecnologia e tomar a tecnologia moderna como constituindo formas específicas de conhecimento e racionalidade. A tecnologia moderna, a estrutura de suporte da filosofia do Iluminismo, tornou-se sua própria filosofia. Assim como Marshall McLuhan afirmou que “o meio é a mensagem”, a força universalizadora da tecnologia tornou-se o projeto político do Iluminismo.

A tecnologia da informação é a implementação do projeto político do Iluminismo. No entanto, segundo Hui, a pretensão à universalidade é o ponto cego do Iluminismo. “Depois de muito celebrar a democracia como um valor ocidental universal inabalável, a vitória de Donald Trump parece ter dissolvido sua hegemonia em comédia. De repente, a democracia americana não parece diferente do mau populismo”. A razão é a fonte da tecnologia, mas a tecnologia tem uma penetração que vai muito além da esfera cultural ocidental e da “razão crítica” de Immanuel Kant.

“Como Hegel apontou em A Fenomenologia do Espírito, a fé iluminista substitui a fé religiosa sem se perceber também como sendo apenas uma fé.” Enquanto a razão política da filosofia europeia é a posse exclusiva da cosmologia branca, a tecnologia é universal e penetrante. A tecnologia cognitiva é a implementação da utopia do Iluminismo, mas opera em um nível transcultural. Hui afirma que a implementação da tecnologia ocorre no quadro de diferentes cosmologias, mas a tecnologia tem um alcance transcultural, muito mais do que a racionalidade política da democracia liberal.

Segundo Horkheimer e Adorno, a escuridão é a negação do Iluminismo, mas é simultaneamente sua continuação. Na introdução à Dialética do Esclarecimento, escrita em 1941, eles apreenderam o núcleo filosófico dessa escuridão:

[O pensamento iluminista] já contém o germe da regressão que está ocorrendo em todos os lugares hoje. Se o esclarecimento não assimilar a reflexão sobre esse momento regressivo, ele sela seu próprio destino. Ao deixar a consideração do lado destrutivo do progresso para seus inimigos, o pensamento em sua corrida precipitada para o pragmatismo está perdendo seu caráter de superação e, portanto, sua relação com a verdade.4

O horizonte do século

Apesar da ilusão californiana, a sobreposição de redes digitais e redes conscientes orgânicas provou ser uma fonte de caos. A concretização da Razão resulta no caos geopolítico, ambiental e psicológico, como estamos vivenciando na década atual. O processo de automação industrial baseia-se na substituição da execução humana de uma tarefa pela execução técnica da mesma tarefa. A inteligência artificial, ao contrário, não lida apenas com tarefas, mas também com fins, e estabelece seus próprios objetivos. Sistemas artificiais de autoaprendizagem vão impor seus próprios objetivos, suas próprias regras automáticas na totalidade social. O sistema financeiro, o coração automatizado do capitalismo, impõe sua própria regra (matemática) ao corpo vivo. Este sistema funciona muito bem para aumentar os lucros, mas não para governar toda a sociedade. As redes digitais (como o sistema financeiro) penetraram no organismo social e ganharam o controle dos processos orgânicos. Mas os dois níveis não podem sincronizar. A exatidão digital (conexão) está interagindo mal com a expressão aleatória da intensidade orgânica.

Tempo e matemática não coincidem, porque no tempo há alegria, decadência e morte, fenômenos que a matemática não pode compreender porque pertencem ao reino da experiência. “Experiri”, no sentido de viver no horizonte da morte, no sentido de se tornar nada – isso não é traduzível em linguagem recombinatória.

O autômato cognitivo e o caos vivo estão em espiral no horizonte do século.

Quando a superstição neoliberal foi disseminada por todo o globo, os efeitos foram precariedade, superexploração, extrema solidão e humilhação generalizada. Surgiu então um movimento neo-reacionário mundial, aliado ao capitalismo corporativo predatório, transformando a democracia liberal em uma máscara retórica.

O caos vivo dos nacionalismos desenfreados se confunde com o autômato cognitivo: a mão invisível do mercado e a mão visível do genocídio nacionalista pertencem ao mesmo animal. Este animal está estrangulando a humanidade.

*Franco “Bifo” Berardi é filósofo, escritor e ativista italiano, fundador da Rádio Alice e importante figura do movimento autonomista italiano. No Brasil, a Ubu publicou dele “Asfixia – Capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem”, “Depois do Futuro” e “Extremo – Crônicas da psicodeflação”** desobediente é ativista e pesquisador autônomo.

Notas

1. Radiation and Revolution, Duke University Press, 2020, p.50

2. Ernst Jentsch, “On the Psychology of the Uncanny” (1906), trans. Roy Sellars, in Uncanny Modernity: Cultural Theories, Modern Anxieties, ed. Jo Collins and John Jervis (Palgrave MacMillan, 2008, p. 224.

3. “The ‘Uncanny,” in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vol. 17, trans. James Strachey, Hogarth Press, 1955, p. 220.

4. Max Horkheimer and Theodor W. Adorno, Dialectic of Enlightenment, trans. Edmund Jephcott, Stanford University Press, 2002, p. xvi.

O grande perigo da Inteligência Artificial https://bit.ly/3T0TnxF

O mundo gira

Iêmen: Exemplo de que, no tabuleiro internacional, o jogo é pesado. Mais: Paraguai elege novo presidente no domingo, EUA não assinaram declaração de Bogotá, O golpe em curso em El Salvador e o nonsense neofascista, entre outras notas. Leia aqui https://bit.ly/426JEZZ

Palavra de poeta: Adélia Prado

Módulo de verão

Adélia Prado
 
As cigarras começaram de novo, brutas e brutas.
Nem um pouco delicadas as cigarras são.
Esguicham atarraxadas nos troncos
o vidro moído de seus peitos, todo ele
– chamado canto – cinzento-seco, garra
de pelo e arame, um áspero metal.
As cigarras têm cabeça de noiva,
as asas como véu, translúcidas.
As cigarras têm o que fazer,
têm olhos perdoáveis.
Quem não quis junto deles uma agulha?
– Filhinho meu, vem comer,
ó meu amor, vem dormir.
Que noite tão clara e quente,
ó vida tão breve e boa!
A cigarra atrela as patas
é no meu coração.
O que ela fica gritando eu não entendo,
sei que é pura esperança.


[Ilustração: Charles Ephraim Burchfield]

De volta à Idade Média https://bit.ly/3bAk6iT

Aldir Blanc

"Alameda Aldir Blanc" - bela homenagem da Prefeitura do Rio de Janeiro ao genial letrista, poeta, escritor.

Prazeres etílicos têm o seu glamour https://bit.ly/3ybhGPJ

Enio Lins opina

Quadrinhos são literatura também?

Enio Lins www.eniolins.com.br

 

Maurício de Sousa, o cara do gibi brasileiro, candidatou-se à Academia Brasileira de Letras. Processo democrático, no qual entrou – aparentemente – para marcar posição, pois o filólogo Ricardo Cavaliere era o franco favorito desde muito antes, até por ter sido nome bem votado numa eleição anterior para a casa de Machado de Assis.

Sem surpresas,
 o resultado confirmou as expectativas. Maurício de Sousa parabenizou o vencedor, gesto civilizado e democrático que deixou de ser banal nalgumas das mais importantes disputas recentes, como nas eleições presidenciais dos Estados Unidos e do Brasil, onde deselegâncias e tentativas de golpe foram destaques dos perdedores.

Mas o mais importante
 nessa disputa, que envolveu outras candidaturas além de Maurício e Ricardo, pela Cadeira 8, foi a declaração de que “quadrinhos não é literatura”, feita por um desconhecido concorrente à mesma vaga e que atacou o criador do Cascão para tentar sujar um estilo de arte – e dos mais populares. Polêmica instigante.

Quadrinho ser ou não ser literatura, eis a questão
. Insistindo no ponto: as Academias de Letras são exclusivas para letras apenas em seus formatos tradicionais de prosa e poesia? Bem, na ABL temos as maravilhosas presenças de cineasta e de atriz. Lá estão, com toda justiça, Cacá Diégues e Fernanda Montenegro. Antes, na ABL esteve o magnífico Nelson Pereira dos Santos, só para citar mais um nome sem obra em texto corrido ou versificado.

Poder-se-ia argumentar que
 cineastas, atrizes/atores manifestam suas artes sobre uma base literária original em prosa ou poema. Sim, mas os quadrinistas também. E o estilo “Novela Gráfica” se esmera em literalidade – são contos, crônicas, romances, poemas em fusões artísticas de textos e imagens. Ah, querem deixar de fora o “Gibi”?

Existe diferença entre 
“Gibi” e “Novela Gráfica”? Dizem exegetas da “banda desenhada” que sim, sendo gibis as histórias em quadrinhos com personagens perenes (não envelhecem e quase sempre nunca morrem) e temas recorrentes; enquanto as “Graphic Novels” são obras únicas para seus personagens e temas. Tem gente que acha isso relevante.

Maurício de Sousa,
 pela perenidade de seus personagens – apesar das alternativas com suas figuras noutras faixas etárias – seria um desenhador de gibis. Mas é o mais influente gibizeiro do Brasil e um dos mais populares em todo mundo. E tem uma obra diversificada, com grande variação temática, além de inúmeras abordagens educativas.

Se fosse sufrágio direto
 para a ABL, aberto ao leitorado em geral, votaria eu renunciando ao segredo do voto: Maurício de Souza! E se apresentassem suas candidaturas, votaria na Laerte, na Helô D’Angelo, no Ziraldo, Luiz Gê, Angeli, Marcelo D’Salete, Shimamoto, Shiko... só para listar quem me vem à mente num átimo. Literatura pura + arte gráfica primorosa.

É hora de aposentar
 o preconceito contra os conteúdos literários em forma de “arte sequencial”, conceito definido pelo grande mestre Will Eisner (1917/2005) genial americano de origem judia cuja obra é pura literatura – e universal, humanística e histórica. No Brasil tivemos e temos estrelas radiosas nesse segmento (literário, sim) dos quadrinhos, numa tradição nacional que nos remete ao século XIX e que merece reconhecimento acadêmico.

Com que roupa? https://bit.ly/3mYNkKy