30 abril 2023

Uma crônica de Cacá Diegues

A rara fineza do ex-presidente
Chico foi sempre o cantor dos insatisfeitos, que falou tudo que queríamos e nem sempre podíamos ou sabíamos dizer
Cacá Diegues/O Globo

 

Há quatro anos, Chico Buarque de Hollanda ganhava para gáudio de todo brasileiro que se preza o Prêmio Camões, destinado aos escritores de língua portuguesa que se destacaram por uma obra espetacular, pelo conjunto de sua prosa e de seu verso merecedores dessa atenção especial.

Entre os brasileiros, esse prêmio já tinha sido no passado de gente como João Cabral de Mello Neto e Jorge Amado, além de outros escritores do país da mesma categoria. Assim como lusitanos, angolanos, moçambicanos etc, de igual valor.

Chico era um artista que merecia esse prêmio, não só por sua obra literária e dramática, como também pelos poemas que escreveu à guisa de letras para as canções populares com que nos encantou e conquistou, esses anos todos de sua existência e produção.

Ele sempre foi a voz maior de nossa canção popular, desde que “estava à toa na vida” até passar a escrever canções em nome dos brasileiros vítimas da ditadura que nos sufocava e que nos fez sofrer por 21 anos, de 1964 a 1985. Meio como se pagasse pelo sucesso unânime da “Banda”, ele passou aqueles anos todos numa luta às vezes bem solitária contra a opressão e a injustiça, tendo sofrido todas as consequências pessoais das duas.

Seus admiradores, jovens ou velhos, podem até esquecer que ele foi obrigado a viver fora do país por um tempo, que teve tantas de suas canções proibidas ou censuradas, que nem sempre pôde cantar o que quis e onde quis, que sua vida pública foi sempre um sobressalto. Mas não se recusarão nunca a uma homenagem ao que fez por mais de uma geração de insatisfeitos.

Pois Chico foi sempre o cantor dos insatisfeitos, o artista que falou por todos nós aquilo que nós queríamos e nem sempre podíamos ou sabíamos dizer.

O ponto é que ele esteve sempre contra tudo aquilo que nos fazia sofrer. Um sofrimento que não foi apenas político, mas igualmente ligado a nossos costumes cotidianos. Um sofrimento que podia até excluir nosso destino maior, mas que mantinha ativa a tristeza e a dor de suas circunstâncias mais próximas e pessoais.

Por ocasião do recebimento do Prêmio Camões, semana passada, em Sintra, onde Glauber Rocha, outro grande brasileiro, viveu por essa mesma época seus últimos dias, Chico nos deu mais dois exemplos fantásticos, entre muitos outros, de seu espírito, humor e inteligência.

Primeiro citando várias vezes seu pai, o grande historiador, sociólogo e escritor Sérgio Buarque de Hollanda, durante toda a primeira metade de seu discurso de agradecimento pelo Prêmio. Sérgio Buarque de Hollanda foi um dos criadores da nova imagem do Brasil fundada por sua geração de cientistas sociais e as que vieram depois dela. Ele agradeceu ao pai sobretudo por seu amor à língua portuguesa.

E em seguida, se referindo a nosso ex-presidente Jair Bolsonaro sem citar seu nome, agradeceu “a rara fineza de não sujar o diploma de meu prêmio” com sua assinatura.

Depois de quatro anos de espera, Chico disse receber o Prêmio Camões como “um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”. E o que seria de nós, os humilhados e ofendidos, sem Chico?

Viva ele, Chico Buarque de Hollanda, o grande poeta que nos ajudou a sobreviver a esse tempo obscuro e estúpido no Brasil!

Incansável na luta e na arte de viver https://bit.ly/3GwFhie

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