17 abril 2023

Crise de crédito e de liquidez

A ameaça ao futuro

O Banco Central vem promovendo intencionalmente uma crise de crédito que se desdobra em crise de liquidez
Ricardo L. C. A morim/Le Monde Diplomatique



Nunca faltaram adjetivos para o Brasil. Nos louvores, foi gigante, celeiro do mundo, país do futuro. Nos tropeços da história, foi reconhecido como subdesenvolvido, dependente, periférico. Todos estavam certos, mas sempre parciais. Os tantos atributos somados dão ao país a mágica capacidade de ser muitos. O Brasil pode ser, a um só tempo, produtor de enorme volume de riqueza sem que seu povo tenha o que comer todos os dias. Ser fonte de lucros colossais para multinacionais e grandes capitais e ver a pobreza habitar cada esquina. O governo pagar a maior taxa de juros do mundo e ser chamado de perdulário quando destina maiores recursos aos mais pobres. Ter um órgão do próprio Estado sabotando o crescimento econômico.
É fácil perceber. O Brasil vive, desde 2015, uma crise econômica que já se arrasta por quase dez anos e foi duramente agravada, tanto pelo flagelo da Covid-19, como pela gestão desastrosa, feita pelo governo Bolsonaro, de toda tragédia causada pela pandemia. Esse governo de extrema-direita, derrotado historicamente nas urnas em 2022, manteve, todavia, uma trincheira dentro Poder Executivo Federal: o Banco Central.
Não é novidade que, desde antes do golpe de 2016, uma onda neoliberal varreu as políticas econômicas do país e culminou com cortes de investimentos e de gastos voltados aos mais pobres, além da efetivação da autonomia do Banco Central em relação à Presidência da República.[1] Desde então, a autoridade monetária chutou a taxa básica de juros, a Selic, de 1,9% ao ano (entre 06/08/2020 e 17/03/2021) para espetaculares 13,65% ao ano (desde 04/08 /2022). Um aumento assombroso de 618,4% ou 11,75 pontos percentuais em apenas dezessete meses. Como esperado, o custo médio dos empréstimos no Brasil saltou de 18,5% de juros, em setembro de 2020, para 31,2%, em janeiro de 2023. Um aumento drástico de 13,04 pontos percentuais, equivalente a 71,8% de majoração no custo médio do crédito no Brasil.[2] A esse preço, muitos negócios foram inviabilizados, decisões de investimentos adiadas ou canceladas e o consumo foi impactado.
De outro modo, a política monetária contracionista do Banco Central afetou o crédito e conteve a emissão de moeda feita pelos bancos privados, origem e fonte do numerário que circula na economia. Ou seja, o Banco Central vem promovendo intencionalmente uma crise de crédito que se desdobra em crise de liquidez. No entanto, crises de liquidez, não raro, engendram expectativas negativas, recessões e instabilidades pol&i acute;ticas. Por quê? Porque sem crédito e ilíquida, a economia desacelera, perde empregos e queima capitais. Em países capitalistas, onde as trocas comandam o cotidiano, a deterioração do bem-estar material das famílias imediatamente se transforma em insatisfação que, por sua vez, pode avolumar-se e metamorfosear-se em deslegitimação do governo, greves e, no limite, protestos violentos.
O Banco Central, portanto, possui enorme poder político e é necessário perguntar: a favor de quem usa esse poder? Certamente não está usando para auxiliar na substituição do projeto reacionário anterior, rejeitado nas últimas eleições, pelo novo, voltado à retomada do crescimento, da formação de capital nacional e da atenção aos mais pobres. Isso não surp reende, pois, para o neoliberalismo que domina o pensamento da diretoria do banco, a ação do Estado sobre a distribuição de renda, a produção e os direitos humanos não são bem aceitos. Por isso, conter a inflação emerge como desculpa legítima para refrear anseios sociais-democratas que promovem o Estado à fomentador da acumulação de capital, do progresso científico e tecnológico nacional e da distribuição dos ganhos do crescimento econômico. Dessa atuação do Banco Central, apenas os mais ricos e poderosos se beneficiam. Se decisões de investimento são adiadas e canceladas, pequenas empresas não resistem ao custo do crédito e trabalhadores ficam desempregados, os bancos e demais oligopólios, diferentemente, garantem (ou potencializam) sua rentabilidade administrando os recursos líquidos dispon&iacut e;veis no regiamente remunerado mercado de títulos públicos. Não é coincidência, portanto, o apoio que oferecem ao “perfil técnico” do Banco Central.
Para o cidadão comum, a crise de crédito promovida pela autoridade monetária provoca dificuldades econômicas, desemprego e pobreza. E vai além: restringe a ação do governo federal que, interessado em promover o crescimento do PIB, vê baldados seus esforços, tornando-se prisioneiro da política monetária “independente” do Banco Central. O resultado, marcadamente em um país urbaniza do, ultra desigual e com ampla juventude pobre, é a decepção com o governo, a perda de apoio político, a deslegitimação e, nas próximas eleições, a busca por um “salvador da pátria”, pleno de discursos antipolítica, violento e falsamente desligado dos interesses das elites. Em outras palavras, um ambiente propício para o retorno da extrema-direita ao poder.
Esse é o real perigo vivido pelo Brasil hoje: o retorno da extrema-direita, uma força política autoritária, racista, misógina, hierárquica, desleal em qualquer parte do mundo e, aqui, surpreendentemente antinacional. Um desafio enorme que existe porque há uma crise de crédito planejada para manter a economia sobre pressão, gerando desemprego, pobreza e descontentamento social. Um risco promovido pelo Banco Cen tral, bastião neoliberal incrustrado no poder e protegido da vontade popular pela autonomia que lhe foi outorgada.
A convergência de interesses entre ricos, neoliberais e extrema-direita moderna não é notícia nova, apesar da ameaça que representa para a democracia e para os trabalhadores. O mal-estar, no entanto, pode ser contornado pelo progresso dentro de sociedades capitalistas. O âmago da questão, na verdade, está na resistência exercida por forças reacionárias e conservadoras às mudanças prete ndidas por projetos sociais-democratas. De outro modo, há oposição de conhecidos grupos sociais sempre que novos rumos na gestão da economia dão atenção aos interesses dos mais pobres e propõem um viés nacionalista nas políticas econômica, industrial e científica. Seus porta-vozes são os políticos de partidos não ideológicos, as associações empresariais, os lobbies e a mídia tradicional, todos lacaios da elite do poder que resiste ao progresso e à redistribuição da renda e da atenção do Estado. É um problema brasileiro antigo e que sempre foi decisivo para definir qual seria e será o futuro do país.
A superação da ameaça, representada pelo retorno da extrema-direita ao poder, exige do novo governo mover-se na direção do crescimento econômico e da distribuição de renda para legitimar-se sem que haja tempo para a reação se articular e inviabilizar qualquer projeto nacional de progresso coletivo. Em outras palavras, se os vencedores da luta social ao longo da história brasileira escolheram, at&e acute; hoje, manter o país no subdesenvolvimento, a crise atual pode abrir uma porta em favor de uma proposta generosa de nação. O problema, de fato, é político e pode ser resumido em: como derrotar as forças reacionárias, abrindo espaço para planejar, projetar e, por fim, realizar outro futuro, mais justo, digno e fraterno para as gerações que ainda virão?
Ricardo L. C. Amorim é doutor em economia e pesquisador do núcleo Cadeias Globais de Valor (CGV-UFABC).
*Uma versão ampliada deste artigo será publicada em breve.        
[1] Lei Complementar 179 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp179.htm).
[2] A fonte de todos os dados é o Banco Central do Brasil. Ver: https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLocalizarSeries.
Velhos fatos se revivem com nova aparência https://bit.ly/3Ye45TD

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