15 abril 2023

Enio Lins opina

O versátil mito do Tibete e o ilusionismo político

Enio Lins www.eniolins.com.br

 

Lhamo Thondup, mais conhecido como Dalai Lama, mito para muita gente, provocou o maior reboliço mundial ao beijar a boca de um garoto e perguntar se a criança “queria chupar sua língua”. Num mundo cada vez mais assombrado pelos fantasmas de abusos sexuais contra menores, inclusive praticados por líderes religiosos, a cena caiu como uma bomba.

UMAS PALAVRAS SOBRE O LAMAÍSMO

Embora se defina como budista, o Lamaísmo Tibetano é o oposto do pregado por Sidarta Gautama (vivente entre 563 a.C. e 483 a.C.), o Buda, príncipe nepalês que renunciou às riquezas materiais, prazeres carnais e poder político, em busca da iluminação.

Versão chinesa de correntes indianas de pensamento, o Lamaísmo Tibetano é centrado no poder político absolutista, condição teocrática transmitida pela via da “reencarnação”, sendo periodicamente escolhida uma criança a ser formatada para essa missão.

Baseada na alegada divindade do líder político, essa teocracia se apoia em rituais religiosos semelhantes ao budismo indiano, e garante o poder às castas dominantes do local em que é implantado sob formato feudal, inclusive com denúncias de escravagismo.

TIBETE, UMA REGIÃO CHINESA

Um dos povos integrantes da China ancestral, os tibetanos ocupam o planalto ao norte do Himalaia há, pelo menos, 2.100 anos, e chegou a ter reis entre 617 e 701, como parte do conjunto de nações e reinos integrantes da antiga China.

No processo de formação das nações/estados da modernidade, as potências estrangeiras sempre tentaram dividir a China, sendo a mais notória a criação – pelos japoneses – do “reino independente” de Manchukuo, na Manchúria, entre 1932 e 1945.

Entre 1913 e 1949, o Tibete também passou por essa experiência de ser “nação independente” em iniciativa patrocinada pelo império russo e posteriormente assumida pelo império britânico, mas nunca chegou a se constituir como Estado de fato.

UMAS PALAVRAS SOBRE THONDRUP

Nascido em 1935, Lhamo Trondup foi afastado da família ainda criança, aos dois anos de idade, ao ser escolhido para ser o senhor feudal Dalai Lama XIV, apresentado como reencarnação do Dalai Lama XIII, segundo os rituais do Lamaísmo Tibetano.

Região estratégica – fronteira hoje com a Índia, Nepal, Butão, Burma – essa parte da China sempre foi alvo de pressões estrangeiras com interesses separatistas. Nos séculos mais recentes, Mongólia, Rússia, Inglaterra e Índia disputam ferozmente a área.

Com a queda do sistema imperial chinês em 1912, a Rússia tzarista tomou a iniciativa de “plantar” um mentor intelectual junto ao lama de plantão e, em 1913, o russo Avgan Dorzhiev (1873-1938) tornou-se o guia do Dalai Lama XIII, Thupen Gyatso (1867-1933).

No final da II Guerra, dizem, o serviço secreto britânico selecionou dois de seus prisioneiros nazistas (detidos na Índia) para uma nova mentoria e os plantou na corte do jovem 14º Dalai Lama, em substituição ao finado Dorzhiev: Heinrich Harrer e Peter Aufschnaiter.

DALAI LAMA XIV E SEU MENTOR NAZISTA

Lhamo, agora renomeado como Tenzin Gyatso, aos 19 anos, se afeiçoou apenas ao garboso Harrer, montanhista, atleta, geógrafo e escritor. Nazista e carteirinha, Heinrich Harrer ingressou na SA (Sturmabteilung - Tropas de Assalto) e depois se incorporou à temível SS.

Harrer estava em território indiano, com alpinistas e pesquisadores nazistas, em missão dada por Hitler, buscando raízes arianas, quando estourou a II Guerra. Como a Índia era colônia britânica, foram todos detidos e ficaram presos até o final dos combates.

Fundamental na formação política e ideológica do 14º Dalai Lama, Harrer escreveu sua versão (heroica, lógico) da missão na autobiografia “Sete anos no Tibete”, mais tarde vertida para badalado filme com Brad Pitt no papel do nazista misógino e bonitão.

COMUNAS E O AUTOEXÍLIO DO DALAI LAMA

Com a vitória dos comunistas na guerra civil chinesa, em 1949, Harrer partiu a mais de mil para a Alemanha, onde foi anistiado de seu passado SS. Trondup não se aperreou e se aproximou da turma de Mao, tecendo acordos que lhe conservassem algum poder.

Mas, em 1959, Dalai XIV tentou um golpe de estado para separar o Tibete da China. Não teve sucesso, fugiu para a Índia, de onde, financiado por governos ocidentais, tenta tomar o poder até hoje. Fazendo intensamente política, nunca perdeu o foco da mídia.

Entrevistado no The Andrew Marr Show/BBC, em julho de 2012, Dalai/Trondup declarou que Mao Zedong o “tratou como um filho” e salientou seu relacionamento caloroso com o líder comunista. A fala chocou quase como o beijo na boca do garoto indiano.

Aos 87 anos, continua em forma para fazer a mídia ferver. Avançou o sinal com um garoto, pediu desculpas depois; seus áulicos produziram um emaranhado de justificativas implausíveis, o fã-clube vibrou, os adversários chiaram, e a vida segue.

[Fotos: Em sentido horário: Dalai Lama com o garoto, 2023; com o mentor Harrer, Em momento dos sete anos no Tibet; Harrer com Hitler, em 1938; DDalai Lama com Mão, em 1954. alai Lama com Mao, em 1954]

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