1º DE ABRIL DE 1964:
A MENTIRA DE 21 ANOS
Chico de Assis*
A imagem que mais me ocorre ao lembrar esse dia é a minha saída do prédio da Agência Nacional (o mesmo dos Correios, na Av. Guararapes), onde trabalhava como repórter-auxiliar. Saía com meu irmão mais velho, Antonio Avertano, diretor da Agência e também metido em subversão à época, além de mais alguns velhos comunistas que lá trabalhavam. As ruas já respiravam o clima de golpe.
O Palácio das
Princesas, cercado por tropas do Exército, contrariava a previsão do dia
anterior, feita pelo próprio governador Miguel Arraes, em rápida entrevista que
com ele tivemos (eu e meu irmão), no fim da noite de 31 de março. Ele
acreditava (ou, para nos tranquilizar, nos deu a entender que acreditava) que o
golpe seria debelado. O general Amauri Kruel, comandante do II Exército,
aderiria ao Presidente João Goulart, e o general Justino Alves Bastos, do
IV Exército, emprestar–lhe-ia apoio aqui no Estado.
Traído em sua
expectativa – no transcurso de uma madrugada plena de traições – Arraes se viu
cercado pela manhã e intimado a renunciar ou aderir. O governador dos pernambucanos
assumiu a digna posição que o projetaria para a História e o transformaria num
dos líderes políticos mais admirados de Pernambuco. Não renunciaria, nem muito
menos aderiria aos golpistas. Seu mandato lhe havia sido outorgado pelo povo. E
só ao povo seria entregue. Saiu preso, escoltado por forças militares, levado
ao 14º Regimento de Infantaria e posteriormente desterrado para a Ilha de
Fernando Noronha, em cujo presídio passaria boa parte do seu tempo de
prisão.
Eu estava meio
assustado com tudo. Tinha então 17 anos. Minha militância – embora já
engajada à juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – resumia–se a
infindáveis discussões na esquina da Sertã (famosa cafeteria da época, na
esquina da R.da Palma c/Av. Guararapes), a atuar no Clube Literário Monteiro
Lobato (que havia fundado, ao lado de outros companheiros e que denominávamos
“QG do estudante nacionalista”) e a acompanhar, com enorme entusiasmo, os
avanços sociais que um governo efetivamente democrático realizava. Poucos dias
antes, Luis Carlos Prestes, então secretário–geral do PCB, havia dito pela
imprensa não existir nenhuma condição para um golpe de direita, que as
conquistas sociais eram irreversíveis e que nada deteria o avanço do povo. Era
natural que estivesse perplexo, diante do que começava a ver.
Abandonei os
companheiros de trabalho numa das margens da avenida e me dirigi à ponte Duarte
Coelho, onde já despontavam os primeiros cordões da passeata de estudantes,
bancários e alguns poucos trabalhadores de outras categorias, que se dirigiam
ao Palácio, em solidariedade ao governador sitiado. Naturalmente, me incorporei
a ela. Quando chegamos na esquina da Guararapes com Dantas Barreto, a um
quarteirão do Palácio, as tropas militares se movimentaram em nossa direção.
Pusemo-nos todos a cantar o Hino Nacional e alguns a desenrolar as bandeiras
nacionais que conduziam, na esperança de que o gesto paralisasse as
tropas, como ocorrera em escaramuças anteriores.
Várias rajadas de
metralhadora e fuzil foram a resposta que tivemos aos nossos gritos de “fascistas”
e de “não passarão”. Recuei correndo até a Igreja de Santo Antônio, quando
soube que o corpo visto pouco antes, em meio a uma poça de sangue, era de
Jonas Albuquerque, menino poeta de 16 anos, meu colega no Colégio Estadual de
Pernambuco. Outros tiros, soube depois, atingiram Ivan Aguiar, estudante de
Engenharia, filho de notória família comunista em nosso Estado. Meus pais
moravam à época em bairro central. Foi lá que atordoada e apressadamente
cheguei, para arrumar uma pequena mochila, ouvir o choro de minha mãe e
as eternas admoestações do meu pai, “quem não obedece ao pai, termina tendo que
obedecer à polícia”.
Deixei os dois em
pânico e saí meio sem rumo. Procurava alguma orientação, um pouquinho mais
ajuizada que a recebida de um vulto agalegado, que conhecia das
assembléias estudantis, logo depois de sair de casa: “agora é
pegar em armas, companheiro; faca, revólver, facão e se juntar no campo
ao velho Griga!”.
Possivelmente naquele
mesmo momento, o velho Griga, o histórico líder comunista Gregório
Bezerra, estava sendo preso no município de Cortês (Zona da Mata
pernambucana). Depois de achincalhado e torturado por verdugos como
os coronéis Hélio Ibiapina e Antonio Bandeira, em pleno QG do IV
Exército, ele foi entregue à sanha assassina do coronel Darcy Ursmar
Villocq Vianna - o coronel Villocq, e conduzido ao Quartel de Motomecanização,
no bairro de Casa Forte. É o próprio velho Griga que conta:
“...puseram–me numa
cadeira e três sargentos seguraram–me por trás, enquanto Villocq, com um
alicate, ia arrancando meus cabelos. Logo depois, puseram–me de pé e
obrigaram–me a pisar numa poça de ácido de bateria. Em poucos segundos, estava
com a sola dos pés em carne viva...” (Memórias, Boitempo Editorial: São Paulo –
2011, p. 537)
Nessas condições,
Gregório foi depois arrastado pelas ruas de Casa Forte, uma corda amarrada ao
pescoço, para gáudio dos torturadores recém-vitoriosos e escândalo das
tradicionais famílias do bairro. Elas começavam a descobrir o tipo de sistema
que elas mesmas haviam ajudado a engendrar nas famosas passeatas com Deus, pela
Família e pela Liberdade, do pré-64.
Mesmo sem ter, àquela
altura, conhecimento de nenhum desses fatos, diante da proposta e do tom meio
desesperado do companheiro, eu me limitei a rir (espécie de reação nervosa que
me ocorre quando não sei bem o que fazer) e segui meu caminho ou descaminho. A
noite se abateu literalmente, não só sobre o Recife. A mentira – que
brincalhonamente atribuíamos à passagem do 1º de abril – estendeu seu manto
sobre os dias subsequentes. E duraria 21 anos!
* Ex–preso político
de Pernambuco, poeta, membro do grupo Ética e Democracia e da Roda Democrática.
A vida segue ao balanço das horas https://bit.ly/3Ye45TD
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